A Distopia do Presente
“As nossas noites já não vibram de terror nem de êxtase; mas vamos vivendo, atravessamos a vida, sem alegrias nem mistérios, o tempo parece-nos breve”, Michell Houellebecq.
“A ilha…. Poderíamos viver aí, possivelmente felizes, se a vida fosse uma coisa possível, só que ninguém lá vive”, Samuel Beckett.
Ao longo da história, a vida das pessoas, mesmo aquelas que são mais bafejadas pela sorte, tem estado mergulhada em insegurança, imprevisibilidade e violência. Daqui uma incerteza generalizada que vai traduzir-se em medo. É pois normal qua se anseie por uma vida sem acidentes, num mundo regular e previsível, num mundo confiável. Em resumo, num mundo seguro, sem improvisos e sem experimentações. Mesmo se, como dizia Leibniz, um mundo perfeito só poderia ser perfeito se nele existisse uma certa porção de mal. O que se ambiciona é que essa pequena porção de mal pudesse ser conhecida, vigiada e posta de quarentena, de maneira que soubéssemos quando é que esse mal se fosse manifestar e o que esperar dele, estando assim prontos a enfrentá-lo.
Coube a Thomas More, que viveu numa das épocas mais turbulentas da humanidade, o século XVII em Inglaterra, escrever sobre esse sonho de um mundo sem insegurança e sem medo, a que chamou “utopia” numa junção feliz de duas palavras Gregas: eutopia, ou seja um “lugar bom”, e outopia que significava “nenhum lugar”. Utopia é basicamente a imagem de um outro universo bom diferente do universo que conhecemos, imagem essa criada inteiramente pela sabedoria e devoção humana.
Já anteriormente tinham aparecido Apocalipses ou Juízos Finais, Cidades de Deus, com base nas sensações e pensamentos de que o mundo não estava a funcionar bem. As suas diferenças para a Utopia de More é que eram orientadas pela providência divina, ao passo que a Utopia de More pressupunha ser o próprio ser humano capaz de substituir o mundo existente por um outro mundo feito por si. A criação de um mundo que lhe desse mais satisfação, só através dos seus raciocínios, implicava uma enorme confiança no ser humano como agente transformador, pelo que as utopias só aparecem com os tempos modernos e não antes.
Com o desenvolvimento da Ciência e das aplicações que se lhe seguiram, não é de admirar que o otimismo invadisse o mundo: afinal vivia-se num mundo onde o Progresso era visível. O progresso aparecia para realizar as utopias, daí que se não concebesse ser possível viver numa sociedade sem utopias. Mais tarde verificou-se que o progresso não era a realização das utopias, e sim uma tentativa para se alcançarem as utopias. Da mesma forma sabe-se hoje que todos os modelos teóricos que construímos para a representação da realidade são também utopias. E isto porque, acompanhando filosoficamente o teorema matemático de Godel, sempre que tentarmos fazer da realidade modelos teóricos consistentes, harmoniosos, elegantemente lógicos e puros, estaremos a impor à realidade mais racionalidade do que ela possui ou pode vir a possuir.
Com o desencanto resultante dos acontecimentos do início do século XX, as Guerras Mundiais, a não realização das promessas de uma boa vida e de menos horas de trabalho, as utopias começaram a ser postas de parte, não sendo consideradas necessárias para a sociedade. Sobreviveram apenas as utopias individuais.
Chegamos assim à sociedade atual, onde as formas sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que salvaguardam as repetições de rotinas, padrões de comportamento aceitáveis) já não conseguem manter a sua forma, onde existe separação entre poder e política (que em conjunto garantiam o estado nação) por onde os novos poderes se erigem em fonte permanente de incerteza incontrolável, onde a retirada do estado providência expõe cada vez mais os indivíduos aos mercados dos bens de trabalho inspirando e promovendo a divisão e a falta de solidariedade, onde o colapso do pensamento e planeamento a longo prazo são substituídos por projetos de curta duração que não se compadecem com conceitos de “carreira”, “progresso”, “desenvolvimento” e onde as estratégias não assentam em “prévia aprendizagem” mas na “flexibilidade” entendida como disponibilidade para mudar táticas e estilo com curto aviso prévio, como o abandono de lealdades e projetos sem remorso, e finalmente, onde a responsabilidade para resolver estas condições voláteis e em constante mudança, são atiradas para os ombros dos indivíduos.
À vista estão os vários locais de concentração (sejam eles Países, simples campos ou difusos locais não geográficos) onde são colocados os desempregados, os reformados, os jovens, os velhos, os refugiados, os enfermos, todos aqueles que não possam (ou já não possam) comprar, o “lixo” desta sociedade. Os massacres e os genocídios. A via única. O estado de exceção. Só não vê quem não quer ver.
Não é de admirar que neste mundo os escritores que descrevem sociedades futuras o façam através de Distopias, que etimologicamente significa “lugar mau”, e não através de Utopias (“lugar bom”). Partindo do princípio que a marcha triunfal da racionalização e do progresso, desembocará numa paz que se sucede a uma verdadeira Última e Final Guerra, com o triunfo da ordem sobre o caos, da regularidade sobre o aleatório, do controle sobre a espontaneidade e do previsível sobre o acaso, os escritores das distopias pretendem dar a conhecer a realidade sobre o que significará viver nesse mundo. As distopias são pois, avisos sobre o caminho a que estamos a ser conduzidos e que trilhamos alegremente, mostrando-nos que quando lá chegarmos, a Terra que formos encontrar não tem nada a ver com a Terra por nós sonhada. De fato nela não haverá sofrimento; haverá sim, ausência de tudo a que chamamos vida.
Para melhor ilustrar o que é a distopia leia-se o livro A Possibilidade de Uma Ilha do francês Michel Houellebecq. A ação desenrola-se no Quarto Milénio, numa nova Terra sem mar que desaparecera após uma série de catástrofes naturais e humanas (guerras étnicas e religiosas, maremotos, seca, epidemias) onde os humanos se reduziram a esparsos gangs de selvagens canibais e onde a memória do que era ser humano ficou entregue, e ao cuidado, a uma rede de clones humanos (os neo-humanos) que viviam sem quaisquer laços familiares ou de amizade, que não sentiam a dor nem o prazer, que sobreviviam nessas condições adversas graças ao consumo de comprimidos (o que levará ao desaparecimento dos aparelhos digestivo e excretor), e em que a auto reprodução se fazia por clonagem (o Daniel 1 teria sido nosso contemporâneo, último clone nascido de uma mãe e primeiro de uma linha de clones identificados por números de ordem geracional de fabricação).
Estes neo-humanos vinham equipados com um sistema de autorreprodução e um sistema de comunicação entre si, utilizando endereços numéricos muito semelhantes aos da Internet. A sua solidão e isolamento conduzem-os a uma grande indiferença até perante a sua própria morte anunciada. Qualquer “dor de ser” é resolvida pela inexistência de ser e de sentir. Como diz a Irmã Suprema “o ciúme e a vontade de procriar têm a mesma origem, que é a dor de ser. É a dor de ser que nos leva a procurar o outro, como um paliativo; temos de ultrapassar esta fase a fim de atingir o estado em que o simples fato de ser constitui em si mesmo um permanente motivo de alegria; em que a intermediação passa a ser apenas um jogo, livremente aceite, não constitutivo de ser. Numa palavra, devemos alcançar a liberdade de indiferença, condição da possibilidade da serenidade perfeita.”
Assim, quando a energia vital de Daniel 24 estava a chegar ao fim, ele apenas diz: “Não sinto mais do que uma ligeira tristeza”. “A minha encarnação atual degrada-se; não creio que possa prolongar-se por muito tempo. Sei que na minha próxima encarnação voltarei a encontrar o meu companheiro, o cachorro Fox”. Quando Daniel 24 acaba, é substituído por Daniel 25, que dele partilha o ADN e aspeto físico. Apesar de todas estas semelhanças, o cão Fox pressente que não se trata do mesmo indivíduo, só que também morre pouco tempo depois, sendo igualmente substituído por um novo clone.
Nesta nova humanidade, o cão parece ser o único a reconhecer que não se pode substituir um ser (mesmo que neo) humano por um duplo, mesmo que em tudo idêntico.
Nesta nova Terra propositadamente não existe mar, impedindo assim a possibilidade de existirem ilhas, lugares por excelência da utopia. Mas segundo a narrativa do diário de Daniel 1, o mar ainda existiria junto a Lanzarote, só que nenhum neo humano posterior o poderia comprovar, a não ser que abandonasse a sua casa e a rede de apoio que lhe garantia a sobrevivência, tonando-se desertor. Foi o que estranhamente decidiu fazer Daniel 25.
A nostalgia pelo desejo leva-o a tentar um último recomeço, cansado da sua existência marcada pela rotina sem fim de ressurreições, reincarnações, novos nascimentos como réplicas clonadas de seres antecedentes. “Eu era, como todos os neo humanos, imune ao aborrecimento … eu estava … a muita distância da alegria, e até da paz verdadeira: o simples fato de existir já constituía um infortúnio. Afastando-me, por vontade própria, do ciclo de renascimento e morte, sei que vou caminhar em direção a um simples nada, para uma pura ausência de conteúdo.”
Decidido, parte rumo a Lanzarote com o seu cão Fox. No caminho depara-se com selvagens, descendentes dos humanos, que lhe matam o cão. Sozinho, Daniel 25 “faz-se enfim ao mar, à procura de si mesmo” (citação de Saramago em O Conto da Ilha Desconhecida).
Tinham sido precisas 25 gerações de Daniel para ele notar que “A alegria dos humanos continua a ser por nós (neo humanos) desconhecida; por outro lado, não somos afetados pelos seus desgostos. As nossas noites já não são abaladas pelo terror ou pelo êxtase. E contudo, nós vivemos; vamos contudo pela vida, sem alegrias e sem mistérios.”
No fim, Daniel 25 conclui que “a felicidade não é um horizonte possível. O mundo tinha-o atraiçoado”.
Michel Houellebecq escreveu situando este conto no Quarto Milénio.
Em contrapartida, a intemporalidade de Saramago permite-lhe situar O Conto da Ilha Desconhecida no lugar certo, dentro de nós:
“E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de facto perguntou… Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, quem foi que te disse, rei que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas…”