Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

A cartilha do fundamentalismo

“Em tempos de incerteza o conhecimento da verdade única é sempre reconfortante”.
O discurso acerca do conhecimento que Deus, em Sua glória, tem de Si próprio e do mundo, está proibido”, Averróis.
Se necessário […] romper a letra da constituição a fim de preservar o seu espírito”, Voegelin.

 

O termo “fundamentalismo” só aparece definido nos finais do século XIX, ligado a um documento das igrejas Protestantes aprovado como reação áquilo que consideravam ser a intromissão da teoria da evolução e as constantes críticas feitas à Bíblia, o que acabou por levar na primeira metade do século XX à separação das igrejas Protestantes em Fundamentalistas e Modernistas. Atualmente o termo tem outras conotações, mas é importante conhecer as suas raízes para o compreender na sua totalidade.


Há uma parte do fundamentalismo que tem que ver com a pretensão à posse do conhecimento único, conhecimento quase intuitivo e mágico sobre os mistérios do universo, único capaz também de garantir a salvação, o que tem sido através dos tempos uma pretensão comum a todos aqueles que num âmbito mais geral são chamados de gnósticos, na sua persecução do conhecimento da verdade única. Em tempos de incerteza, esse conhecimento da verdade única, é sempre reconfortante, transmitindo uma ansiada sensação de segurança. Embora grande parte dos gnosticismos se tenham digladiado no campo das religiões, a sua secularização vai, curiosamente, dar origem a novas religiões políticas.

No século XVII surge em Inglaterra um movimento de confissão calvinista, que se apelidava de “puritano” por pretender purificar a Igreja Anglicana de todos os resíduos de catolicismo, de forma a tornar a sua liturgia mais próxima do calvinismo. Face aos ataques destes ‘puritanos’ à nova Igreja Anglicana, Richard Hooker (1554 – 1600), um dos teólogos preferidos da rainha Isabel I de Inglaterra, vai explicar e desmontar aquilo que considerava efetivamente ser o programa comum a que todos estes movimentos gnósticos obedeciam, num documento publicado em 1595 e 1597, Of the Laws of Ecclesiastical Polity.
Visto à distância de quatro séculos, trata-se de um extraordinário documento de marketing político ainda hoje plenamente válido, uma cartilha que tem sido seguida por todos os movimentos fundamentalistas.

 

Diz-nos Hooker (1595) que a primeira coisa a fazer para se iniciar um movimento desse tipo, é arranjar uma causa.
Depois, para se promover essa causa, deve-se começar por criticar severamente os males sociais bem como o comportamento das classes altas, tudo isto feito em locais públicos em que a multidão possa ouvir. Todas estas críticas devem ser frequentemente repetidas, a fim de levar os ouvintes a acreditarem que tanta indignação com o que acontece só pode vir de homens bons.
Em seguida, deve-se concentrar o ressentimento popular sobre o governo instituído, atribuindo-se todos os defeitos e corrupção a ações específicas do governo. Assim, não só mostram à população que sabem do que estão a falar ao revelarem ligações que a ela lhes teria passado ao lado, como apontam para o mal que deve ser extirpado para salvar o mundo.
Chegados aqui, é a altura para recomendar uma nova forma de governo como “remédio soberano para todos os males”. Isto porque as pessoas “que estão possuídas de aversão e descontentamento para com as coisas presentes” estão prontas para “imaginar que qualquer coisa, cuja virtude lhes havia sido recomendada, as ajudaria”.
O ideal seria que esse movimento se baseasse na autoridade de uma fonte literária, um livro/lei, para que os seguidores associassem automaticamente passagens e termos do livro/lei com a doutrina que os líderes lhes iriam transmitindo de forma a moldar “as próprias noções e conceitos mentais” por mais errónea que fosse essa associação, e que inclusivamente os pudessem levar a ignorar o conteúdo dos Escritos se eles se revelassem incompatíveis com a doutrina.
O passo seguinte será o de “persuadir os homens crédulos e inclinados a tais erros gratificantes de que sobre eles recai uma luz especial", que lhes permite discernir nas palavras da Escritura aquilo que os outros, embora a leiam, não enxergam. Com isto eles vão sentir-se como eleitos, separados do resto do mundo, o que faz com que a humanidade se divida entre “os irmãos” e os “mundanos”.
A partir daqui, tais pessoas preferirão sempre a companhia de outras envolvidas no movimento à de indivíduos a ele estranhos; aceitarão voluntariamente os conselhos e a orientação dada pelos doutrinadores; negligenciarão os seus próprios interesses, para dedicar todo o seu tempo ao serviço da causa e fornecerão ajuda material aos líderes do movimento. Estão agora prontos para receber a representação de um líder.
Uma vez criado este meio social, torna-se impossível quebrá-lo pela persuasão. Se algum indivíduo de opinião contrária abrir a boca para persuadi-los, eles comportam-se como surdos, não ponderam as razões que lhes são oferecidas, e a tudo respondem repetindo as palavras de João: ‘Nós somos de Deus; aquele que conhece Deus nos ouve’.
Eles são assim impermeáveis a quaisquer argumentos e têm respostas bem treinadas. Caso lhes sugiram que são incapazes de julgar tais matérias, responderão: ‘Deus escolheu os simples´. Caso se lhes mostre que estão dizendo coisas sem sentido, dirão: ‘Até mesmo os Apóstolos de Cristo foram considerados loucos´. Caso se lhes acene com um mínimo de disciplina, dissertarão sobre a ´crueldade dos homens sanguinários’ e apresentar-se-ão como a inocência perseguida por dizer a verdade. Em suma, não há argumento que possa abalar a rigidez psicológica da sua atitude.

Mas Hooker vai mais longe na desarticulação do gnosticismo, chamando a atenção para os perigos que ele representava para a destruição da ordem racional estabelecida e para a utilização da função social da persuasão. Segundo ele, a posição dos puritanos, contrariamente ao que defendiam, não se baseava nas Escrituras: eles usavam as Escrituras apenas quando certas passagens delas, retiradas de contexto, corroboravam a causa, ignorando-as nos outros casos.
Esta colagem que faziam às Escrituras fora inicialmente necessária, porquanto não se poderiam apresentar abertamente como um movimento anticristão. Mas essa camuflagem, a partir de certa altura, começou a ser incómoda. Para evitarem as críticas embaraçosas, vão servir-se de dois recursos técnicos, que ainda hoje são utilizados pelos movimentos fundamentalistas.
O primeiro era a escolha padronizada de seleções efetuadas das Escrituras, bem como pela interpretação das mesmas. A reforma de Lutero, ao dar a liberdade de interpretação das Escrituras feita por cada um de acordo com as suas preferências, conduzia ao caos; além do mais, uma vez que todas as interpretações seriam assim possíveis e equivalentes, não se poderia argumentar contra a interpretação da Igreja, porquanto essa também seria válida.
Quando Calvino publica os Institutes, uma formulação sistemática das Escrituras para a nova doutrina, o seu propósito foi o de oferecer orientação para uma leitura correta das Escrituras que evitasse o recurso a todas as obras anteriores, partindo do princípio que era nos trechos escolhidos que residia a verdade. Esta obra de Calvino foi o primeiro Livro/Lei gnóstico criado de modo deliberado por alguém capaz de romper com a tradição intelectual da humanidade, porque estava imbuído da crença, da fé, de que com ele se iniciaria uma nova verdade e um novo mundo.
Podemos encontrar antecedentes no Alcorão de Maomé, e em Escoto Eríugena e Dionísio Areopagita, e ainda no Evangellium aeternum (Evangelho Eterno) de Joaquim de Fiora.
Numa fase de posterior secularização, encontramos no século XVIII a Encyclopédie  Française de Diderot e D’Alambert, como compilação de todo o conhecimento digno de ser preservado: segundo os autores, ninguém precisaria de usar qualquer outra obra anterior e toda a ciência posterior seria acrescentada à Enciclopédia como suplemento. No século XIX, Augusto Comte e as fases da humanidade (religiosa, metafísica e científica, em que as ciências se juntam todas numa sociologia) que constam do seu Curso de Filosofia Positiva, Karl Marx e o Manifesto. No século XX, A. Hitler e A minha Luta, Mao e o seu livrinho vermelho. As doutrinas políticas da modernidade estão sempre marcadas por este desejo de refazer a história, de a recomeçar.
O segundo é o de considerar que, sendo todo esse Livro/Lei gnóstico a codificação da verdade, então ele é todo o alimento espiritual e intelectual do fiel, pelo que se deve recusar a ler outra qualquer obra que possa representar uma crítica ou um desrespeito para as suas adoradas crenças. É tabu ler-se para além do Livro; quem o fizer será socialmente boicotado e exposto à difamação pública. Este tabu vai ter consequências nefastas no que diz respeito ao debate público, especialmente nas sociedades em que os movimentos gnósticos consigam alcançar e controlar os meios de comunicação e instituições educacionais. Como dizia Hooker, o debate com os seus oponentes puritanos era impossível, porque eles não aceitavam nenhum argumento.

A este propósito vai citar Averróis (ou Ibn Rushd, 1126 – 98) quando este afirma:

 

O discurso acerca do conhecimento que Deus, em Sua glória, tem de Si próprio e do mundo, está proibido. Mais proibido é escrever sobre isso. Isto porque a compreensão do vulgo não atinge tais profundezas […] por isso lhes é vedada a discussão desse conhecimento […] A lei, cujo propósito básico é ode ensinar homens do povo, não malogrou na comunicação inteligível acerca desse assunto por ele ser inacessível ao homem […] Por conseguinte, esta questão está reservada aos sábios que Deus dedicou à verdade”.

 

Esta é a solução dada na civilização muçulmana ao problema do debate teórico: confiná-lo a círculos esotéricos, desconhecidos do público em geral, uma vez que os homens do povo devem abster-se de teorizar, dado que não estão preparados para tal, porque se o fizessem corriam o risco de destruírem Deus.
Só que, apesar de tudo, a civilização ocidental à época de Hooker já não permitiria esta solução preconizada por Averróis. Assim, posto perante o facto de que se tratava de lutar contra revolucionários gnósticos que pretendiam a subversão da ordem social inglesa, o controlo das universidades, a substituição da lei comum pela lei das Escrituras , e  que era de todo impossível conseguir chegar-se a acordo obtido através da persuasão, Hooker considera a hipótese da utilização da autoridade governamental para suster tal investida. Hooker percebia muito bem que a ação gnóstica representava uma ação política e não uma procura da verdade.

Diz-nos Eric Voegelin (1901 – 85) em A Nova Ciência da Política, obra que sigo  de perto:

 

Um governo democrático não se deve transformar em cúmplice da sua própria derrocada, permitindo que governos gnósticos cresçam prodigiosamente à sombra de uma interpretação errónea dos direitos civis; e, se por inadvertência um movimento desse género houver atingido o ponto de crítico da representação existencial através da famosa “legalidade” das eleições populares, um governo democrático não se deve curvar à “vontade do povo””, e sim sufocar o perigo pela força e, se necessário, romper a letra da constituição a fim de preservar o seu espírito”.

 

Como epílogo, uma expressão popular que julgo adequada e sintética quanto baste: “Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades”.

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2016
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2015
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub