A cartilha do fundamentalismo
“Em tempos de incerteza o conhecimento da verdade única é sempre reconfortante”.
“O discurso acerca do conhecimento que Deus, em Sua glória, tem de Si próprio e do mundo, está proibido”, Averróis.
“ Se necessário […] romper a letra da constituição a fim de preservar o seu espírito”, Voegelin.
O termo “fundamentalismo” só aparece definido nos finais do século XIX, ligado a um documento das igrejas Protestantes aprovado como reação áquilo que consideravam ser a intromissão da teoria da evolução e as constantes críticas feitas à Bíblia, o que acabou por levar na primeira metade do século XX à separação das igrejas Protestantes em Fundamentalistas e Modernistas. Atualmente o termo tem outras conotações, mas é importante conhecer as suas raízes para o compreender na sua totalidade.
Há uma parte do fundamentalismo que tem que ver com a pretensão à posse do conhecimento único, conhecimento quase intuitivo e mágico sobre os mistérios do universo, único capaz também de garantir a salvação, o que tem sido através dos tempos uma pretensão comum a todos aqueles que num âmbito mais geral são chamados de gnósticos, na sua persecução do conhecimento da verdade única. Em tempos de incerteza, esse conhecimento da verdade única, é sempre reconfortante, transmitindo uma ansiada sensação de segurança. Embora grande parte dos gnosticismos se tenham digladiado no campo das religiões, a sua secularização vai, curiosamente, dar origem a novas religiões políticas.
No século XVII surge em Inglaterra um movimento de confissão calvinista, que se apelidava de “puritano” por pretender purificar a Igreja Anglicana de todos os resíduos de catolicismo, de forma a tornar a sua liturgia mais próxima do calvinismo. Face aos ataques destes ‘puritanos’ à nova Igreja Anglicana, Richard Hooker (1554 – 1600), um dos teólogos preferidos da rainha Isabel I de Inglaterra, vai explicar e desmontar aquilo que considerava efetivamente ser o programa comum a que todos estes movimentos gnósticos obedeciam, num documento publicado em 1595 e 1597, Of the Laws of Ecclesiastical Polity.
Visto à distância de quatro séculos, trata-se de um extraordinário documento de marketing político ainda hoje plenamente válido, uma cartilha que tem sido seguida por todos os movimentos fundamentalistas.
Diz-nos Hooker (1595) que a primeira coisa a fazer para se iniciar um movimento desse tipo, é arranjar uma causa.
Depois, para se promover essa causa, deve-se começar por criticar severamente os males sociais bem como o comportamento das classes altas, tudo isto feito em locais públicos em que a multidão possa ouvir. Todas estas críticas devem ser frequentemente repetidas, a fim de levar os ouvintes a acreditarem que tanta indignação com o que acontece só pode vir de homens bons.
Em seguida, deve-se concentrar o ressentimento popular sobre o governo instituído, atribuindo-se todos os defeitos e corrupção a ações específicas do governo. Assim, não só mostram à população que sabem do que estão a falar ao revelarem ligações que a ela lhes teria passado ao lado, como apontam para o mal que deve ser extirpado para salvar o mundo.
Chegados aqui, é a altura para recomendar uma nova forma de governo como “remédio soberano para todos os males”. Isto porque as pessoas “que estão possuídas de aversão e descontentamento para com as coisas presentes” estão prontas para “imaginar que qualquer coisa, cuja virtude lhes havia sido recomendada, as ajudaria”.
O ideal seria que esse movimento se baseasse na autoridade de uma fonte literária, um livro/lei, para que os seguidores associassem automaticamente passagens e termos do livro/lei com a doutrina que os líderes lhes iriam transmitindo de forma a moldar “as próprias noções e conceitos mentais” por mais errónea que fosse essa associação, e que inclusivamente os pudessem levar a ignorar o conteúdo dos Escritos se eles se revelassem incompatíveis com a doutrina.
O passo seguinte será o de “persuadir os homens crédulos e inclinados a tais erros gratificantes de que sobre eles recai uma luz especial", que lhes permite discernir nas palavras da Escritura aquilo que os outros, embora a leiam, não enxergam. Com isto eles vão sentir-se como eleitos, separados do resto do mundo, o que faz com que a humanidade se divida entre “os irmãos” e os “mundanos”.
A partir daqui, tais pessoas preferirão sempre a companhia de outras envolvidas no movimento à de indivíduos a ele estranhos; aceitarão voluntariamente os conselhos e a orientação dada pelos doutrinadores; negligenciarão os seus próprios interesses, para dedicar todo o seu tempo ao serviço da causa e fornecerão ajuda material aos líderes do movimento. Estão agora prontos para receber a representação de um líder.
Uma vez criado este meio social, torna-se impossível quebrá-lo pela persuasão. Se algum indivíduo de opinião contrária abrir a boca para persuadi-los, eles comportam-se como surdos, não ponderam as razões que lhes são oferecidas, e a tudo respondem repetindo as palavras de João: ‘Nós somos de Deus; aquele que conhece Deus nos ouve’.
Eles são assim impermeáveis a quaisquer argumentos e têm respostas bem treinadas. Caso lhes sugiram que são incapazes de julgar tais matérias, responderão: ‘Deus escolheu os simples´. Caso se lhes mostre que estão dizendo coisas sem sentido, dirão: ‘Até mesmo os Apóstolos de Cristo foram considerados loucos´. Caso se lhes acene com um mínimo de disciplina, dissertarão sobre a ´crueldade dos homens sanguinários’ e apresentar-se-ão como a inocência perseguida por dizer a verdade. Em suma, não há argumento que possa abalar a rigidez psicológica da sua atitude.
Mas Hooker vai mais longe na desarticulação do gnosticismo, chamando a atenção para os perigos que ele representava para a destruição da ordem racional estabelecida e para a utilização da função social da persuasão. Segundo ele, a posição dos puritanos, contrariamente ao que defendiam, não se baseava nas Escrituras: eles usavam as Escrituras apenas quando certas passagens delas, retiradas de contexto, corroboravam a causa, ignorando-as nos outros casos.
Esta colagem que faziam às Escrituras fora inicialmente necessária, porquanto não se poderiam apresentar abertamente como um movimento anticristão. Mas essa camuflagem, a partir de certa altura, começou a ser incómoda. Para evitarem as críticas embaraçosas, vão servir-se de dois recursos técnicos, que ainda hoje são utilizados pelos movimentos fundamentalistas.
O primeiro era a escolha padronizada de seleções efetuadas das Escrituras, bem como pela interpretação das mesmas. A reforma de Lutero, ao dar a liberdade de interpretação das Escrituras feita por cada um de acordo com as suas preferências, conduzia ao caos; além do mais, uma vez que todas as interpretações seriam assim possíveis e equivalentes, não se poderia argumentar contra a interpretação da Igreja, porquanto essa também seria válida.
Quando Calvino publica os Institutes, uma formulação sistemática das Escrituras para a nova doutrina, o seu propósito foi o de oferecer orientação para uma leitura correta das Escrituras que evitasse o recurso a todas as obras anteriores, partindo do princípio que era nos trechos escolhidos que residia a verdade. Esta obra de Calvino foi o primeiro Livro/Lei gnóstico criado de modo deliberado por alguém capaz de romper com a tradição intelectual da humanidade, porque estava imbuído da crença, da fé, de que com ele se iniciaria uma nova verdade e um novo mundo.
Podemos encontrar antecedentes no Alcorão de Maomé, e em Escoto Eríugena e Dionísio Areopagita, e ainda no Evangellium aeternum (Evangelho Eterno) de Joaquim de Fiora.
Numa fase de posterior secularização, encontramos no século XVIII a Encyclopédie Française de Diderot e D’Alambert, como compilação de todo o conhecimento digno de ser preservado: segundo os autores, ninguém precisaria de usar qualquer outra obra anterior e toda a ciência posterior seria acrescentada à Enciclopédia como suplemento. No século XIX, Augusto Comte e as fases da humanidade (religiosa, metafísica e científica, em que as ciências se juntam todas numa sociologia) que constam do seu Curso de Filosofia Positiva, Karl Marx e o Manifesto. No século XX, A. Hitler e A minha Luta, Mao e o seu livrinho vermelho. As doutrinas políticas da modernidade estão sempre marcadas por este desejo de refazer a história, de a recomeçar.
O segundo é o de considerar que, sendo todo esse Livro/Lei gnóstico a codificação da verdade, então ele é todo o alimento espiritual e intelectual do fiel, pelo que se deve recusar a ler outra qualquer obra que possa representar uma crítica ou um desrespeito para as suas adoradas crenças. É tabu ler-se para além do Livro; quem o fizer será socialmente boicotado e exposto à difamação pública. Este tabu vai ter consequências nefastas no que diz respeito ao debate público, especialmente nas sociedades em que os movimentos gnósticos consigam alcançar e controlar os meios de comunicação e instituições educacionais. Como dizia Hooker, o debate com os seus oponentes puritanos era impossível, porque eles não aceitavam nenhum argumento.
A este propósito vai citar Averróis (ou Ibn Rushd, 1126 – 98) quando este afirma:
“O discurso acerca do conhecimento que Deus, em Sua glória, tem de Si próprio e do mundo, está proibido. Mais proibido é escrever sobre isso. Isto porque a compreensão do vulgo não atinge tais profundezas […] por isso lhes é vedada a discussão desse conhecimento […] A lei, cujo propósito básico é ode ensinar homens do povo, não malogrou na comunicação inteligível acerca desse assunto por ele ser inacessível ao homem […] Por conseguinte, esta questão está reservada aos sábios que Deus dedicou à verdade”.
Esta é a solução dada na civilização muçulmana ao problema do debate teórico: confiná-lo a círculos esotéricos, desconhecidos do público em geral, uma vez que os homens do povo devem abster-se de teorizar, dado que não estão preparados para tal, porque se o fizessem corriam o risco de destruírem Deus.
Só que, apesar de tudo, a civilização ocidental à época de Hooker já não permitiria esta solução preconizada por Averróis. Assim, posto perante o facto de que se tratava de lutar contra revolucionários gnósticos que pretendiam a subversão da ordem social inglesa, o controlo das universidades, a substituição da lei comum pela lei das Escrituras , e que era de todo impossível conseguir chegar-se a acordo obtido através da persuasão, Hooker considera a hipótese da utilização da autoridade governamental para suster tal investida. Hooker percebia muito bem que a ação gnóstica representava uma ação política e não uma procura da verdade.
Diz-nos Eric Voegelin (1901 – 85) em A Nova Ciência da Política, obra que sigo de perto:
“Um governo democrático não se deve transformar em cúmplice da sua própria derrocada, permitindo que governos gnósticos cresçam prodigiosamente à sombra de uma interpretação errónea dos direitos civis; e, se por inadvertência um movimento desse género houver atingido o ponto de crítico da representação existencial através da famosa “legalidade” das eleições populares, um governo democrático não se deve curvar à “vontade do povo””, e sim sufocar o perigo pela força e, se necessário, romper a letra da constituição a fim de preservar o seu espírito”.
Como epílogo, uma expressão popular que julgo adequada e sintética quanto baste: “Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades”.