A captura da democracia pelas falsas notícias institucionalizadas
“Nós agora somos um império, por isso quando atuamos, criamos a nossa própria realidade”, citação da administração Bush.
Quando as notícias falsas se tornaram omnipresentes, então todas e quaisquer notícias começam a serem suspeitas. Tudo aparecia como sendo mentira, mesmo as verdades.
“Não sou um nacionalista branco, sou um nacionalista. Sou um nacionalista económico. Os globalistas lixaram a classe trabalhadora americana e criaram uma classe média na Ásia”, Steve Bannon, mentor de Trump.
“O capitalismo só triunfa quando chega a identificar-se com o Estado, quando é o Estado”, Fernand Braudel.
A decadência da soberania dos Estados-nação é, aparentemente, o indicador de que o Estado tem vindo a ser derrotado pelas grandes empresas que hoje governam o Mundo. Vivemos, pois, numa época em que os imperialismos, sempre ligados aos estados-nação, irão progressivamente desaparecendo, dando lugar ao Império como nova forma de soberania que efetivamente regula os intercâmbios globais, um novo poder global soberano que governa o Mundo.
O filósofo italiano Antonio Negri (1933 -) vai ser dos primeiros a definir e identificar o conceito de Império (2000) como uma nova forma de soberania, distinta do imperialismo, desde logo pelo facto de não estabelecer nenhum centro de poder e por não se sustentar em fronteiras ou barreiras fixas, o que faz com que o seu domínio não tenha limites, e ainda por se apresentar como um regime histórico que não se origina pela conquista.
Outra das suas características é a de dominar e operar em todos os registos da ordem social, penetrando até ao mais profundo do mundo social. Não só regula as interações humanas, como ainda procura governar diretamente toda a natureza humana. “O império não só governa um território e uma população, com também cria o mundo que habita.”
Dirão que se trata de um filósofo marxista, como tal fora da realidade e com grandes culpas já provadas pela história. Só que o mesmo conceito de império é expresso, acarinhado e posto em prática pela administração Bush, e não só.
Num artigo de Ron Suskind publicado no NYTimes, 17 out 2004, (http://www.nytimes.com/2004/10/17/magazine/faith-certainty-and-the-presidency-of-george-w-bush.html?_r=0), ele descreve uma conversa tida no verão de 2002 com um conselheiro sénior de Bush, quando foi chamado à Casa Branca por causa de uma peça que tinha escrito na revista Esquire. Dizia-lhe o conselheiro:
“São pessoas como vocês que acreditam que as soluções emergem do vosso estudo judicioso da realidade discernível, pessoas que fazem parte da comunidade baseada na realidade”.
“Não é já mais assim que o mundo se move. Nós agora somos um império, e quando nós atuamos, criamos a nossa própria realidade. E, enquanto vocês estudam essa realidade – judiciosamente, como você faz – nós atuamos de novo, criando ouras novas realidades, que serão depois estudadas por vocês, e é como as coisas são feitas. Nós somos atores da história … e a você, e todos os outros, cabe-vos estudar o que nós fazemos.”
Se até essa altura as mentiras foram usadas para resolver alguns problemas com a intenção de dourar a pílula, de camuflar uma realidade existente para se conseguirem obter benefícios quase que imediatos, como foi por exemplo o caso do “incidente” do golfo de Tonquim, que levou à entrada dos americanos na guerra do Vietnam, o que se trata agora é de construir uma nova realidade total.
Foi o que assistimos na administração de George Bush com a sua criação de um universo paralelo onde Saddam Hussein possuía armas de destruição massiva, onde a Al Qaeda estava conluiada com todos os inimigos da América, e onde os EUA se encontravam encarregues por desígnio divino, de espalhar o evangelho da democracia liberal capitalista por todo o mundo. Nas palavras de Bush:
“Isto é uma nova forma – uma nova forma de Mal. E nós percebemos. E o povo americano está a começar a percebê-lo. Esta cruzada, esta guerra ao terrorismo vai demorar tempo.”
Todo o mundo acreditou nesta “criação”, participando nela ativamente. Segundo Negri, estávamos a assistir ao fim dos imperialismos e ao aparecimento do Império.
Com Trump, não assistimos à criação de novas realidades, mas à utilização indiscriminada e à proliferação de mentiras, muitas vezes sem qualquer consistência e frequentemente ridículas, em que algumas são depois descaradamente desditas e até negadas que tenham sido ditas, para poderem mais tarde voltar a serem ditas.
Claro que podemos pensar que tudo isto é um acontecimento individual proveniente de um espírito indisciplinado, errático, roçando desonestidade patológica. Mas, se lermos e ouvirmos o seu principal conselheiro e estratego, Steve Bannon (http://www.hollywoodreporter.com/news/steve-bannon-trump-tower-interview-trumps-strategist-plots-new-political-movement-948747) percebemos de imediato que Trump não devia ter sido subestimado.
Segundo Bannon, os elementos em que se apoia a estratégia que elaborou, são a dissimulação e a “escuridão”:
“O elemento escuro é bom. Dick Cheney. Darth Vader. Satã. Isso é poder. Só nos ajuda quando eles (os do outro lado, os da Clinton) não o percebem, quando percebem mal. Quando estão cegos sobre o que nós somos e sobre o que estamos a fazer.”
A estratégia é, pois, minar a perceção das pessoas de forma a que elas nunca saibam o que está na realidade a acontecer. Se as pessoas nunca sabem o que está a ser feito, nunca ninguém sabe na realidade o que é real ou o que é falso, o que deixa a oposição constantemente confusa. Quem conseguir fazer isto, vai conseguir gerir e controlar a situação.
Foi o que Trump e Bannon fizeram durante toda a campanha, bombardeando todos os media com consecutivas notícias falsas e surrealistas, por forma a aumentar a confusão. E, quando as notícias falsas se tornaram omnipresentes, então todas e quaisquer notícias começam a serem suspeitas. Tudo aparecia como sendo mentira, mesmo as verdades. Ironicamente, então aquele que dissesse as mentiras mais óbvias, seria tido como sendo o que, apesar de tudo, era o mais honesto. Era mais honesto que o outro.
Todos sabem que os combates de wrestling (luta) e os reality show das televisões (como os The Apprentice de que Trump era o dono e apresentador), eram “falsos”, ensaiados, e que os risos, gargalhadas e gritos, faziam parte do próprio divertimento dos programas. Todos sabem que tudo aquilo era combinado, mas continuam a querer lá estar, a querer participar e até ficarem envolvidos emocionalmente. Trump e Bannon perceberam isso muito bem: a sua intenção é conseguir transformar a política num reality show.
Se Bush conseguiu construir um mundo de fantasia com uma ordem interna lógica, Trump constrói um mundo que não é mais do que um mau sonho sem fim, um universo político onde os factos são instáveis e efémeros, que se seguem sem qualquer ligação causal, onde o perigo está em qualquer parte e onde a sua origem parece mudar aleatoriamente.
Com este modo de atuar, Trump ataca aquilo que se considera ser a base fundadora da democracia: o consenso. Dizia o Presidente Obama, (http://www.newyorker.com/magazine/2016/11/28/obama-reckons-with-a-trump-presidency) numa entrevista ao New Yorker:
“Idealmente, numa democracia, todos devemos concordar que a alteração do clima é uma consequência do comportamento humano, porque é o que nos dizem 99% dos cientistas. Depois, seguir-se-á um debate sobre o modo como o vamos resolver. Foi assim nos anos setenta, oitenta e noventa, quando os Republicanos acordaram com o Clean Air Act e se conseguiu um compromisso de base para a chuva ácida, sem recurso a uma solução imposta de cima. Pode-se discutir sobre os meios para alcançar, mas há sempre uma base comum de factos à partida, sobre os quais se poderá vir a trabalhar. E, agora, nós não temos isso.”
Ao atacar qualquer noção de uma visão comum da realidade, Trump torna impossível qualquer noção democrática de política. A verdade passa a ser pouco mais do que uma decisão pessoal.
Segundo os teóricos da escola de Bannon, é exatamente assim que as coisas se devem passar. A política do governo não deve ser medida pelos padrões democráticos. Deve, antes, ser o governo a “controlar e gerir” a democracia, assegurando que o povo se possa exprimir livremente sem os constrangimentos das máquinas do estado.
Um estudioso do assunto, Richard Sakwa, da Universidade de Kent, escreve que a base desta filosofia de “democracia controlada” reside no entendimento que:
“Não há verdadeiramente liberdade no mundo, e todas as democracias são democracias controladas e geridas; a chave para o sucesso é influenciar o povo, dar-lhe a ilusão de que são livres, quando na realidade são controlados.”
Diz-nos Bannon:
“Não sou um nacionalista branco, sou um nacionalista. Sou um nacionalista económico. Os globalistas lixaram a classe trabalhadora americana e criaram uma classe média na Ásia. O problema agora é fazer com que os americanos não sejam de novo fodidos. Se nós conseguirmos que isso não aconteça […] vamos governar por mais de 50 anos. Isto é o que os democratas não viram. Eles falavam-lhes em companhias de 9 biliões de dólares que empregavam nove pessoas. Isso não é a realidade. Eles perderam a noção da realidade que o mundo é.”
Há sessenta anos, o filósofo Roland Barthes, reuniu vários artigos sobre cultura popular, numa obra que intitulou de Mitologias. O primeiro dos artigos, “O mundo do ‘catch’”, refere-se ás diferenças existentes entre o boxe e o wresteling. Diz ele:
“O público sabe muito bem distinguir o catch do boxe; ele sabe que o boxe é um desporto jansenista, fundado sobre a demonstração de uma excelência; pode fazer-se uma aposta sobre o desfecho de um combate de boxe; no catch, isso seria inteiramente sem sentido. O combate de boxe é uma história que se vai construindo sob o olhar do espetador; no catch, pelo contrário, é só cada momento que é inteligível, não a duração no tempo […] A previsão racional do combate não interessa ao amador de catch, enquanto pelo contrário um match de boxe implica sempre uma ciência do futuro. Por outras palavras, o catch é uma soma de espetáculos, de que nenhum deles é uma função; cada momento impõe o conhecimento total de uma paixão que emerge vertical e solitária, sem se erguer nunca até ao coroamento dum epílogo.”
Não interessa que o catch seja uma atuação:
“Compreende-se que isso não importe e que a paixão seja ou não autêntica. O que o público reclama é a imagem da paixão, não a própria paixão. Não existe um problema de verdade no catch, como não o há no teatro.”
“Os lutadores sabem muito bem lisonjear o poder de indignação do público propondo-lhe o próprio limite do conceito de Justiça.”
O lutador de catch é “essencialmente um instável, que só admite as regras quando lhe são favoráveis e viola a continuidade formal das atitudes. Um homem imprevisível, logo um associal. Ele refugia-se atrás da lei quando julga que ela lhe é propícia e trai-a quando isso lhe convém; tão depressa nega o limite formal do ringue, e continua a zurzir num adversário protegido legalmente pelas cordas, como estabelece esse limite e reclama a proteção que uns momentos antes não respeitava.”
Julgando estar num combate de boxe, com regras fixas conhecidas, aguardavam por um soco de direita, quando o lutador profissional de wrestling, Trump, lhes deu na cabeça com uma cadeira.