A água nossa de cada dia nsos dai hoje
“Há uma opinião, que para mim é extremista, segundo a qual a água é um bem público.”
“A água é um bem alimentar como qualquer outro, e como qualquer bem alimentar deve ter um valor de mercado.”
Eis o que diz Peter Brabeck-Letmathe:
“A água é sem dúvida o mais importante recurso material que temos hoje no planeta […] a questão é de sabermos se devemos ou não privatizar o fornecimento de água à população. Há duas opiniões diferentes sobre o assunto. Há uma opinião, que para mim é extremista, segundo a qual a água é um bem público. Tal significa que todo ser humano deve ter direito à água. É uma solução extrema. Há outra opinião, que diz que a água é um bem alimentar como qualquer outro, e como qualquer bem alimentar deve ter um valor de mercado. Pessoalmente, julgo que é melhor dar a um bem alimentar um preço de mercado para que todos possam saber que ele tem um preço, e a partir daí tomarem-se as medidas específicas relativamente à parte da população que não tenha acesso à água, e há muitas e diferentes possibilidades para se fazer isso.”
Quem é Peter Brabeck-Letmathe?
Presidente do conselho de administração da Nestlé, vice-presidente do conselho de administração da L’Oréal (a maior companhia do mundo de cosmética e beleza), vice-presidente do conselho de administração do Credit Suisse Group (um dos maiores bancos do mundo), membro do conselho de administração da Exxon Mobil (um dos maiores conglomerados de petróleo e energia), membro do conselho de administração da Roche (um dos maiores conglomerados farmacêuticos), membro do conselho de fundadores do Worl Economic Forum (“guardião da missão, valores e marca … responsável por inspirar a confiança do público e dos negócios através de uma governação exemplar”), membro da European Rond Table of Industrialists (grupo de CEOs de empresas europeias que aconselham diretamente e ajudam a indicar o caminho a seguir pala União Europeia), presença assídua no grupo de Bilderberg (fórum anual que reúne 130 das elites de empresas, bancos, media, política e militar, da Europa Ocidental e América do Norte).
Quando ele fala sobre alimentos e água, os poderosos escutam.
Ele aparece como o paladino da sustentabilidade da água, “do acesso universal à água, o que só será possível através da atribuição de um preço razoável”. Contudo, este seu interesse relativo à escassez da água e à necessidade de dotar os povos pobres do mundo com acesso à água potável, nada tem que ver com humanismo ou filantropia.
“Se a Nestlé e eu chamamos a atenção para este problema, tal não tem que ver com filantropia, mas com algo muito mais simples: da análise […] sobre o que é o fator mais importante para a sustentabilidade da Nestlé, a água é o número um. […] Creio que isto faz parte da responsabilidade da companhia. Mas se eu estivesse noutra indústria diferente teria certamente outro assunto prioritário no qual deveria estar focado”.
E continua a explicar porque essa é responsabilidade da companhia: “Se eu quiser convencer os meus acionistas de que esta indústria é sustentável a longo prazo, tenho de assegurar que todos os aspetos que são vitais para a companhia sejam sustentáveis […] Quando vejo, como no nosso caso, que um dos aspetos – que é a água, necessária para produzir as matéria primas para a nossa companhia – não é sustentável, então a minha empresa não é sustentável. Por isso eu tenho de fazer qualquer coisa. Daí que os interesses dos acionistas e os da sociedade serem comuns.”
Quanto à filantropia, Brabeck é também muito claro: “Eu não sinto que tenha de dar qualquer retribuição à sociedade, porque nós não roubámos nada à sociedade […] isso é um problema para os CEOs de qualquer empresa, porque eu penso que nenhum CEO deve ser autorizado a fazer filantropia […] Penso que quem quiser fazer filantropia deve fazê-lo com o seu próprio dinheiro e não com o dinheiro dos acionistas […] Concordar com a responsabilidade social das empresas significa concordar com custos adicionais.”
Breve: quando Brabeck e a Nestlé patrocinam a “sustentabilidade da água”, o que estão a fazer é promoverem a garantia da sustentabilidade da Nestlé através do controle e acesso à água existente. E sendo a Nestlé uma grande multinacional, a solução natural será fazê-lo através do controle do mercado da água, ou seja, da privatização e monopolização do fornecimento mundial da água nas mãos de poucas corporações.
Convém lembrar que quando se fala em privatizar a água, não se está a falar sobre a “leal competição” que tal bem-intencionado processo acarretaria, e isto porque em todo o mundo só existem uma meia dúzia de corporações capazes dessas privatizações a escala global: a Suez Environment, a Veolia Environment, seguidas da Thames Water, Nestlé, PepsiCo e Coca-Cola.
A agenda para a privatização da água está organizada a nível internacional, através do World Water Forum (WWF) e do World Water Council (WWC). A WWC aparece em 1996 como um organização francesa não lucrativa, com mais de 400 membros entre organizações intergovernamentais, agências governamentais, corporações, ONGs dominadas por corporações, organizações ambientais, companhias de água, organizações internacionais e instituições académicas.
A cada três anos a WWC recebe o WWF, onde milhares de participantes de todo o mundo se reúnem para decidirem do futuro da água, e claro está, para promoverem a sua privatização. Para além dos membros normais da organização, encontram-se lá o African Development Bank, African Union Commission, Arab Water Council, Asian Development Bank, Conselho da Europa, Comissão Europeia, Banco Investimento Europeu, Parlamento Europeu, EuropeanWater Assiciation, Food and Agricultural Organization, Global Environment Facility, Inter-American Development Bank, Nature Conservancy, Organização dos Estados Americanos, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Oxfam, Banco Mundial, Organização Mundial de Saúde, World Wildlife Fund, e vários sponsors como a RioTinto, Alcan, EDF, Suez Environment, Veolia, HSBC.
Mais ainda: no WWF de 2008 foi formado por um consórcio de corporações e organizações internacionais o “2030 Water Resources Group”, evidentemente presidido por Peter Brabeck. A finalidade do “2030” é a de dar “forma à agenda” para a discussão dos recursos da água, e “criar novos modelos para a colaboração” entre as entidades públicas e privadas. Eram seus administradores o vice-presidente e CEO da International Finance Corporation (IFC), braço de investimento do Banco Mundial, o administrador do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP), o diretor executivo do WWF, o presidente do Banco Africano para o Desenvolvimento, o presidente e CEO da Coca-Cola, o presidente do Banco Asiático para o Desenvolvimento; o diretor geral da World Wildlife Fund, o presidente do Banco de Desenvolvimento Inter-Americano, o presidente e Ceo da PepsiCo, e outros.
Com tantas tão bem intencionadas e preocupadas pessoas em resolver os problemas ambientais, podemos descansar: vai haver água para todas as pessoas, muita água para todo o sempre se…
Se esta vasta e complexa operação for razoavelmente bem-sucedida, está-se já a pensar avançar para o ar: vendo bem, não passa de água vaporizada, mais coisa menos coisa.
Se já bebemos água de marca engarrafada, se já tapamos os ouvidos com auscultadores para não ouvirmos o som deste mundo, se já tapamos os olhos com óculos para conseguirmos ver melhor o verdadeiro mundo que gostamos e que não é este, porque não taparmos nariz e boca para consumirmos o bom ar engarrafado de marca que não é o que temos? Se os colonos de Marte vivem e respiram esse bom ar nos seus fatos e nas suas casas, porque não termos direito e liberdade para termos esse bom ar nos nossos apartamentos e nos nossos fatos? Vamos todos dar aos nossos filhos casas com ar puro, muito puro, para que eles possam ficar confortavelmente desempregados em casa e viver muito tempo. Quanto ao vestuário à colono-astronauta, a moda se encarregará disso.
O Livro das Orações virá acrescentado com a seguinte imploração:
“O ar nosso de cada dia nos dai hoje, aqui na Terra como em Marte.”