(555) Senhores da guerra
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Somos uma cultura definida pela guerra. Gostaria que antes nos pudéssemos diferenciar por outras coisas, Kathryn Bigelow.
Em 243 anos, de 1776 a 2019, os Estados Unidos realizaram 392 intervenções militares, Toft e Kushi.
E o ritmo dessas intervenções tem vindo a acelerar ao longo do tempo.
E os conflitos atuais não são acidentes geopolíticos, mas o resultado direto de uma longa história em que Washington procurou impor a sua vontade pela força.
Embora nos custe a aceitar, é muito bem possível que o “instinto bélico” tenha feito sempre parte dos seres humanos, isto se não quisermos recuar um pouco mais até ao ser vivo primordial, aquela celulazinha que para se alimentar e na ausência de melhor comia outras celulazinhas, parecidas ou não.
Quando elas se juntaram em organismos e depois em vizinhos similares, rapidamente se transformaram em bandos que se defendiam e atacavam, escolhendo por vários processos os que melhores resultados alcançassem. Foram assim surgindo os “senhores da guerra”.
Os senhores da guerra existiram ao longo de grande parte da história, embora numa variedade de diferentes capacidades dentro da estrutura política, económica e social dos estados ou territórios não governados.
Segundo a definição abrangente do Merriam Webster Unabridged Dictionary (2000): "1: um líder militar supremo; 2: um comandante militar que exerce poder civil tomado ou mantido pela força, geralmente puramente por interesse próprio e geralmente sobre uma região limitada, com ou sem reconhecimento de um governo central, por vezes tendo controlo efetivo sobre o governo ou administração central e, por vezes, obtendo reconhecimento de facto ou de direito de potências estrangeiras."
Com o aparecimento e desenvolvimento das Nações e dos Estados e dos Impérios, estas caraterísticas bélicas foram sendo internalizadas e assumidas.
Para os interessados nesse processo, aqui deixo um PDF de Chales Tilly que certamente acrescentará mais sobre o assunto: War Making and State Making as Organized Crime.
Longe vão os tempos em que Alguém preconizava que perante uma bofetada se deveria mostrar a outra face …
Monica Duffy Toft e Sidita Kushi, professores americanos em Ciência Política, vão em 2023, com base no mais abrangente conjunto de dados existente, do Projeto de Intervenção Militar (MIP), publicar o livro Dying by the Sword, The Militarization of US Foreign Policy, onde entre outros comprovam que os Estados Unidos são o Estado mais intervencionista da história moderna, rivalizado apenas pelo Império Britânico: em 243 anos, de 1776 a 2019, os Estados Unidos realizaram 392 intervenções militares.
Além disso, verificaram também que o ritmo dessa intervenção tem vindo a acelerar ao longo do tempo. Entre 1776 e 1945, Washington interveio aproximadamente uma a uma vez e meia por ano. Durante a Guerra Fria, este número subiu para quase 2,5 intervenções anuais. Após a Guerra Fria, aumentou para 4,6 por ano e, desde 2001, tem-se mantido bastante elevado, com 3,6 intervenções anuais.
A exceção foi o ano de 1974, último ano em que os Estados Unidos não fizeram sequer uma nova intervenção militar. Antes disso, a única outra pausa verificada foi em 1952. Daí Toft e Kushi poderem concluir que a guerra constante tornou-se o padrão americano. O que aliás não se afasta muito da perceção dos norte-americanos: recentemente, a realizadora Kathryn Bigelow (The Hurt Locker, Zero Dark Thirty, A House of Dynamite) expressou numa entrevista que “Nós somos uma cultura definida pela guerra. Gostaria que antes nos pudéssemos diferenciar por outras coisas”.
Um dos factos estatísticos mais interessantes revelados por Toft e Kushi é que os principais adversários dos Estados Unidos de hoje são os próprios países em que o país interveio com mais frequência ao longo da sua história. Os sete principais são: China, Rússia, México, Coreia do Norte, Cuba, Irão e Nicarágua.
O que emerge é um quadro preocupante: os conflitos atuais não são acidentes geopolíticos, mas o resultado direto de uma longa história em que Washington procurou impor a sua vontade pela força.
Por outras palavras, os inimigos mais duradouros dos Estados Unidos são, em grande medida, aqueles que ajudaram a criar. E, crucialmente, as intervenções militares, a interferência, as sanções económicas e as constantes ameaças dos EUA nestes países, longe de construir estabilidade, deixaram antes legados de ressentimento, desconfiança e resistência. Não só enraizaram ciclos de hostilidade, como quase certamente contribuíram para a sua falta de democracia, liberalismo e prosperidade – os regimes autoritários que Washington agora demoniza são, em grande parte, o produto das suas próprias agressões.
Quando as pessoas vivem sob o cerco de uma grande potência, quando as suas sociedades são marcadas pela violência, pela pobreza e pela erosão da educação e das oportunidades, não se tornam mais democráticas ou liberais. Em vez disso, o medo, as dificuldades e a insegurança criam um terreno fértil para o governo autoritário – e as agressões de Washington têm contribuído repetidamente para isso mesmo. Em termos mais claros, os Estados Unidos fabricam os seus próprios inimigos e depois condenam-nos pelas mesmas condições que ajudaram a criar.
Mas talvez a descoberta mais chocante do livro venha da comparação dos níveis de hostilidade dos EUA com os dos seus inimigos. Durante a Guerra Fria, os níveis de hostilidade eram aproximadamente simétricos. Mas em todos os períodos anteriores e posteriores, os Estados Unidos demonstraram níveis de hostilidade mais elevados do que os dos seus adversários – muitas vezes significativamente mais elevados.
Isto sugere fortemente que a maioria das guerras americanas ao longo da sua história não foram guerras defensivas, mas guerras imperiais por opção, nas quais Washington foi o principal impulsionador. Além disso, desde 1776 até ao fim da Guerra Fria, mais de 75% de todas as intervenções americanas foram unilaterais. Desde 1990, esta percentagem desceu para 57,7%. O que significa que Washington nunca se preocupou muito com a opinião global ou com o direito internacional.
Este padrão de intervenção mostra que as guerras dos Estados Unidos raramente foram guerras de sobrevivência. Foram, na sua esmagadora maioria, guerras de escolha, impulsionadas por ambições expansionistas, comerciais e imperiais.
Ou não fosse um Império!!!