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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(554) As barbáries subjacentes das civilizações

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Todo o choque de civilizações é na realidade o choque entre as barbáries que lhes estão subjacentes, Walter Benjamin.

 

Toda a nossa vida assenta em mundos subterrâneos, por vezes muito escuros, que necessitam ser revolvidos.

 

Não permitiremos que os indivíduos que apoiam o terrorismo vivam confortavelmente. Enfrentarão todas as consequências das suas ações, Ben-Gvir.

 

Nunca aconteceu, o secretismo daquilo que o poder faz sem nunca o reconhecer.

 

 

 

 

 

 

É Freud que nos seus estudos sobre os sonhos os vai relacionar intimamente com as nossas regiões interiores que precisavam de ser agitadas e perturbadas. Mas, se virmos bem, não serão apenas os sonhos: toda a nossa vida quotidiana, os nossos costumes, assentam em mundos subterrâneos, por vezes muito escuros, que necessitam ser revolvidos.

Sabemos que pertencer a uma sociedade trás consigo momentos em que nos é ordenado que aceitemos livremente (obviamente fazendo a ‘nossa’ escolha), aquilo que de outra maneira nos é imposto.

E que para se poder viver numa sociedade temos de seguir um certo número de regras que nos aparecem como costumes. Os costumes são um conjunto complexo e intrincado de regras informais que nos permitem saber lidar com as normas explícitas da sociedade em que vivemos, para que as saibamos aplicar e aceitar, mesmo quando essa aceitação implique um jogo de desrespeito mutuamente consentido.

São usos e costumes as nossas ideias sobre o mal e o bem, sobre o que é agradável e desagradável, o que é divertido e sério, o que é belo e feio, bem como o sentido de honra, os modos à mesa, o modo de falar, o sotaque, o vestuário, o cheiro. Tudo isto são ideias da classe média em que estamos inseridos e que nos definem como seres sociais, muitas vezes contrastando com a perceção que temos de nós próprios.

Mas os usos e costumes não se restringem só a esta parte leve e séria acima exposta. Há também aquela parte subterrânea pesada e obscena, extremamente difícil de transformar, que constitui o inconsciente dos costumes. São casos recorrentes como, por exemplo, os da pedofilia na Igreja Católica (não só), os das praxes militares e os das torturas infligidas.

 

Em “Mover as regiões infernais” socorri-me de uma citação de Walter Benjamin em que ele diz que “todo o choque de civilizações é na realidade o choque entre as barbáries que lhes estão subjacentes”, para me referir ao então acontecido na prisão de Abu Ghraib, Iraque, onde soldados americanos tiraram fotografias torturando  e humilhando presos iraquianos.

Zizek vai, contudo, chamar-nos também a atenção para o facto de o choque entre as civilizações árabe e americana não ser um choque entre a barbárie e o respeito pela dignidade humana, mas antes “um choque entre a tortura brutal e anónima (como a de Saddam e outros, iminentemente física e escondida) e a tortura como espetáculo mediático no qual os corpos das vítimas servem de pano de fundo anónimo ao sorriso dos ‘rostos americanos inocentes’ dos próprios torcionários.”

Atente-se ainda num outro problema que aparece focado no filme A Few Good Men (Uma Questão de Honra) de Bob Reiner, com Jack Nicholson, Tom Cruise e Demi Moore. Fuzileiros americanos acusados de espancarem um seu camarada e de lhe provocarem a morte fazem-no a coberto de uma regra não-escrita (o Código Vermelho) que autoriza essa atuação quando um soldado tenha infringido as obrigações éticas dos Marines. Apesar de ilegal, esse código verbal é suposto servir para a coesão do grupo e é do total conhecimento e aprovação dos superiores.

Tal como com o Código Vermelho, também aqui a norma é o secretismo daquilo que o poder faz sem nunca o reconhecer. As torturas reveladas nas fotografias de Abu Ghraib embora não diretamente ordenadas caem nesta região da legitimação superior obscena sem a qual os soldados nunca se atreveriam a fazê-las. As tais “regiões infernais” a mover.

 

Mais sofisticadamente, provavelmente até por milenar inserção histórica, os representantes do Estado de Israel, através do seu Ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, começam logo abertamente por dizer o que irá acontecer. Assim, afirmou no mês passado que os ativistas da Flotilha Global Sumud deviam ser tratados como terroristas para "criar uma clara advertência " a futuros ativismos de outras flotilhas, declarando que "qualquer pessoa que opte por colaborar com o Hamas e apoiar o terrorismo encontrará uma resposta firme e inflexível de Israel".

"Não permitiremos que os indivíduos que apoiam o terrorismo vivam confortavelmente. Enfrentarão todas as consequências das suas ações".

 

 

Numa entrevista ao jornal sueco Aftonbladet, Greta Thunberg corroborou relatos anteriores de testemunhas oculares de que ela e os seus colegas ativistas da Flotilha Global Sumud foram sujeitos a abusos por parte das autoridades israelitas depois de terem sido sequestrados dos seus barcos em que transportavam ajuda humanitária para os palestinianos em Gaza.

 

Eis alguns excertos da entrevista:

 

Agarraram-me, atiraram-me para o chão e atiraram uma bandeira israelita por cima de mim.”

Arrastaram-me para o lado oposto onde os outros estavam sentados, e eu fiquei com a bandeira à minha volta o tempo todo. Bateram-me e pontapearam-me.”

Levaram-me com muita brutalidade para um canto para onde estava virada. ‘Um lugar especial para uma senhora especial’, disseram. E depois repetiam o tempo todo ‘Lilla hora’ (Puta vagabunda) e ‘Hora Greta’ (Puta Greta) em sueco que aprenderam.

 

No canto onde Greta estava sentada, a polícia colocou uma bandeira. "A bandeira foi colocada por forma a tocar-me. Quando tremulava e me tocava, gritavam 'Não toques na bandeira' e pontapeavam-me desse lado. Passado um bocado, as minhas mãos foram amarradas com braçadeiras, muito apertadas. Um bando de guardas fez fila para tirar selfies comigo enquanto eu estava sentada daquela maneira."

 

"Foram atirados para o chão e espancados. Mas eu só conseguia ver com o canto do olho, porque cada vez que levantava a cabeça do chão, era pontapeada pelo guarda que estava ao meu lado."

 

Greta foi então levada para um edifício para ser revistada e despida. "Os guardas não têm empatia nem humanidade e continuam a tirar selfies comigo. Há muita coisa de que não me lembro. Acontece tanta coisa ao mesmo tempo. Fica-se em choque. Sente-se dor, mas entra-se num estado de tentar manter a calma."

Lá fora, foi obrigada novamente a tirar a roupa, e conta. "Foi uma troça, um tratamento rude, e tudo foi filmado. Tudo o que fazem é extremamente violento."

"Estava tão quente, tipo 40 graus. Implorávamos o tempo todo: Podemos ter água? Podemos ter água? No final, gritávamos. Os guardas andavam em frente às grades o tempo todo, rindo e segurando as suas garrafas de água. Atiravam as garrafas com água para os contentores do lixo à nossa frente."

"Quando as pessoas desmaiavam, batíamos nas jaulas e pedíamos um médico. Depois vinham os guardas e diziam: 'Vamos matar-vos com gás'. Era comum dizerem isso."

 

"Isto mostra que, se Israel, com o mundo inteiro a assistir, pode tratar desta forma uma pessoa branca e conhecida, com passaporte sueco, imagine-se o que fazem aos palestinianos à porta fechada."

 

 

Após o rapto dos ativistas da flotilha pelas Forças de Defesa de Israel (IDF), Ben-Gvir filmou-se a provocá-los e a chamar-lhes "terroristas" e disse que "estava orgulhoso por tratarmos os 'ativistas da flotilha' como apoiantes do terrorismo".

As autoridades israelitas negaram as alegações de Greta, com o ministro dos Negócios Estrangeiros a afirmar numa declaração ao Telegraph: “Todos os seus direitos legais foram plenamente respeitados. Curiosamente, a própria Greta recusou-se a acelerar a sua deportação e insistiu em prolongar a sua permanência sob custódia. Também nunca apresentou qualquer queixa às autoridades israelitas sobre estas alegações ridículas e infundadas – porque simplesmente nunca aconteceram”.

 

Já no Apocalipse Now, a missão dada a Willard (Martin Sheen) para matar Kurtz (Marlon Brando), não fica registada. Conforme diz o general que transmite as instruções a Willard: “Nunca aconteceu”.

A ficção como verdade. A verdade como ficção.

 

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