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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(553) Os futuros da Europa

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Cortar economicamente ao meio o continente europeu foi um ato de loucura suicida.

 

Estabelecer como horizonte social a ideia de que um homem pode realmente tornar-se mulher e uma mulher homem é afirmar algo biologicamente impossível, é negar a realidade do mundo, é afirmar o falso, E. Todd.

 

Uma descida à distopia, a um mundo negativo onde se misturam poder, fragmentação, hierarquia, violência, pobreza e perversidade

 

 

 

 

Em 1976, o antropólogo e historiador francês Emmanuel Todd previu em La chute finale: Essai sur la décomposition de la sphère Soviétique, a queda da União Soviética. Em 2001, com Après l’Empire : Essai sur la décomposition du système américain, previu o declínio (relativo) dos Estados Unidos.

Em 2024, no seu último livro, La Défaite de l’Occident, lamenta a condição em que o ocidente se colocou devido à incapacidade para distinguir os factos dos desejos. Basicamente assenta essa conclusão naquilo que declara ter vindo a infestar o pensamento ocidental: o niilismo, a falta de valores e a falta de aceitação da realidade.

 

É para Todd clara essa incapacidade assim que a Europa deixou de se ver integrada num espaço natural geográfico do qual a Rússia também fizesse parte (do que aliás sempre fez parte), autoamputando-se da possibilidade de ser considerada como polo mundial.

E sem querer ser moralista, vai atribuir isso à “fixação das classes médias ocidentais em questões de ultraminoritários […] como a ideologia trans […] o que levanta uma questão sociológica e histórica.”  Embora os indivíduos trans devam ser protegidos, “estabelecer como horizonte social a ideia de que um homem pode realmente tornar-se mulher e uma mulher homem é afirmar algo biologicamente impossível, é negar a realidade do mundo, é afirmar o falso”.

É o mesmo que utilizar como “uma das bandeiras deste niilismo que define agora o Ocidente, este impulso para destruir não só as coisas e as pessoas, mas a realidade” o que o Unabomber  proclamava no seu manifesto:   

 

Devemos estar preparados para defender a ideia de que, em princípio, todos devem ter acesso a cuidados médicos de mudança de sexo, independentemente da idade, identidade de género, ambiente social ou antecedentes psiquiátricos.”

 

 

A pedido da editora eslovena, Todd escreveu agora um novo prefácio para La Défaite de l’Occident, que acabou de publicar debaixo do título “The dislocation of the West: what threatens us”, e que aqui reproduzo/traduzo parcialmente:

 

Menos de dois anos após a publicação francesa de La Défaite de l’Occident, em janeiro de 2024, as principais previsões do livro concretizaram-se. A Rússia resistiu à tempestade militar e economicamente. A indústria militar americana está exausta. As economias e sociedades europeias estão à beira da implosão. O exército ucraniano ainda não entrou em colapso, mas o estágio de desagregação do Ocidente já foi atingido.

 

Sempre fui hostil às políticas russofóbicas dos Estados Unidos e da Europa, mas, como ocidental comprometido com a democracia liberal, francês formado em investigação em Inglaterra, filho de uma mãe refugiada nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, estou devastado pelas consequências para nós, ocidentais, da guerra travada sem inteligência contra a Rússia.

 

Estamos apenas no início da catástrofe. Aproxima-se um ponto de viragem, para além do qual se desenrolarão as consequências finais da derrota.

Temo agora que os nossos meios de comunicação social exacerbem a nossa cegueira por serem incapazes de imaginar o renovado prestígio da Rússia no resto do mundo, que tem sido explorada economicamente e tratada com arrogância pelo Ocidente durante séculos. Os russos ousaram. Desafiaram o Império e venceram.

 

A ironia da história é que os russos, um povo europeu e branco que fala uma língua eslava, tornaram-se no escudo militar do resto do mundo porque o Ocidente se recusou a integrá-los após a queda do comunismo.

 

Posso esboçar aqui um modelo da desarticulação do Ocidente, apesar das incoerências das políticas de Donald Trump, o presidente americano derrotado. Estas incoerências não resultam, creio, de uma personalidade instável e indubitavelmente perversa, mas de um dilema insolúvel para os Estados Unidos. Por um lado, os seus líderes, tanto no Pentágono como na Casa Branca, sabem que a guerra está perdida e que a Ucrânia terá de ser abandonada. O bom senso leva-os, portanto, a querer sair da guerra. Mas, por outro lado, o mesmo bom senso fá-los perceber que a retirada da Ucrânia terá consequências dramáticas para o Império que as do Vietname, do Iraque ou do Afeganistão não tiveram. Esta é, aliás, a primeira derrota estratégica americana à escala global, num contexto de desindustrialização maciça nos Estados Unidos e de difícil reindustrialização.

A desdolarização da economia global começou. Trump e os seus conselheiros não podem aceitar isto porque significaria o fim do Império. No entanto, uma era pós-imperial deveria ser o objetivo do projeto MAGA (Make America Great Again), que procura o regresso ao Estado-nação americano. Mas para uma América cuja capacidade produtiva em bens reais é hoje muito baixa … é impossível abdicar de viver a crédito, como acontece com a produção de dólares. Tal retirada imperial-monetária significaria uma queda acentuada do seu nível de vida, incluindo para os eleitores populares de Trump. O primeiro orçamento do segundo mandato de Trump, o "One Big Beautiful Bill Act", permanece, portanto, imperial, apesar das proteções tarifárias que personificam o projeto ou sonho protecionista. O OBBBA aumenta as despesas militares e o défice. Um défice orçamental nos Estados Unidos significa inevitavelmente produção de dólares e défice comercial.

A dinâmica imperial, ou melhor, a inércia imperial, continua a minar o sonho de um regresso ao Estado-nação produtivo.

 

Na Europa, a derrota militar [na Ucrânia] continua a ser mal compreendida pelos líderes. Não dirigiram as operações. Foi o Pentágono que desenvolveu os planos para a contraofensiva ucraniana no Verão de 2023 (durante o qual escrevi "A Derrota do Ocidente"). Os militares americanos, embora tivessem o seu representante ucraniano a combater na guerra, sabiam que tinham sido derrotados pela defesa russa – porque não conseguiam produzir armas suficientes e porque os militares russos foram mais inteligentes do que eles. Os líderes europeus apenas forneceram sistemas de armas, e não os mais importantes.

Desconhecendo a extensão da derrota militar, sabem, no entanto, que as suas próprias economias foram paralisadas pela política de sanções, especialmente pela interrupção do fornecimento de energia russa barata. Cortar o continente europeu ao meio economicamente foi um ato de loucura suicida. A economia alemã está estagnada. A pobreza e a desigualdade estão a aumentar em todo o Ocidente. O Reino Unido está à beira do colapso. A França não está muito atrás. As sociedades e os sistemas políticos estão paralisados.

Uma dinâmica económica e social negativa já existia antes da guerra e pressionava o Ocidente. Era visível, em diferentes graus, em toda a Europa Ocidental. O comércio livre está a minar a base industrial. A imigração está a desenvolver uma síndrome de identidade, particularmente entre as classes trabalhadoras, privadas de empregos seguros e bem remunerados.

 

Mais profundamente, a dinâmica negativa da fragmentação é cultural: o ensino superior em massa cria sociedades estratificadas nas quais os altamente instruídos – 20%, 30%, 40% da população – começam a viver entre si, a considerar-se superiores, a desprezar as classes trabalhadoras e a rejeitar o trabalho manual e a indústria. A educação primária para todos (alfabetização universal) alimentou a democracia, criando uma sociedade homogénea com um subconsciente igualitário. O ensino superior deu origem a oligarquias e, por vezes, a plutocracias, sociedades estratificadas invadidas por um subconsciente desigual. O paradoxo final: o desenvolvimento do ensino superior acabou por produzir um declínio nos padrões intelectuais destas oligarquias ou plutocracias!

 

A guerra elevou as tensões europeias a um nível ainda mais elevado. Está a empobrecer o continente. Mas, acima de tudo, como um grande fracasso estratégico, está a deslegitimar líderes incapazes de conduzir os seus países à vitória. O desenvolvimento dos movimentos populares conservadores (geralmente designados pelas elites jornalísticas por "populistas", "extrema-direita" ou "nacionalistas") está a acelerar. Reform UK no Reino Unido, AfD na Alemanha, Rassemblement National em França.... Ironicamente, as sanções económicas que a NATO esperava que provocassem uma "mudança de regime" na Rússia estão prestes a desencadear uma cascata de "mudanças de regime" na Europa Ocidental.

Uma das características interessantes dos Estados Unidos de hoje é que os seus líderes têm cada vez mais dificuldade em distinguir entre questões internas e externas, apesar da tentativa do MAGA de impedir a imigração do Sul com um muro. O exército dispara sobre barcos que saem da Venezuela, bombardeia o Irão, entra no centro de cidades democratas nos Estados Unidos e patrocina a força aérea israelita para um ataque ao Qatar, onde existe uma enorme base americana. Qualquer leitor de ficção científica reconhecerá nesta lista perturbadora o início de uma descida à distopia, isto é, um mundo negativo onde se misturam poder, fragmentação, hierarquia, violência, pobreza e perversidade.

 

Portanto, continuemos a ser nós próprios, fora da América. Mantenhamos a nossa perceção do interior e do exterior, o nosso sentido de proporção, o nosso contacto com a realidade, a nossa conceção do que é certo e belo. Não nos deixemos arrastar para uma corrida precipitada para a guerra pelos nossos próprios líderes europeus, esses indivíduos privilegiados perdidos na história, desesperados por terem sido derrotados, aterrorizados com a ideia de um dia serem julgados pelos seus povos. E, sobretudo, acima de tudo, continuemos a refletir sobre o sentido das coisas.

 

Paris, 28 de setembro de 2025.

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