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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(495) Os alemães de Hitler

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Nenhuma sociedade pode renunciar à ordem do espírito sem se destruir a si mesma, Voegelin.

 

A baixeza e abjeção da sociedade alemã no seu conjunto, foi o que propiciou que uma personagem de índole tão duvidosa se convertesse no timoneiro do Estado, Voegelin.

 

A ti, também, filho do homem, eu te faço sentinela da casa de Israel. Quando oiças uma palavra da minha boca, adverti-los-ás por minha parte”, o profeta Ezequiel.

 

 

 

 

O filósofo político alemão Eric Voegelin, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de Viena, viu-se forçado em 1938, pouco tempo depois da vitoriosa e aclamada entrada/marcha/ocupação das forças nazis na Áustria, a refugiar-se na Suíça, daí seguindo para os Estados Unidos, onde acabou por lecionar em várias universidades de topo.

Terminada a Guerra, após receber em 1958 um convite da Universidade Ludwig Maximilian de Munique para reger a prestigiosa cátedra de Ciência Política, que se encontrava vaga desde a morte de Max Weber, e para criar um Instituto de Ciência Política onde poderia formar e dirigir uma equipa de investigadores por si escolhidos, Voegelin resolveu regressar à “sua” Alemanha.

Só que o ambiente político e cultural que encontrou vai rapidamente dececioná-lo. Ao começar por oferecer um curso que julgava ser de interesse sobre “Hitler e os Alemães”, apercebeu-se que para a opinião comum tudo isso era passado que não interessava, porque todos os ‘deslizes’ cometidos tinham já sido pagos com a derrota e a ocupação. O que os alemães queriam era sobretudo esquecer, deixar para trás a tragédia do nazismo como se tal se tivesse tratado de um mau sonho, um pesadelo. Um desvario pontual, sem força suficiente para macular a ‘verdadeira’ consciência nacional.

A expiação era considerada como tendo sido concluída: não tinham já sido suficientes as depurações e os processos contra algumas das chefias nacional-socialistas? Não tinham já sido suficientes para o conhecimento detalhado do passado, as investigações, a documentação judicial e o trabalho dos historiadores? Não tinha já tudo isso sido suficiente para inocular com anticorpos a sociedade alemã para que a barbárie não voltasse a acontecer?

 

Contudo, Voegelin, atento observador da sociedade, ia-se todos os dias deparando com grandes títulos na comunicação social que mostravam a tibieza das autoridades para com os partidários confessos do nazismo e com a equidistância que se ia estabelecendo entre vítimas e verdugos.

 O que o levou a denunciar a conivência dos seus coetâneos com o nazismo, em especial, contra a presença de ex-dirigentes do Terceiro Reich na cúpula administrativa do novo Estado.

E a chamar a atenção para a subtil continuidade entre as antigas simpatias pelo nacional-socialismo e a forma inconsequente (sem consequências práticas) como parte das autoridades assumia a “culpa” do país. Exemplo disso era o perfil de Hitler recém-publicado no Der Spiegel, o que inclusivamente o vai fazer alterar o programa inicial que tinha elaborado sobre Teoria Política passando-o antes para uma análise critica do papel da sociedade alemã durante a ascensão do nazismo.

 

Apesar de considerar que a responsabilidade era sempre individual, na medida em que cada qual deve pagar pessoalmente pelo que fez,  Voegelin também acreditava que embora os delitos não se devam atribuir ao conjunto da sociedade devido à dinâmica da representação que estrutura a vida social, o caso é que se a ação dos que representam uma sociedade não respeitar a justiça, a injustiça daí resultante repercute-se em todos os que a integram, e portanto, uns e outros, sejam ou não culpados, devem enfrentar as consequências.

Este era o “princípio antropológico” já por si expresso em A nova ciência política, e segundo o qual existem homologias e simetrias de índole especialmente moral e espiritual entre os indivíduos e a polis que os conforma. Daí que para ele, as baixezas e vilanias de Hitler estavam estreitamente vinculadas à corrupção generalizada do país que o elegeu nas urnas.

Hitler não foi aquele líder perverso, acidente extemporâneo e pontual na história da Alemanha, que com maestria conduziu cidadãos irrepreensíveis para o precipício moral e para a derrota da guerra. “A baixeza e abjeção da sociedade alemã no seu conjunto, foi o que propiciou que uma personagem de índole tão duvidosa se convertesse no timoneiro do Estado.”

 

Daí que nas onze sessões que o seu curso ocupava, Voegelin se vá dedicar a identificar, um a um, os coletivos do povo alemão que, com maior ou menor relevo, mas com igual mesquinhez, tivessem aplaudido e acatado a ideologia nacional-socialista: políticos sem escrúpulos, juristas timoratos, burocratas e militares servis, académicos e professores da universidade malévolos e incompetentes, teólogos de ambas as confissões, todos compartiam da mesma indignidade, tendo abdicado dos seus deveres humanos.

Não foi, pois, de estranhar a campanha de desprestígio que na comunicação social foi crescendo contra Voegelin, acusando-o de odiar os alemães ou de o considerarem sectário e arrogante. Tudo isto e ainda a incompreensão do seu trabalho por parte de colegas europeus e o aparecimento de um novo radicalismo político nas universidades, levaram-no a deixar definitivamente a Europa, regressando em 1969 à sua pátria de adoção, os Estados Unidos.

 

É importante perceber que estas posições de Voegelin sobre o nacional-socialismo não advêm dum combate meramente partidário; elas partem de fortes convicções filosóficas.

 

Para ele, a abertura ao ser divino transcendente como vivência constitutiva do ser humano é indispensável para o seu desenvolvimento. Revoltar-se contra ela é possível, mas tal conduzirá inexoravelmente à desumanização. Ou seja, a experiência humana central é a transcendência.

Na sua famosa tese (As religiões políticas) sobre a origem gnóstica da Idade Moderna, caraterizada pelo seu abandono paulatino e prévio da experiência de Deus, e que termina com a reafirmação do humano, Voegelin vê o início do processo mais amplo de repúdio da transcendência em que o Ocidente se vem obstinando.

A renúncia à transcendência quebra o laço que liga o ser humano com o seu fundamento divino, desbaratando ao mesmo tempo a experiência comum que o vincula aos seus semelhantes.

 Com a despiritualização, “desaparece a origem da ordem da vida humana; e não só a vida do homem individual, como também a vida em sociedade, já que, como se recordará, a ordem da vida em comunidade depende da ‘homonoia’ no sentido aristotélico e cristão, quer dizer, da participação no ‘noús’ comum”.

E recorre aos clássicos, particularmente a Heraclito e à sua ideia do ‘logos’ comum a todos os homens, para explicar que viver é existir sob o juízo da presença de Deus e que é isso que realça a natureza comunitária do ser humano:

 

Graças à vida do espírito comum a todos, a existência do ser humano converte-se em existência comunitária, o que revela que a vida pública da sociedade depende da abertura espiritual dos indivíduos que a compõem. Por isso mesmo, quem se fecha ao comum, quem se nega a abrir-se ao fundamento do ser, desterra-se da vida pública da comunidade humana. Converte-se […] num indivíduo privado, num ‘idiotes’, ou seja, num estúpido”.

 

 

Era para Voegelin claro que o que propiciou o auge do nacional-socialismo foi a crise espiritual do povo alemão e o repúdio consciente da fonte do ser.

Particularmente das Igrejas, quer evangélicas quer de muitos eclesiásticos católicos, que para se protegerem não tiveram dúvidas em claudicar dos seus deveres religiosos e sobretudo humanos, refugiando-se nas restritas margens dos seus grupos.

Desistiram de defender a catolicidade do cristianismo:

 

As Igrejas renunciaram ao comum, à vida do espírito, a defenderam o “corpus mysticum”, incorrendo antes no sacrilégio perverso de apropriar-se de uma mensagem que incluía todo ser humano, sem distinções”.

 

E o mesmo para todos os setores que deviam também terem assumido a representação transcendental de guiar a vida do espírito e que a ela se tinham eximido, nomeadamente os da ordem judicial, do mundo académico e do estrato militar. Todos eles tinham a obrigação de transmitir e salvaguardar o acervo espiritual e esse são sentido comum que imuniza as comunidades políticas da devastação:

 

Nenhuma sociedade pode renunciar à ordem do espírito sem se destruir a si mesma”.

 

E acontece que quando as instituições encarregadas de assegurar a vivência da vida espiritual cessam de tomar a sério as suas funções, então esse papel passa a ser tomado por pessoas e instituições incapazes de o fazer. Fica assim aberto o caminho expedito para que a plebe toma conta dos mandos da Administração e com essa posse destrua aquilo que era o mais digno de ser conservado.

 

Apesar disto, Voegelin chama a atenção para aqueles que se opuseram a este estado de coisas, considerando-os como baluartes da dignidade em tempos de confusão, acreditando que nunca escassearão. São as “sentinelas” que iluminam a comunidade dos seres humanos, que Voegelin lembra citando uma passagem do profeta Ezequiel:

 

 “A ti, também, filho do homem, eu te faço sentinela da casa de Israel. Quando oiças uma palavra da minha boca, adverti-los-ás por minha parte.

 

 

Sugestão:

 A leitura do sermão que o pastor presbiteriano Chris Hedges pronunciou domingo, 13 de outubro de 2019, na Igreja Presbiteriana de Claremont, California, transcrito no blog de 23 de outubro de 2019, intitulado “A Idade do “mal radical”.

 

 

 

 

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