(490) Acreditar em anjos é mais inofensivo
Tempo estimado de leitura: 4 minutos.
A noção de que foram as armas nucleares através da dissuasão que impediram a guerra nuclear é uma correlação vazia sobre um absurdo.
A crença na dissuasão nuclear não é mais do que a crença de que é bom ameaçar aniquilar toda a vida.
Brandir a ameaça de aniquilação mútua na expectativa de que esta manterá um país seguro é o exemplo máximo de uma postura que põe em perigo tanto os ameaçadores como os ameaçados, David Barash.
Um dos livros recomendáveis para se tentar perceber este mundo em que vivemos é o de David P. Barash, Threats: Intimidation and Its Discontents, onde ele estuda as várias situações em que as pessoas se ameaçam entre si ou se sentem ameaçadas pela sociedade, conduzindo muitas vezes a respostas que acabam por ameaçar a estabilidade social.
A dinâmica de ameaça e resposta permite compreender dilemas humanos como: o medo da morte e como ele tem sido manipulado por muitas religiões organizadas; o medo de estranhos e supostos inimigos, que deu origem a uma cultura americana de armas que, por sua vez, ameaça aqueles que procuram evitar tais ameaças; os medos primários do “outro”, que promoveram o populismo nacionalista de direita, que tem piorado as coisas não só para a própria democracia como para aqueles que se sentem ameaçados em primeiro lugar; e como a pena capital, que destinada a conter a ameaça de criminosos assassinos, agravou este problema.
Mas ainda mais importante e preocupante é verificarmos a forma como os países transmitem a derradeira ameaça uns contra os outros: pela dissuasão. Brandir a ameaça de aniquilação mútua na expectativa de que esta manterá um país seguro é o exemplo máximo de uma postura que põe em perigo tanto os ameaçadores como os ameaçados.
Na década de 1920, o governo dos EUA mandou envenenar propositadamente o álcool como forma para que deixasse de ser consumido. O princípio era que ninguém arriscaria a morte por uma bebida. Contudo, estima-se que em resultado dessa operação morreram 10.000 pessoas.
Na década de 1970, os mesmos argumentos foram utilizados para tentarem envenenar a marijuana e, como temos verificado, a dissuasão fracassou em grande parte.
Os mesmos argumentos são ainda utilizados pelos Estados que têm pena de morte, alegando que tal é um elemento dissuasor, e isto apesar de existirem provas de que a pena capital não é um elemento dissuasor eficaz. Pode dissuadir alguém de cometer algum crime, mas não dissuade a maioria das pessoas.
Têm-nos vindo também a vender a noção de que foram as armas nucleares através da dissuasão que impediram a guerra nuclear. Tal é uma correlação vazia sobre um absurdo. O absurdo é a ideia de se necessitar de armas nucleares para evitar a guerra nuclear, porquanto ela poderia muito bem ser evitada através da abolição das armas nucleares. A correlação vazia é a ideia de que, porque ainda não tivemos um apocalipse nuclear, a dissuasão nuclear funcionou. Isto não constitui uma prova causal, mas apenas uma correlação vazia com muitas provas contra ela.
Por exemplo, é perfeitamente aceite que as armas nucleares não dissuadem ataques não nucleares, nem de terroristas, nem de nações não nucleares, nem de nações nucleares. Num estudo de 348 disputas territoriais citado por Barash, as nações com armas nucleares tiveram menos, e não mais, sucesso do que as nações sem armas nucleares, e não tiveram mais sucesso do que antes de obterem armas nucleares. É um salto no escuro concluir que as armas nucleares, que não conseguem dissuadir todos os outros tipos de ataques, conseguiram dissuadir os ataques nucleares. A posse de armas nucleares pelas nações não as torna mais propensas a ganhar guerras.
Contra os terroristas que não possuem uma nação territorial, a ameaça não tem qualquer sentido e não pode sequer ser tentada. Mas contra as nações, a ameaça é difícil de tentar porque exige exemplos, demonstrações. É por isso que lemos artigos nos jornais a sugerir que o uso de uma “pequena” arma nuclear ensinaria a todos o que são. Mas se o propósito de usar uma arma nuclear fosse impedir que alguém usasse mais armas nucleares, e se se pudesse viver com a ignomínia de se ter usado aquela, e se – ao contrário das previsões de todos – usar uma não resultasse em ter de usar muitas mais, alguém mesmo assim acreditaria na ameaça de as poder vir a usar todas ou de usar mais?
O que é perfeitamente credível, depois de ler todos os quase acidentes, nos livros de Barash e de muitos outros, é que temos tido uma sorte incrível. É improvável que essa sorte se mantenha por muito tempo. Muitos dos quase acidentes envolveram salvadores individuais. Mas o que acontece quando a pessoa colocada na posição de evitar uma guerra nuclear não for sábia ou heroica, como a maioria das pessoas não o é? Mas mais, como não há nenhuma empresa que possa ser considerada como livre de ter desastres, porque é que a utilização das armas nucleares deveria ser considerada como caso único?
Nunca se poderá contar com que todos desobedecessem a ordens ilegais. Aliás, sempre se tem verificado que obedecer a ordens ilegais é uma prática corrente nas forças armadas. E para acrescentar mais um elemento de intranquilidade, o Supremo Tribunal dos EUA acabou agora por declarar legais todas as ordens presidenciais.
Exemplo esclarecedor (que não tranquilizador) foi o recente debate presidencial Trump-Biden onde vimos dois anciãos mentalmente instáveis a discutirem sobre quem faria melhor a Europa pagar pelo Armagedão e quem teria um melhor jogo de golfe.
A fantasia de abater mísseis com mísseis como proteção contra a guerra nuclear alimentou a corrida aos armamentos, criou armas que um dos lados pode chamar de defensivas e o outro de ofensivas, ameaçou o perigo de um ataque por parte de qualquer nação que se convença de que está protegida contra retaliações e que falhou dramaticamente em fornecer algo mais do que a possibilidade de proteção parcial, o que significa nenhuma proteção quando se estiver a falar de bombas nucleares.
Curiosamente, Barash inclui no seu livro um levantamento dos dados sobre como as pessoas que sofrem, incluindo as que sofrem a violência da guerra, e incluindo as que sofrem a incerteza da segurança, tendem a acreditar mais na religião. A crença no céu ou no inferno pode resultar de um trauma, mas não tende a alimentar diretamente o trauma. A crença na dissuasão nuclear, por outro lado, não é mais do que a crença de que é bom ameaçar aniquilar toda a vida. Este pensamento cria o medo e o horror que podem tornar alguém mais suscetível a acreditar na dissuasão nuclear. Acreditar em anjos é muito mais inofensivo e causa muito menos danos.
Recomendações:
Blog de 6 de março de 2019, “Dois minutos para a meia-noite”.
Blog de 15 de junho de 2022, “Claude Eatherly Dreifus Assange”.
Blog de 8 de junho de 2022, “Prometeu realizado”.