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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(489 A magia dos milagres, o milagre das magias

Tempo estimado de leitura: 13 minutos.

 

A partir do Dia 1 acabarei com o mandato sobre os veículos elétricos, Donald Trump.

 

Os milagres são permitidos por Deus e realizados pela fé, não por encantamentos e feitiços, Agostinho.

 

A cada passo e movimento, a cada entrada e saída, ao vestir, ao calçar os sapatos, ao tomar banho, à mesa, ao acender velas, ao deitar ou sentar, façamos o que fizermos, marcamos a testa com o sinal [da cruz], Tertuliano.

 

 

 

 

No recente discurso de aceitação de Donald Trump na Convenção Nacional Republicana, ouvimo-lo dizer que “a partir do Dia 1 acabarei com o mandato sobre os veículos elétricos (VE)”, porquanto assim os triliões de dólares alocados para “os esquemas sem sentido da Economia verde”, passariam antes a serem gastos com a infraestrutura do país.

Trump estava a referir-se ao “mandato” da administração Biden que fixava como meta a atingir em 2032 que os veículos elétricos constituíssem 56% do mercado. Acabar com essa imposição seria a “salvação da indústria auto do EUA […] salvando também aos clientes americanos milhares e milhares de dólares por carro”.

Curiosamente esta promessa contra os VE foi feita apenas poucos dias depois do CEO da Tesla, Elon Musk, ter oferecido a quantia mensal de 45 milhões de dólares à campanha para a eleição de Trump.

Pelo que mais à frente, ainda nesse seu discurso, Trump não se coibiu de dizer:

 

“And by the way, I’m all for electric. They have their application. But if somebody wants to buy a gas-powered car, gasoline-powered car, or a hybrid, they’re going to be able to do it. And we’re going to make that change on Day 1.”

 

Conciliar as estruturas que nos pré-existem com as nossas próprias estruturas que existem, tem sido e continua a ser uma tarefa árdua, quer ao nível pessoal quer ao nível das instituições que criámos e que também nos vão criando.

 

 

Porque é que o paganismo está em crescendo na Escócia?” é o título de um recente artigo da BBC (11 de julho de 2024) onde se pode ler que “o paganismo é hoje a quarta maior religião da Escócia, de acordo com o mais recente censo escocês. Há 19.113 pagãos registados, mais do que o número de adoradores do judaísmo, do sikhismo e do budismo.

A quantidade de pagãos quase quadruplicou desde o último censo em 2011, enquanto outras religiões registaram uma queda ou um aumento modesto no número de seguidores. Embora não tenha uma doutrina ou visão singular, os académicos definem o Paganismo como um termo genérico para um conjunto de religiões e tradições espirituais que partilham a reverência pela natureza, a crença numa pluralidade de deuses e a crença na magia.”

 

Observação: Conciliar as estruturas que nos pré-existem com as nossas próprias estruturas que existem, tem sido e continua a ser uma tarefa árdua, quer ao nível pessoal quer ao nível das instituições que criámos e que também nos vão criando.

 

 

Breves notas soltas sobre a luta do Cristianismo para se impor

 

A luta do Cristianismo para se impor como única religião legítima no então mundo romano foi extremamente difícil e levou muito tempo. A Igreja teve de enfrentar um sistema cultural antigo perfeitamente estabelecido, com provas dadas e aceites, em que a magia e os demónios faziam parte integrante.

 

Os Demónios

 

Comecemos pelos demónios que, quer para as ideologias pagãs quer para as cristãs, desempenhavam papéis proeminentes. Para os pagãos, os demónios podiam ser bons e maus, assemelhando-se a divindades no sentido em que partilhavam da imortalidade, embora também estivessem sujeitos a desejos pouco agradáveis ​​e irracionais.

Os demónios encontravam-se hierarquicamente posicionados entre os humanos e os deuses, podendo atuar como anjos da guarda. Tinham corpo, feito de um material muito mais leve e superior ao da forma humana; podiam mover-se mais depressa que os mortais, ler pensamentos e entrar e sair de espaços impossíveis de serem ocupados pelo corpo humano.

Eis como em meados do século II o pensamento cristão explicava o aparecimento e papel dos demónios (Justino Mártir): Os filhos de Deus sucumbiram às relações sexuais com mulheres humanas e geraram filhos, os chamados Nefilim (gigantes); a descendência dos Nefilins eram os demónios. Estes demónios escravizaram a raça humana, semeando guerras, adultérios, licenciosidade e todo o tipo de maldade. Segundo Justino, todos os deuses pagãos não passavam de demónios que assombram a terra.

 Agostinho vai propor uma genealogia diferente: demónios, tal como os anjos rebeldes, são os que lutaram ao lado de Lúcifer (também conhecido como Belial, Belzebu, o Diabo, Satanás e a ‘Estrela da Manhã’) e que sofreram o mesmo destino, o de serem expulsos do Céu depois da sua rebelião falhada.

Para a Igreja, todos os demónios eram malévolos. Os cristãos viam os demónios como metamorfos (transformações, metamorfoses) que “penetram no corpo das pessoas e atacam secretamente as suas entranhas, destruindo a sua saúde, provocando doenças, assustando as suas inteligências com sonhos, perturbando as suas mentes com a loucura.” (Lactâncio, séc. IV)

Até à Alta Idade Média (c1050-1200), Satanás ou “o Diabo”, era apenas mais um demónio, embora particularmente desagradável.

 

Milagres e magia

 

É Agostinho quem vai particularmente clarificar a relação/separação entre o ser humano e os demónios, começando pela identificação/caraterização de milagre e magia.

Segundo ele, os milagres são permitidos por Deus e realizados pela fé, não por encantamentos e feitiços. Maravilhas que não são realizadas para a honra de Deus, são feitiçaria ilícita realizada através de truques enganosos de demónios malignos. A magia apareceu quando os humanos traficavam com demónios para realizar atos específicos, como adivinhação, lançar feitiços, magia do amor, criar tempestades e astrologia.

Os demónios festejavam com o fumo, o incenso e o odor de sangue dos sacrifícios de animais que subia para as nuvens. Ansiavam por sangue, por isso, para os atrair, as pessoas misturavam sangue coagulado com água ou ofereciam sacrifícios queimados. Esta troca criou um contrato pelo qual os humanos podiam recrutar demónios para cumprirem as suas ordens.

Banquetear-se com carne sacrificial em cerimónias de culto não era a única forma de atrair demónios. Qualquer atividade ritual que se assemelhasse à adoração pagã, como honrar ídolos, lançar feitiços ou adorar ao ar livre – independentemente da intenção – era mágica. O clero cristão tinha, portanto, de estar sempre vigilante para que as pessoas sob os seus cuidados não interagissem inadvertidamente com os demónios.

 

Cristãos como charlatães

 

Para além desta vigilância permanente para com os demónios e a magia, os primeiros cristãos tiveram ainda de enfrentar as acusações contra Jesus e os seus apóstolos:  os pagãos acusavam os cristãos de não passarem de charlatães que se aproveitavam da disposição supersticiosa dos ignorantes e por fazerem passar truques por milagres. O filósofo pagão do século II, Celso, referiu-se aos milagres cristãos como palhaçadas de “truques”, menos impressionantes do que as acrobacias dos malabaristas que se exibiam no mercado.

 

Igrejas e santuários

 

A diferenciação progressiva que foi aparecendo entre o cristianismo e o paganismo, começa a aparecer melhor refletida pela importância que o cristianismo vai atribuir ao lugar e à forma de expressar o seu ritual. 

Os pagãos procuravam significado no mundo natural. A identidade cristã, por outro lado, manifestou-se em estruturas consagradas feitas pelo homem, como igrejas e santuários.

O novo local de culto tinha de ser aquele onde os demónios não se sentissem bem-vindos. Quando os cristãos estabeleciam locais consagrados (locais de ritual), competiam frequentemente com locais sagrados pagãos que abundavam no mundo da natureza – locais perto de lagos, debaixo de árvores, em rochas sagradas e em florestas. Embora as religiões do Próximo Oriente e do Mediterrâneo estivessem orientadas para o templo, com um conceito sofisticado de cerimonial fechado, a pessoa comum, por norma, não entrava no domínio sagrado, e a atividade religiosa ritualística mais popular tinha lugar nos campos ou fora do recinto do templo – em suma, ao ar livre.

Os cristãos criaram um novo tipo de espaço onde os demónios não ousavam pisar e no qual se frustrava a continuidade dos antigos ritos e da visão do mundo que armazenavam. O edifício tornou-se um símbolo da nova religião. Era mais do que apenas um local diferente daqueles frequentados pelos celebrantes pagãos e habitados pelas suas divindades demoníacas. Era um novo conceito de lugar específico do Cristianismo – limpo de demónios, consagrado àquele deus criador especial que não é inerente à sua criação (árvores, rochas, fontes) e não deveria ser adorado através dela.

Nada mais enchia os demónios de pavor e os mantinha afastados do que uma igreja santificada. O motivo dos demónios fugirem aterrorizados de um bispo consagrador era já familiar no final da antiguidade, quando a luta contra a idolatria era uma questão de confrontar abertamente os cultos pagãos. No século III, as estruturas cristãs eram já fortificações contra os demónios.

 

Também as abordagens cristãs e pagãs da morte divergiam radicalmente relativamente aos santuários dos mortos que se encontravam nos cemitérios fora das muralhas da cidade. Para os pagãos, o túmulo era um espaço temido, poluído e assombrado, do qual os vivos recuavam. Os primeiros cristãos criaram um novo tipo de lugar sagrado onde os mortos e os vivos se misturavam, e estes santuários estavam protegidos da infiltração dos insidiosos poderes demoníacos que giravam em torno dos túmulos, porque estavam protegidos pela supervisão da Igreja.

 

Relações com a morte

 

Já na abordagem das relações com a morte (a necromancia e a revivificação), apesar das diferenças radicais das noções pagãs e cristãs de mortalidade, existiam, contudo, semelhanças.

A necromancia no mundo antigo referia-se à prática de chamar os mortos de volta à vida com o propósito de aprender o futuro. As obras pagãs, embora retratem o contacto com os mortos como macabro e repugnante, concordam que se abordado com cautela e realizado para fins desejáveis, poderia ser justificado.

Por exemplo, no seu romance O Asno de Ouro, o filósofo pagão do século II, Apuleio, relata a história do cadáver de Thelyphron, a quem o profeta egípcio Zatchlas revive temporariamente para que o defunto possa resolver um mistério relacionado com a sua morte súbita. Thelyphron tinha casado recentemente, mas morrera pouco depois. À medida que o seu cortejo fúnebre passava pelas ruas da cidade, corre o rumor que a sua mulher o matara através do uso de veneno e das “artes malignas”.

 Ela protesta, e a multidão resolve a questão pedindo a Zatchlas que retire o espírito do túmulo por um breve período e reanime o corpo tal como estava antes da sua morte. Zatchlas concorda. Inicia a ressurreição colocando uma erva na boca e no peito do cadáver. Depois o sacerdote vira-se para Oriente e reza silenciosamente ao Sol, pedindo que seja concedido ao cadáver um adiamento momentâneo. O morto, irritado, ganha vida e queixa-se que já estava a ser transportado pelo rio Estige; pergunta porque fora arrastado de volta para o meio dos vivos e implora para ser deixado a descansar. A sombra confirma então que a sua mulher o assassinara.

Neste caso, o motivo da interação com os mortos era considerado digno e realizado com um rito simples, cuidadoso, e com uma oração silenciosa.

 

Era por cuidados como estes cuidados, que os pagãos consideravam as práticas cristãs quase como canibais. Segundo eles, os cristãos pareciam saborear os mortos. Frequentavam os cemitérios, celebravam os dias de morte, apresentavam os mártires como modelos (valorizando partes dos seus corpos) e divulgavam histórias de Jesus como figura heroica porque podia tirar os falecidos da sepultura. Esta busca de intimidade com os mortos repelia os pagãos. Suspeitavam que os iniciados na nova religião se dedicavam a comer carne humana quando, durante o ritual eucarístico, consumiam o corpo e o sangue de Jesus morto.

Muitas pessoas no final da antiguidade viam Jesus e os seus seguidores como necromantes. Esta perceção gerou negações persistentes por parte de algumas das melhores mentes da era patrística.

De certa forma, os pagãos tinham razão. Os cristãos abordavam os falecidos de forma diferente dos seus vizinhos politeístas.

Enquanto a maioria dos cultos pagãos temia, evitava e queimava os mortos, os cristãos formavam relações ternas e mutuamente benéficas com os espíritos (e, em alguns casos, os restos materiais) daqueles que deixaram de existir num plano mortal. Em vez de ostracizarem os mortos para além dos limites da cidade, no século II, os cristãos procuraram os restos mortais dos seus entes queridos.

A ideia de que os mortos poderiam voltar a viver era um princípio central da crença cristã. Após a sua ressurreição, Jesus garantiu à humanidade que poderiam ter vida eterna. No Evangelho de Mateus, Jesus confere aos discípulos o poder de imitar os seus milagres, incluindo ressuscitar os mortos. No Evangelho de João, Jesus revivifica Lázaro que estava ausente há quatro dias:

 

 [Ele] gritou em alta voz: ‘Lázaro, sai.’ O morto saiu, com as mãos e os pés amarrados com faixas de pano e o rosto envolto num pano. Jesus disse-lhes: ‘Desamarrai-o; deixe-o ir.'

 

Para os cristãos, a ressurreição que Jesus empreendeu foi carinhosa e altruísta.

Apesar do mesmo se poder dizer do ritual realizado por Zatchlas, no entanto pode-se fazer uma distinção entre a revivificação de Jesus e a do sacerdote pagão. Zatchlas trouxe o morto à vida com o propósito de prever o futuro, e o motivo era justo, mas, segundo o cálculo cristão, o ato era demoníaco, porque o sacerdote procurava informação para além do alcance humano. Por outro lado, o favor de Jesus a Lázaro, foi um milagre feito pelo Senhor – Jesus não esperava nada em troca.

 

A magia é antípoda ao milagre por causa da fonte de poder que conduz cada um dos atos. No entanto, as distinções entre ressurreição milagrosa e revivificação necromântica não eram claras.

Os milagres constituíam uma componente vital da reivindicação de autenticidade do Cristianismo, e o facto de muitos homens santos pagãos alegarem trazer pessoas de volta da sepultura alimentou a rivalidade entre a fé incipiente e os cultos pagãos dominantes. Os relatos de revivificação não-cristã atormentavam os religiosos cristãos.

No início do século IV, um governador provincial chamado Hiérocles, procurando difamar Jesus e o movimento cristão, escreveu um tratado sobre Apolónio de Tiana, um mago pitagórico que viveu no século I e tinha a reputação de ter poderes milagrosos para curar os doentes, predizer o futuro e ressuscitar os mortos. Hiérocles comparou Apolónio e Jesus, com desvantagem para Jesus. Classificou os milagres de Jesus como conjurações e exibições baratas – do tipo que qualquer mágico de rua poderia realizar.

No seu tratado, Hiérocles descreve uma ressurreição de Apolónio que se assemelha muito ao milagre de Jesus. Numa ocasião, Apolónio faz renascer uma donzela que estava a ser levada para o túmulo, simplesmente tocando-a e pronunciando algumas palavras, muito à semelhança da forma como Jesus ressuscitou Lázaro.

Nem os atos de Apolónio nem os de Jesus exigiam ritos grandiosos ou substâncias rituais como saliva, sangue ou cabelo. Judeus e pagãos representavam Jesus rotineiramente como um mágico, e os não-cristãos comparavam vulgarmente as maravilhas de Apolónio com as de Jesus. Ainda no século IV, Agostinho aludiu ao facto de alguns elogiarem os milagres de Apolónio juntamente com os de Cristo. O problema na comparação foi que os cristãos consideravam os poderes de Apolónio demoníacos e os de Jesus milagrosos.

Os autores cristãos trabalharam incansavelmente para defender Jesus especificamente e os cristãos em geral contra as acusações de maleficium (magia maligna). Ao longo da Alta Idade Média (c500-1000), os escritores cristãos insistiam que o poder dos seus homens e mulheres santos não se baseava em demónios que se escondiam entre a Lua e a Terra, nem em ritos elaborados, mas na fé, em simples rituais cristãos, e, em última análise, apenas em Deus. Rituais elaborados eram equiparados ao demonismo.

 

Num texto cristão primitivo chamado Clementine Recognitions, os apóstolos encontram-se repetidamente em situações em que são forçados a defender Jesus e a si próprios contra acusações de magia. De acordo com uma história do texto, Tiago envia Pedro a Cesareia para refutar Simão, o Mago, que afirma ser Jesus Cristo.

Uma das personagens, Niceta, questiona como seria possível distinguir entre os milagres de Jesus e as reivindicações de divindade apresentadas nos Evangelhos daquelas que Simão, o Mago e os falsos profetas, geralmente oferecem.

A resposta à pergunta de Niceta vai ser encontrada em  Mateus e Lucas: o nascimento virginal demonstra a autoridade preeminente e singular de Jesus sobre os outros pregadores e curandeiros itinerantes.

De acordo com a interpretação patrística destas duas passagens evangélicas, a virgindade de Maria foi o sinal crítico de que Jesus não era apenas mais um profeta, mas o Cristo chamado Emanuel. O facto de Jesus ter nascido de uma virgem, cumprindo assim a profecia do Antigo Testamento, foi a demonstração mais evidente da sua divindade.

 Os cristãos promoveram este argumento, pelo menos em parte, porque o mundo antigo estava cheio de homens santos, profetas e mágicos que podiam realizar maravilhas, incluindo ressuscitar pessoas da sepultura. O cumprimento de uma antiga profecia que envolvia o nascimento virginal separou a religião da feitiçaria comum.

 

Quanto à questão da revivificação, os cristãos encontraram-se muito manietados. E isto porque os primeiros teólogos cristãos estavam em harmonia com os pagãos sobre os males de usar (ou tentar usar) o falecido, quer para adivinhação, quer para explorar o poder do estado liminar da morte para fins nefastos.

 Lidar com cadáveres reanimados envolvia o pior tipo de tráfico com demónios. No entanto, Jesus e os seus seguidores mais próximos ressuscitaram os falecidos, e todos os cristãos honraram os espíritos e os restos mortais dos santos que partiram e promoveram relações amigáveis ​​com estes mortos especiais. Por fim, através de sermões no púlpito e de ensinamentos privados no confessionário, os intelectuais cristãos conseguiram convencer os convertidos de que a ressurreição cristã era diferente da necromancia.

 

O ritual da cruz

 

Ao mesmo tempo que o clero expressava ambivalência em relação aos ritos devido à sua associação com o paganismo, a Igreja estava a desenvolver o seu próprio vocabulário de ritos piedosos que todos os cristãos poderiam empregar para substituir os costumes pagãos que comungavam com o demoníaco. Traçar o sinal da cruz, o batismo e o exorcismo tinham a virtude específica de manter os demónios afastados.

Um dos símbolos mais fáceis de manipular era a assinatura ritual da cruz. De acordo com o preconceito geral da Igreja primitiva contra os ritos elaborados, assinar com a cruz era simples e empregado casualmente. A cruz como sinal ou símbolo era uma referência à ressurreição de Cristo e à salvação da humanidade, e não deixava espaço para a infiltração demoníaca como outros sinais poderiam fazer.

Muito pelo contrário; o ato de assinar com a cruz tinha como objetivo afastar os demónios, e desde muito cedo  os cristãos foram instados a afastar o mal e a garantir a proteção das pessoas e dos bens assinando com o símbolo da cruz, em vez de empregar outros procedimentos supersticiosos., Tertuliano, do século III escreve:

 

 “A cada passo e movimento, a cada entrada e saída, ao vestir, ao calçar os sapatos, ao tomar banho, à mesa, ao acender velas, ao deitar ou sentar, façamos o que fizermos, marcamos a testa com o sinal [da cruz].”

 

Nas suas palestras para a Quaresma, o Bispo Cirilo de Jerusalém, do século IV, diz que a cruz é “um terror para os demónios… Pois quando veem a Cruz, lembram-se do Crucificado; temem Aquele que “esmagou as cabeças dos dragões”.

 

O ritual do batismo

 

O rito iniciático básico do Cristianismo era o batismo, que funcionava como contraponto à infiltração demoníaca e era rico em rituais evocativos e introspetivos. Uma componente central do “voltar a nascer” inerente ao batismo foi a renúncia aos demónios. Os demónios residiam na água e frequentavam os locais aquáticos, pelo que o poder purificador da fonte desafiava os demónios. O sacramento batismal incorporou um exorcismo, uma renúncia explícita a Satanás e uma ordem para que “todos os demónios malignos partam”.

O repúdio equivalia ao abandono do ritual errado; o catecúmeno deveria dizer: ‘Eu renuncio a ti, Satanás, e a todos os teus serviços [exibições ou rituais] e a todas as tuas obras.

Em vez de recorrerem ao poder demoníaco, estes usos cristãos combatiam-no. Eram paliativos e um contraponto aos ritos pagãos cheios de magia, enquanto as cerimónias exorbitantes e as maquinações complicadas com objetos vistosos (todos ausentes do batismo) eram ofensivas para o sentido dos primeiros cristãos da abordagem adequada a Deus.

 

O discurso da cura

 

Os primeiros escritos cristãos usam o discurso da cura para descrever os benefícios da nova religião e classificam Jesus ou a Igreja como “médico”. Em alguns contextos, esta caracterização era metafórica, mas também muitas vezes literal. A oração, a penitência, a súplica aos santos e a vida piedosa eram consideradas genuinamente curativas. Agostinho escreveu:

 

 “Tal como os medicamentos físicos, aplicados pelos humanos a outros humanos, só beneficiam aqueles em quem a restauração da saúde é efetuada por Deus, que pode curar mesmo sem eles.”

 

Afirmou que tanto a mente como o corpo podem ser melhor “purificados” por Cristo, que é melhor médico do que os médicos ou os feiticeiros. O próprio nome de Jesus, quando pronunciado, venceu demónios e garantiu a cura.

Em latim, a palavra “saúde” (salus) também pode significar salvação e, uma vez que a saúde do corpo e da alma estavam interligadas, o bem-estar espiritual e físico continuou a ser expresso na linguagem da cura. Pensava-se que o clero e os santos administravam os remédios mais eficazes sob a forma de orações, bênçãos e curas milagrosas. Os médicos seculares eram uma segunda escolha adequada, mas a magia nunca foi uma opção aceitável para a cura.

Receber curas corporais através da magia colocava a alma em perigo e era, em última análise, autodestrutivo, mesmo que funcionasse a curto prazo. A Igreja primitiva era particularmente sensível à ligação fácil pagã com a medicina porque os pastores achavam que era fundamental que os seus rebanhos compreendessem que, embora outros deuses (demónios) pudessem curar o corpo, somente Cristo, trabalhando através dos seus vigários designados, poderia fazer com que toda a pessoa fosse saudável – corpo e alma – e perpetuar esse bem-estar no outro mundo.

 

No campo da terapêutica, a luta cristã contra as superstições mágicas durou muito tempo. Não foi fácil para a nova religião suprimir remédios antigos que eram geralmente aplicados em ambientes íntimos e quase privados: o lar e o mosteiro. A sensação consagrada pelas curas pagãs tradicionais e os textos que as transmitiram acrescentaram legitimidade aos ritos que mantiveram as pessoas seguras durante gerações.

A procurada apropriação da saúde pela Igreja provocou uma rivalidade com os cultos pagãos, porque algumas das divindades foram sempre curadoras. A mais famosa das divindades curativas foi o deus grego Asclépio. De todos os cultos de cura, a sua seita representava um desafio particularmente competitivo para os cristãos na feroz rivalidade pela cura. Justino Mártir afirmou que os demónios introduziram o “mito” de Asclépio para desafiar a capacidade de Jesus como curador. Justino afirmou que o Diabo temia tanto a popularidade de Jesus que o “Maligno” criou Asclépio para imitar os evangelhos e enganar os homens quanto à sua salvação.

 

Observação:

 

 Conciliar as estruturas que nos pré-existem com as nossas próprias estruturas que existem, tem sido e continua a ser uma tarefa árdua, quer ao nível pessoal quer ao nível das instituições que criámos e que também nos vão criando.

 

 

Alguns pontos de encontro:

Blog de 2 de junho de 2015, “Passado, presente, futuro: o fator JC”.

Blog de 28 de junho de 2015, “Cristianismo como resistência à barbárie”.

Blog de 31 de julho de 2015, “Cristo ‘melhorado’”.

Blog de 12 de outubro de 2016, “Reino do Céu na Terra”.

Blog de 4 de janeiro de 2017, “O quinto Mandamento”.

Blog de 20 de setembro de 2017, “A cristianização de um povo de salteadores”.

Blog de 16 de janeiro de 2018, “A ‘era do camelo’: o início do enriquecimento da Igreja”.

Blog de 15 d agosto de 2018, “O amor segundo Paulo”.

Blog de 26 de fevereiro de 2020, “Lutas, controvérsias e horrores do século IV” (Potâmio de Lisboa).

Blog de 10 de junho de 2020, “Arte e poder: Arte na Igreja

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