(486) O caminho para o desastre
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Pela primeira vez na história da espécie humana, desenvolvemos claramente a capacidade para nos destruirmos, Noam Chomsky.
O poder de destruição dos 12 submarinos da classe Columbia será aproximadamente 30.000 vezes maior que o das duas bombas que destruíram Hiroxima e Nagasáqui.
A “independência energética” significa para os donos da economia terem mais um século para maximizar a utilização de combustíveis fósseis e contribuir para a destruição do mundo, Noam Chomsky.
Até 1945, o apocalipse tinha sido propriedade da Bíblia, em que o “fim dos tempos” era domínio de Deus (e talvez de um ramo emergente da literatura popular chamado ‘ficção científica’). Desde então temos agido sempre de forma apocalíptica, estranhamente por razões não ligadas à posse da milagrosa arma atómica e que até mesmo agora continuam difíceis de compreender.
A Marinha dos EUA encomendou à General Dynamics Electric, 12 submarinos nucleares da Classe Columbia por 126,4 biliões de dólares. Estes submarinos terão aproximadamente 170 metros de comprimento, deslocando 20.810 toneladas de água. Cada um deles será equipado com 16 tubos de lançamento para os mísseis balísticos nucleares lançados de submarinos (SLBM) Trident II D5, cada um deles com a capacidade de transportar 12 ogivas nucleares independentes, conhecidas como W88s, cada uma delas custando 150 milhões de dólares, e com uma força termonuclear de 455 kilotoneladas.
Algumas contas simples: multiplicando 12 vezes 16 vezes 12, obteremos 2.304. Multiplicando-o depois pela força termonuclear de 455 kilotoneladas, chegamos a mais de um milhão de kilotoneladas! As bombas atómicas que arrasaram Hiroxima e Nagasáqui, a “Fat Man” e a “Little Boy”, possuíam 21 e 15 kilotoneladas! Ou seja, o poder de destruição dos 12 submarinos será aproximadamente 30.000 vezes maior que o das duas bombas que destruíram Hiroxima e Nagasáqui.
Segundo o Congressional Research Service, a “missão básica” destes submarinos será a de “permanecerem escondidos no mar com os seus SLBM, para impedirem um ataque nuclear aos Estados Unidos por um outro país, ao demonstrarem aos outros países que os Estados Unidos têm uma segunda capacidade de ataque garantida, ou seja, que têm um sistema de sobrevivência assegurado capaz de conduzir em retaliação um ataque nuclear”.
Ou seja, centenas de biliões de dólares são colocados no fundo do mar para que quando venham pela única vez à superfície cumprir a sua missão, será para destruir totalmente o mundo várias vezes.
Evidentemente, isso só aconteceria apenas como retaliação. Acontece que a Nuclear Posture Review de 2022, veio alterar a política dos Estados Unidos relativa à utilização das armas nucleares ao prever que as armas nucleares podiam ser usadas unilateralmente e ofensivamente (first strike).
São estas e outras “pequenas”, mas importantes contradições teóricas ou operacionais, que se verificam em todas as nações que operam armas nucleares (as doutrinas militares de todas essas nações passaram também a prever a sua utilização unilateral), que fazem duvidar das garantias das seguranças apresentadas, levantando antes a possibilidade de um apocalipse garantido, programado ou não.
Parece-me importante relembrar aqui, uma entrevista em vídeo (“Humanity Imperiled. The Path to Disaster”) de Noam Chomsky feita a 27 de agosto de 2023 por Javier Navarro da What, e onde Chomsky explana os seus pensamentos sobre um futuro perigoso que continua a estar dependente das nossas ações. Eis a sua adaptação e tradução:
Humanidade em Perigo: o Caminho para o Desastre
O que é que provavelmente o futuro nos reserva? Um ponto de partida razoável para responder à interrogação talvez fosse o tentar-se olhar de fora para a espécie humana. Imagine então que é um observador extraterrestre que está a tentar descobrir o que está a acontecer aqui ou imagine que é um historiador daqui a 100 anos - supondo que haja algum historiador daqui a 100 anos, o que não é óbvio - e que está a olhar para o que hoje está a acontecer. Veria algo bastante notável.
Pela primeira vez na história da espécie humana, desenvolvemos claramente a capacidade para nos destruirmos. Isto tem sido verdade desde 1945. E por fim, está agora a ser reconhecido que existem mais processos a longo prazo, como a destruição ambiental, que vão na mesma direção, conduzindo talvez não para a destruição total, mas pelo menos para a destruição da capacidade para uma existência decente.
E há outros perigos, como as pandemias, que têm a ver com a globalização e com a interação. Portanto, há processos em curso e instituições em funcionamento, como os sistemas de armas nucleares, que poderão levar a uma séria destruição, ou ao fim de uma existência organizada.
Como Destruir um Planeta Sem Realmente o Querer Fazer
A questão é: relativamente a isso, o que é que as pessoas estão a fazer? Nada disso é segredo. Está tudo perfeitamente claro. Na verdade, você tem mesmo que se esforçar para não perceber.
Tem havido uma série de reações. Há aqueles que se têm esforçado para fazer algo a respeito dessas ameaças e outros que estão a agir para as aumentar. Se se olhar para ver quem são eles, esse futuro historiador ou observador extraterrestre veriam algo realmente estranho. Tentando mitigar ou superar essas ameaças estão as sociedades menos desenvolvidas, as populações indígenas, ou os remanescentes delas, as sociedades tribais e as primeiras nações do Canadá. Elas não falam de guerra nuclear, mas de desastre ambiental, e estão realmente a tentar fazer algo a esse respeito.
Na verdade, em todo o mundo — Austrália, Índia, América do Sul — há batalhas a acontecer, por vezes guerras. Na Índia, trata-se de uma grande guerra pela destruição ambiental direta, com sociedades tribais a tentar resistir às operações de extração de recursos que são extremamente prejudiciais a nível local, mas também pelas suas consequências gerais. Nas sociedades onde as populações indígenas têm influência, muitos estão a tomar uma posição firme. O país mais forte no que diz respeito ao aquecimento global é a Bolívia, que tem uma maioria indígena e requisitos constitucionais que protegem os “direitos da natureza”.
O Equador, que também tem uma grande população indígena, é o único exportador de petróleo que conheço onde o governo procura ajuda para conseguir manter esse petróleo no solo, em vez de o produzir e exportar – e o solo está onde deveria estar.
Assim, num extremo temos as sociedades indígenas e tribais que tentam conter a corrida para o desastre. No outro extremo, as sociedades mais ricas e poderosas da história mundial, como os Estados Unidos e o Canadá, que avançam a toda velocidade para destruir o ambiente o mais rapidamente possível. Ao contrário do Equador e das sociedades indígenas de todo o mundo, eles querem extrair do solo cada gota de hidrocarbonetos o mais rápido possível.
Ambos os partidos políticos, o Presidente Obama, os meios de comunicação social e a imprensa internacional, parecem estar a aguardar com grande entusiasmo o que chamam de “um século de independência energética” para os Estados Unidos. A independência energética é um conceito quase sem sentido, mas deixemos isso de lado. O que querem dizer é: teremos um século para maximizar a utilização de combustíveis fósseis e contribuir para a destruição do mundo.
E isso passa-se praticamente em todos os locais. É certo que, quando se trata de desenvolvimento de energias alternativas, a Europa está a fazer alguma coisa. Enquanto isso, os Estados Unidos, o país mais rico e poderoso da história mundial, são a única nação entre talvez 100 países relevantes que não tem uma política nacional para restringir o uso de combustíveis fósseis, que nem sequer tem metas de energia renovável. Não porque a população não queira. Os americanos estão muito próximos da norma internacional na sua preocupação com o aquecimento global. São as estruturas institucionais que bloqueiam a mudança. Os interesses empresariais não o querem e são esmagadoramente poderosos na determinação de políticas, pelo que existe uma grande lacuna entre a opinião e a política em muitas questões, incluindo esta.
Então é isso que o futuro historiador – se houver – veria. Ele também pode ler as revistas científicas de hoje. Quase todas as que você abre têm uma previsão pior do que a anterior.
“O Momento Mais Perigoso da História”
A outra questão é a guerra nuclear. Há muito que se sabe que se houvesse um primeiro ataque por parte de uma grande potência, mesmo sem retaliação, provavelmente destruiria a civilização apenas por causa das consequências do inverno nuclear que se lhe seguiria. Pode-se ler sobre isso no Bulletin of Atomic Scientists. Está lá tudo bem escrito. Portanto, o perigo sempre foi muito pior do que pensávamos.
Acabámos de passar o 50º aniversário da crise dos mísseis cubanos, que foi chamado de “o momento mais perigoso da história” pelo historiador Arthur Schlesinger, conselheiro do presidente John F. Kennedy. E que foi mesmo. Foi por um triz, e também não foi a única vez. De certa forma, porém, o pior aspeto destes acontecimentos sombrios é que as lições não foram aprendidas.
O que aconteceu na crise dos mísseis em outubro de 1962 foi embelezado para fazer parecer que abundaram atos de coragem e de consideração. A verdade é que todo o episódio foi quase insano. Houve uma altura, quando a crise dos mísseis estava a atingir o seu auge, em que o primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev escreveu a Kennedy oferecendo-se para resolver a situação através de um anúncio público da retirada dos mísseis russos de Cuba e dos mísseis norte-americanos da Turquia. Na verdade, na altura Kennedy nem sabia que os EUA tinham mísseis na Turquia. Eles estavam a ser retirados, para serem substituídos por submarinos nucleares Polaris, mais letais, que eram invulneráveis.
Então a oferta foi essa. Kennedy e os seus conselheiros consideraram-na – e rejeitaram-na. Na altura, o próprio Kennedy estimava que a probabilidade de uma guerra nuclear oscilava entre um terço e metade. Assim, Kennedy estava disposto a aceitar um risco muito elevado de destruição maciça, a fim de estabelecer o princípio de que nós - e apenas nós - temos o direito a mísseis ofensivos para além das nossas fronteiras, na verdade, em qualquer lugar que quisermos, independentemente do risco para os outros - e para nós mesmos, se as coisas ficarem fora de controle. Nós temos esse direito, mas mais ninguém tem.
Entretanto, Kennedy acabou por aceitar um acordo secreto para retirar os mísseis que os EUA já estavam a retirar da Turquia, desde que tal nunca fosse tornado público. Por outras palavras, Khrushchev, teve de publicamente retirar os mísseis russos de Cuba enquanto os EUA retiravam secretamente os seus mísseis obsoletos; isto é, Khrushchev teve de ser humilhado e Kennedy teve de manter a sua imagem machista. Por isso, ele é muito elogiado: coragem e frieza sob ameaça, e assim por diante. O horror das suas decisões nem sequer é mencionado – tente encontrá-lo oficialmente.
E para acrescentar um pouco mais, alguns meses antes da crise explodir, os Estados Unidos enviaram mísseis com ogivas nucleares para Okinawa. Estes apontavam para a China durante um período de grande tensão regional.
Bem, quem se importa? Temos o direito de fazer o que quisermos em qualquer lugar do mundo. Essa foi uma lição sombria daquela época, mas outras viriam.
Dez anos depois, em 1973, o Secretário de Estado Henry Kissinger convocou um alerta nuclear de alto nível. Foi a sua forma de alertar os russos para não interferirem na guerra Israelo-árabe em curso e, em particular, para não interferirem depois de ter informado os israelitas de que poderiam violar um cessar-fogo que os EUA e a Rússia tinham acabado de acordar. Felizmente, nada aconteceu.
Dez anos depois, o presidente Ronald Reagan estava no poder. Logo depois de entrar na Casa Branca, ele e seus conselheiros fizeram com que a Força Aérea começasse a penetrar no espaço aéreo russo para tentar obter informações sobre os sistemas de alerta russos, a Operação Able Archer 83. Essencialmente, estes foram ataques simulados. Os russos não tinham a certeza de que assim eram, e alguns altos funcionários temiam que isso fosse um passo em direção a um primeiro ataque verdadeiro. Felizmente, eles não reagiram, embora tenha sido por pouco. E assim continua.
O que Fazer com as Crises Nucleares Iraniana e Norte-Coreana
Neste momento, a questão nuclear dos casos da Coreia do Norte e do Irão aparece regularmente nas primeiras páginas. Existem maneiras de lidar com estas crises contínuas. Talvez não funcionassem, mas pelo menos poder-se-ia tentar. No entanto, não estão sequer a serem consideradas, nem sequer comunicadas.
Vejamos o caso do Irão, que é considerado no Ocidente – não no mundo árabe, nem na Ásia – a mais grave ameaça à paz mundial. É uma obsessão ocidental e é interessante investigar as razões para isso, mas para já deixarei isso de lado. Existe uma maneira de lidar com a suposta mais grave ameaça à paz mundial? Na verdade, existem algumas. Uma forma, bastante sensata, foi proposta há alguns meses numa reunião dos países não-alinhados em Teerão. Na verdade, estavam apenas a reiterar uma proposta que existe há décadas, especialmente apresentada pelo Egipto, e que foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU.
A proposta é avançar-se no sentido da criação de uma zona livre de armas nucleares na região. Isso não seria a resposta para tudo, mas seria um avanço bastante significativo. E havia maneiras de proceder. Sob os auspícios da ONU, iria realizar-se uma conferência internacional na Finlândia, em dezembro passado, para tentar implementar planos nesse sentido. O que aconteceu?
Você não vai ler sobre isso nos jornais porque não foi noticiado – apenas em revistas especializadas. No início de novembro, o Irão concordou em participar na reunião. Alguns dias depois, Obama cancelou a reunião, dizendo que não era o momento certo. O Parlamento Europeu emitiu uma declaração apelando à sua continuação, tal como fizeram os estados árabes. Nada resultou. Portanto, avançaremos para sanções cada vez mais duras contra a população iraniana – isso não prejudica o regime – e talvez para a guerra. Quem sabe o que irá acontecer?
No Nordeste da Ásia, a mesma coisa. A Coreia do Norte pode ser o país mais louco do mundo. É certamente um bom concorrente para esse título. Mas faz sentido tentar descobrir o que se passa na mente das pessoas quando elas agem de maneira louca. Porque se comportariam eles daquela maneira? Imaginemo-nos na situação deles. Imaginem o que significou para eles nos anos da Guerra da Coreia, no início da década de 1950, em que o seu país fosse totalmente arrasado, tudo destruído por uma enorme superpotência, que além disso se regozijava com o que estava a fazer. Imagine a marca que isso deixaria para trás.
Tenha em mente que é provável que a liderança norte-coreana tenha lido os jornais militares públicos dessa superpotência naquela altura explicando que, uma vez que tudo o resto na Coreia do Norte já tinha sido destruído, a força aérea foi enviada para destruir as barragens da Coreia do Norte, enormes barragens que controlava o abastecimento de água - um crime de guerra, aliás, pelo qual pessoas foram enforcadas em Nuremberga. E esses jornais oficiais falavam com entusiasmo sobre como era maravilhoso ver a água escorrendo, escavando os vales e os asiáticos correndo por aí tentando sobreviver. Os jornais exultavam com o que isto significava para aqueles “asiáticos”, horrores para além da nossa imaginação. Significou a destruição da sua colheita de arroz, o que por sua vez significou fome e morte. Que magnífico! Não está na nossa memória, mas está na memória deles.
Voltemos ao presente. Há uma história recente interessante. Em 1993, Israel e a Coreia do Norte caminhavam para um acordo no qual a Coreia do Norte deixaria de enviar quaisquer mísseis ou tecnologia militar para o Médio Oriente e Israel reconheceria esse país. O presidente Clinton interveio e bloqueou. Pouco depois, em retaliação, a Coreia do Norte realizou um pequeno teste de mísseis. Os EUA e a Coreia do Norte chegaram então a um acordo-quadro em 1994 que interrompeu o seu trabalho nuclear e foi mais ou menos honrado por ambos os lados. Quando George W. Bush assumiu o cargo, a Coreia do Norte tinha talvez uma arma nuclear e comprovadamente já não produzia mais nenhuma.
Bush lançou imediatamente o seu militarismo agressivo, ameaçando a Coreia do Norte – “eixo do mal” e tudo mais – e a Coreia do Norte voltou a trabalhar no seu programa nuclear. Quando Bush deixou o cargo, eles tinham de oito a dez armas nucleares e um sistema de mísseis, outra grande conquista neoconservadora. Nesse meio tempo, outras coisas aconteceram. Em 2005, os EUA e a Coreia do Norte chegaram efetivamente a um acordo no qual a Coreia do Norte deveria pôr fim a todas as armas nucleares e ao desenvolvimento de mísseis. Em troca, o Ocidente, mas principalmente os Estados Unidos, deveria fornecer um reator de água leve para as suas necessidades médicas e pôr fim às declarações agressivas. Eles então formariam um pacto de não agressão, seguindo em direção à acomodação.
Era bastante promissor, mas quase imediatamente Bush minou-o. Retirou a oferta do reator de água leve e iniciou programas para obrigar os bancos a deixarem de lidar com quaisquer transações norte-coreanas, mesmo as perfeitamente legais. Os norte-coreanos reagiram reavivando o seu programa de armas nucleares. E é assim que tem acontecido.
É bem conhecido. Você pode lê-lo em estudos académicos americanos diretos e convencionais. O que dizem é que é um regime bastante louco, mas que segue uma espécie de política de olho por olho. Você faz um gesto hostil e nós responderemos com algum gesto doido da nossa autoria. Você faz um gesto de acomodação e nós retribuiremos de alguma forma.
Ultimamente, por exemplo, têm havido exercícios militares sul-coreanos-americanos na península coreana que, do ponto de vista do Norte, devem parecer ameaçadores. No decurso desses exercícios, os bombardeiros mais avançados da história, Stealth B-2 e B-52, estão a realizar ataques simulados de bombardeamentos nucleares mesmo nas fronteiras da Coreia do Norte. Se eles estivessem no Canadá fixados em nós, pensaríamos que eles nos estavam a ameaçar.
Isto certamente faz disparar alarmes do passado. Eles lembram-se desse passado, então estão a reagir de uma forma muito agressiva e extrema. Bem, o que resulta de tudo isto para o Ocidente é a verificação do quão loucos e terríveis são os líderes norte-coreanos. Sim, eles são. Mas isso não é tudo, e é assim que o mundo vai indo.
Não é que não haja alternativas. As alternativas simplesmente não estão a serem tomadas. Isso é perigoso. Então, se você perguntar como será o mundo, não será uma imagem bonita. A menos que as pessoas façam algo a esse respeito. O que podemos sempre.