(485) A semana que poderia ter corrido bem
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Os caminhos que o mundo vai percorrendo e que na maior parte são feitos tendo por base condições e objetivos económicos, têm por vezes pequenos deflagradores individuais que vêm inesperadamente alterar o que se esperava que viesse a acontecer.
We were going to, in fact, make them pay the price and make them, in fact, the pariah that they are, Joe Biden, sobre os governantes sauditas.
Por vezes, acontecem coisas assim: quando tudo parece estar a correr bem, de repente o caldo entorna. Naquela semana de junho em que tudo se tinha preparado para a Conferência para a Paz na Ucrânia ser um êxito (os convites feitos, os dinheiros garantidos, o comunicado muito recente dos G7 de Puglia expressando já “o suporte para os princípios chave e objetivos da Fórmula para a Paz do Presidente Zelensky”, a presença tutelar e garantida de Biden, etc.), e em que os rufares dos tambores vinham já em crescendo no sentido de um aumento muito maior de despesa militar para novos armamentos e sobretudo para novos recrutas com vista à preparação para uma guerra anunciada como certa, com muita probabilidade até nuclear, o “imprevisto” aconteceu.
Dos 160 convites enviados para estados e organizações internacionais, compareceram 92. A Rússia não foi convidada e a China não compareceu. O comunicado final (16 de junho) que acabou assinado por 84 das delegações (não foi assinado pelo Vaticano, Brasil, Índia, Indonésia, Arábia Saudita, África do Sul e Emiratos Árabes Unidos), não fez qualquer referência ao plano de paz apresentado por Zelensky nem exige a retirada completa das tropas da Rússia, nem refere qualquer data para a realização de uma nova conferência. Foi o comunicado possível.
Tudo se começou a desmoronar quando a 9 de junho Mohammed bin Salman, o príncipe e de facto líder da Arábia Saudita, deixou expirar o acordo feito em 1974 entre os EUA e a Arábia Saudita relativo aos petrodólares.
Perante a instabilidade dos preços e a dificuldade da venda do petróleo à época, a Arábia Saudita e os EUA realizaram um acordo segundo o qual o preço do petróleo vendido pela Arábia Saudita seria obrigatoriamente feito só em dólares, sendo as mais-valias obtidas investidas em bilhetes do Tesouro norte-americano. Em contrapartida, os EUA providenciariam o apoio e a proteção militar necessários.
A Arábia Saudita ganharia estabilidade e previsibilidade económica e uma segurança garantida, os EUA ganhariam uma fonte estável de petróleo e um mercado cativo para as suas dívidas. Ganhou mais, pois passando as compras de petróleo a serem feitas em dólares, tal obrigou todos os compradores a precisarem de dólares para o fazerem, ou seja, teriam de se dirigirem ao mercado americano (único que produzia dólares) para os obterem, o que elevou a cotação do dólar a moeda de reserva mundial. Razão pela qual a dívida do estado americano não tenha qualquer problema de maior (já vai em 34 triliões de dólares) porque ela terá sempre compradores em busca dos preciosos dólares.
Um dólar forte significou também para os consumidores americanos importações mais baratas. Um afluxo de capital estrangeiro para a compra de bilhetes do Tesouro é o que essencialmente suporta as taxas de juro baixas e um mercado de ações robusto.
Outra grande vantagem para os EUA: a proteção militar garantida será sempre acompanhada pela venda de enormes quantidades de armamentos americanos, devidamente contabilizados e pagos à parte.
Assim, da mesma forma que o acordo sobre os petrodólares deu grandes vantagens aos EUA, a sua não continuação enfraquecerá o dólar e, consequentemente, os mercados financeiros americanos. Se o petróleo puder ser vendido noutras moedas que não o dólar, tal acabará por levar ao declínio da procura do dólar, o que resultará num aumento da inflação, mais altas taxas de juro e um mercado de ações mais fraco nos EUA. O domínio do dólar americano poderá começar a estar em causa.
Será que o príncipe saudita se esqueceu da data?
Acontece que dias antes, a 4 de junho, a Arábia Saudita tinha-se juntado ao banco central da China para a utilização de uma moeda digital com a finalidade de “diminuir a dependência das transações de petróleo serem feitas em dólares americanos”.
Segundo os especialistas, o banco central Saudita tornou-se “full participant” do Projeto mBridge, que é uma colaboração iniciada em 2021 entre os bancos centrais da China, Hong Kong, Tailândia e os Emiratos Árabes Unidos.
A entrada da Arábia Saudita, que é uma economia dos G20 e o maior exportador de petróleo do mundo, aponta para a formação de um grande acordo sobre mercadorias numa plataforma sem dólares, e com uma nova tecnologia. Curiosamente, assente na já usada pelos e-yuan da China.
Juntemos ainda o anúncio feito por Moscovo sobre a suspensão das trocas comerciais em dólares e euros a partir de 13 de junho tendo em vista a criação de um novo sistema de pagamentos (sem dólares) dos BRICS, e temos aquilo que parece ser um ataque concertado ao dólar nessa semana fatídica.
E Biden, conhecedor da situação, apesar de ter ali estado muito perto para a reunião dos G7, e numa altura da corrida presidencial em que não perderia uma ocasião para aparecer vitorioso na Conferência da Paz, partiu para os EUA sem lá pôr os pés.
Os caminhos que o mundo vai percorrendo e que na maior parte são feitos tendo por base condições e objetivos económicos, têm por vezes pequenos deflagradores individuais, pessoais, que vêm inesperadamente alterar o que se esperava que viesse a acontecer. Exemplos como o do assassinato de Carrero Blanco em Espanha que alterou toda a programação pós-franquista; os ataques às Torres Gémeas de New York; o efeito do ressentimento nas lutas anticolonialistas; o efeito da vingança sentida pelos judeus na sua perceção do mundo; e muitos outros.
Recordemos, por exemplo, que há cinco anos, a 9 de junho de 2022, Joe Biden, ainda candidato a Presidente, disse que não venderia mais armas aos governantes sauditas, e que eles iriam pagar pelo que fizeram reduzindo-os aos párias que eles eram, não havendo para eles qualquer redenção:
“And I would make it very clear we were not going to, in fact, sell more weapons to them. We were going to, in fact, make them pay the price and make them, in fact, the pariah that they are. There's very little social redeeming value of the - in the present government in Saudi Arabia.”
Mesmo que depois já como Presidente tenha alterado a sua posição, será que a Casa Real Saudita se esqueceu ou perdoou?
Notas:
Sobre o efeito da vingança nos judeus, ver blog de 19 de junho de 2024, “O pedido da mãe: “Não te esqueças…”
Sobre o ressentimento, ver o blog de 8 de janeiro de 220, “O ressentimento na história”.