(474) Revisitar Lisboa 1971
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“Sempre a merda do futuro, sempre a merda do futuro, e eu que me lixe!”, José Mário Branco.
As pessoas esperam com surda raiva e muita paciência o autocarro, aumento de ordenado, a chegada do Paracleto, bolsas da Gulbenkian, Jorge de Sena.
Até 1974 as mulheres não tinham em Portugal universalmente direito de voto, Fernanda Câncio.
Neste tempo próximo que se prevê que seja de grandes comemorações relativas à substituição do regime autocrático fascista moderado então prevalecente no Continente pelo atual regime não fascista vigente, iremos certamente assistir a uma catadupa de discursos louvando as conquistas alcançadas, para além do inevitável mas inócuo discurso do Presidente, sempre apontado ao futuro (“sempre a merda do futuro, sempre a merda do futuro, e eu que me lixe!”, como pontuava José Mário Branco) e exemplarmente bem escrito não fosse ele professor, exímio na sua repartição do bem pelas aldeias para deixar extasiados e contentes todos os aldeões, e que certamente ficará para a história à frente de todos os outros dos anteriores presidentes, longe já que se está o suficiente para ninguém se lembrar dos seus tempos da corrida de táxi e do mergulho no Tejo.
Outra forma de celebrar é, como o faz Fernanda Câncio, (Diário de Notícias, 9 de abril de 2024, “Por uma família sem amos”), lembrar o que as mulheres não tinham então em Portugal:
“Até 1974 as mulheres não tinham em Portugal universalmente direito de voto; eram impedidas de aceder a certas profissões, como a da magistratura; obrigadas pelo Código Civil, se casadas, a encarar como “chefe da família” o marido, que podia por exemplo abrir-lhes a correspondência, impedi-las de desempenhar determinados trabalhos e decidir, sem que elas pudessem opor-se, sobre a educação dos filhos (elas tinham apenas o direito de “ser ouvidas”).
As mulheres poderiam também ver o casamento legalmente anulado caso o noivo denunciasse a respetiva ausência de virgindade. E havia ainda aquela disposição magnífica do Código Penal que penalizava com apenas “seis meses de desterro da comarca” o marido que matasse a mulher adúltera ou, se “desonradas”, as filhas até aos 21 anos que vivessem sob o seu “pátrio poder” (faz lembrar uma coisa a que se dá o nome de “crimes de honra”, que se associa geralmente a países muçulmanos, não faz?).
Mas vai ser Jorge de Sena quem melhor nos consegue transmitir os estados de alma sentidos e vividos já então, quando em junho de 1972 publica nos cadernos Caliban 3/4, os poemas “Lisboa – 1971” e “Noções de linguística”:
Lisboa – 1971
O chauffeur de táxi queixava-se da vida.
Ganha 400$00 por semana, o patrão conta
que ele se arranje do a mais com as gorjetas.
Os meus amigos morrem de cancro,
de tédio, de páginas literárias.
Vi um rapaz sem as duas mãos que perdeu
na guerra (e o ortopedista ria-se de que ele
só queria por enquanto “calçar” uma
das que artificiais lhe preparou tão róseas).
As pessoas esperam com surda raiva e muita paciência
o autocarro, aumento de ordenado, a chegada
do Paracleto, bolsas da Gulbenkian.
Mas o chauffeur de táxi contou-me que
discutira com um asno e lhe dissera:
“… V. que nesse tempo ainda andava em fuga
de colhão para colhão lá do seu pai, para ver se escapava a ser filho da puta …”
E é isto: andam de colhão para colhão
a ver se escapam – e muitos não escapam.
E os outros não se escapam aos que não escaparam.
Noções de linguística
Ouço os meus filhos a falar inglês
entre eles. Não os mais pequenos só
mas os maiores também e conversando
com os mais pequenos. Não nasceram cá,
todos cresceram tendo nos ouvidos
o português. Mas em inglês conversam,
não apenas serão americanos: dissolveram-se,
dissolveram-se num ar que não é deles.
Venham-me falar dos mistérios da poesia,
das tradições de uma linguagem, de uma raça,
daquilo que se não diz com menos que a experiência
de um povo e de uma língua. Bestas.
As línguas, que duram séculos e mesmo sobrevivem
esquecidas noutras, morrem todos os dias
na gaguez daqueles que as herdara:
E são tão imortais que meia dúzia de anos
as suprime da boca dissolvida
ao peso de outra raça, outra cultura.
Tão metafísicas, tão intraduzíveis,
que se derretem assim, não nos altos céus,
mas na merda quotidiana de outras.