(470) O Holocausto como paradigma da civilização moderna
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Sociedade moderna é toda a sociedade organizada racionalmente, que seja manipulável e controlável.
A escolha do extermínio físico como o meio mais adequado para alcançar a “Solução Final” foi o resultado de procedimentos burocráticos de rotina.
O Holocausto não deve ser entendido como a antítese da civilização moderna ou como um desvio do caminho do progresso, mas sim como uma das suas possibilidades ocultas.
Que o Holocausto tenha sido um genocídio, ninguém minimamente informado tem hoje qualquer dúvida. Já quanto às razões, justificações, para que ele possa ter acontecido nas nações cultural e civilizacionalmente consideradas como as mais desenvolvidas, aí as interpretações variam entre minimizá-lo, ajuizá-lo erradamente, chegando mesmo a negar a sua importância.
Por exemplo, quando se apresenta o Holocausto como algo que aconteceu apenas aos judeus, como o culminar de todo um processo histórico de antissemitismo europeu e cristão na continuação do antissemitismo prevalecente por outros meios, o que estamos a fazer é a reduzi-lo a um episódio isolado que quase nada nos diz sobre a compreensão do estado dessa sociedade. É reduzi-lo a um fenómeno único.
Mas, se for ao contrário, apresentar o Holocausto como um caso extremo, mas que não se pode comparar com o extenso relatório das atrocidades e agressões étnicas e religiosas que se foram verificando ao longo da história e com os quais temos convivido, é apresenta-lo como apenas mais um elemento de uma ampla classe que engloba muitos casos semelhantes de conflito e agressão.
Isto é também atribuir o Holocausto a uma predisposição “natural”, primitiva e culturalmente inextinguível da espécie humana (tal como aos horrores das cruzadas, a matança dos hereges albigenses, dos arménios pela mão dos turcos e a invenção dos campos de concentração pelos ingleses durante a guerra dos Bóeres) um caso “único”, mas que, apesar de tudo, é normal acontecer.
Um “acontecimento” particularmente monstruoso, embora completamente lógico, de ódio étnico e religioso, mas que assim entendido, permite que se lhe encontre o sentido dentro dos parâmetros habitualmente usados para aquilatarmos o modelo da sociedade moderna (uma sociedade organizada racionalmente que seja manipulável e “controlável”). Pelo que, segundo este ponto de vista, nada aconteceu que justifique a introdução de qualquer alteração ao modelo de entendimento vigente.
Para os que assim pensam, para se entender o Holocausto basta explicar em detalhe certas variáveis psicológicas, ideológicas e estruturais relacionadas com as percentagens de vítimas judias ou sobreviventes das distintas coletividades nacionais da Europa dominada pelos nazis. O Holocausto aparece então como um produto único, ainda que completamente determinado por uma concatenação concreta de fatores sociais e psicológicos que desembocaram na supressão temporal do domínio da civilização na qual se mantem o comportamento humano.
E assim, o que se faz é minimizar a importância do holocausto, já que os horrores do genocídio se tornam praticamente indistinguíveis dos outros sofrimentos que a sociedade moderna gera quotidianamente em abundância.
Pelo que uma vez que a sociedade moderna se mostrou incapaz de suprimir os fatores de irracionalidade essencialmente alheios, que as pressões civilizadoras se mostraram incapazes de dominar os impulsos violentos e emocionais, e que a socialização se mostrou incapaz de criar um volume necessário de motivações morais, podemos ser tentados a ver o Holocausto como um “paradigma” da civilização moderna, o seu produto “natural” e “normal”, a sua “tendência histórica”.
Acontece que “se o poder nazi tivesse prevalecido, a autoridade para decidir o que deve ser, teria determinado que no Holocausto não se tinha violado nenhuma lei natural e que não se tinham cometido crimes contra Deus nem contra a humanidade. Decisões como a conveniência ou não de se prosseguirem operações com trabalho de escravos, ampliá-las ou terminá-las, teriam sido tomadas em função de critérios racionais”.
E é isso que não nos deixa encarar de frente esta recordação: a suspeita corrosiva que o holocausto possa ter sido algo mais que uma aberração, algo mais que um desvio da senda do progresso, mais que um tumor canceroso no corpo saudável da sociedade civilizada. Que, em resumo, o Holocausto não tenha sido a antítese da civilização moderna e de tudo o que ela representa. Suspeitamos que o holocausto poderia ter descoberto um rosto oculto da sociedade moderna, um rosto distinto do que já conhecemos e admiramos. E que os dois coexistem comodamente unidos no mesmo corpo.
É Henry Feingold que insiste em dizer que o Holocausto é parte da evolução da extensa história da sociedade moderna:
“A Solução Final foi o ponto em que o sistema industrial europeu fracassou. Em vez de potenciar a vida, que era a esperança original do Iluminismo, começou a consumir-se. O sistema industrial e a ética associada, fizeram com que a Europa dominasse o mundo”.
E explica como foram essas mesmas técnicas que foram utilizadas para tornar efetiva a “Solução Final”:
“[Auschwitz] foi também uma extensão rotineira do sistema de fábricas. Em vez de produzir mercadorias, a matéria prima eram seres humanos, e o produto final era a morte, tantas unidades ao dia cuidadosamente anotadas nas tabelas de produção do diretor. Das chaminés, símbolo do moderno sistema de fábricas, saía um fumo acre produzido pela cremação de carne humana. A rede ferroviária organizada com tanta inteligência, levava às fábricas um novo tipo de matéria prima. Igual a outro carregamento. Nas câmaras de gás, as vítimas inalavam o gás letal das botijas de ácido prússico, produzidas pela avançada indústria química alemã. Os engenheiros desenharam os fornos crematórios, e os administradores o sistema burocrático que funcionava com tanto entusiasmo e eficiência que constituía a inveja de muitas nações. Inclusivamente no seu conjunto, o plano era um reflexo do espírito científico moderno. O que presenciamos não foi outra coisa que um esquema massivo de engenharia social.”
É por esta normalidade de ação e intenção que o Holocausto representou algo de novo e desconhecido, no sentido em que se acomodou por completo a tudo o que sabemos da nossa civilização, o espírito que a guia, as suas ordens de prioridade, a sua visão imanente do mundo, as formas adequadas para alcançar a felicidade humana dentro de uma sociedade perfeita.
O teólogo americano, Richard L. Rubenstein, vai utilizar os diagnósticos de Max Weber sobre as tendências da sociedade moderna, para tentar saber se teria sido possível prever o que tinha acontecido, se os tivéssemos utilizado.
E verificou que na exposição de Weber sobre a burocracia moderna, o espírito racional, o princípio da eficiência, a mentalidade científica, a relegação dos valores para o reino da subjetividade, etc. não se faz referência a qualquer mecanismo capaz de excluir a possibilidade dos excessos nazis e que, para além disso, nada havia nos tipos ideais de Weber que permitisse encarar os procedimentos nazis como excessos.
Refere, por exemplo, que ”nenhum dos horrores perpetrados pelos membros da profissão médica alemã ou pelos tecnocratas alemães era inconsequente com a opinião que os valores são inerentemente subjetivos e que a ciência é intrinsecamente instrumental e não tem valores”.
E na sua obra, Approaches to Auschwitz: The Holocaust and its Legacy, vai dizer-nos que na “Solução final”, o potencial industrial e os conhecimentos tecnológicos de que a nossa civilização se jatava alcançaram novas alturas ao enfrentar-se com êxito com uma tarefa sem precedentes. A “Solução Final” mostra à sociedade uma capacidade que até aí não tínhamos conseguido perceber que tinha. Como nos ensinaram a respeitar e admirar a eficiência técnica e os bons planos, não podemos deixar de fazer outra coisa que admirar o que o progresso material trouxera à nossa civilização.
“O mundo dos campos da morte e a sociedade que engendra, descobre o lado cada vez mais escuro da civilização judeo-cristã: Civilização significa escravidão, guerras, exploração e campos de morte. Também significa higiene médica, elevadas ideias religiosas, arte cheia de beleza e música esquisita. É um erro supor que a civilização e a crueldade selvagem são uma antítese. Na nossa época, as crueldades, e outros muitos aspetos do nosso mundo, são administrados de uma forma muito mais efetiva que anteriormente: não deixaram de existir. Tanto a criação como a destruição, são aspetos inseparáveis do que chamamos civilização”.
Como nenhuma destas condições parecem ter desaparecido, o sociólogo sul-africano, Leo Kuper faz-nos notar que, “o Estado territorial reclama, como parte integral da sua soberania, o direito a cometer genocídios ou a desencadear matanças genocidas contra as pessoas submetidas à sua autoridade e […] na prática as Nações Unidas defendem este direito”, então o Holocausto continua a ser uma das possibilidades ocultas da sociedade moderna.
Vai ser num livro de 1989, Modernnity and the Holocaust, (obra aqui seguida de perto) que Zygmunt Bauman, além de explorar a relação que vê entre a modernidade e o Holocausto, expõe a tese sobre a importância que a cultura burocrática instituída teve na Solução Final. Segundo ele, é preciso entender-se o modo como a burocracia moderna racionaliza, mantendo-se eticamente cega em busca da eficiência burocrática.
Um assassinato em massa desta magnitude depende da existência de técnicas e hábitos meticulosos e firmemente estabelecidos, de uma divisão de trabalho precisa, da manutenção de um fluxo suave de informação e comando e de uma sincronizada coordenação de ações independentes, mas complementárias: em resumo, todas as técnicas e hábitos que crescem e se desenvolvem num ambiente de uma oficina.
A estrada que conduziu à exterminação física dos judeus europeus não foi concebida por um monstro enlouquecido nem foi uma decisão pensada por dirigentes ideologicamente entusiastas que viram o processo total da resolução de problemas. Ele foi antes surgindo milímetro a milímetro, caminhando a cada momento conforme o destino que aparecia, mudando a cada nova crise que surgia e avançando com a filosofia de que “já atravessaremos essa ponte quando lá chegarmos”.
Eis como se passou: “Hitler fixou o objetivo do nazismo: livrarem-se dos judeus e sobretudo, que os territórios do Reich estivessem livres de judeus”, mas não especificou como o deviam fazer. Uma vez definido o objetivo, competia a cada um dos especialistas de acordo com os funcionários qualificados da direção da administração, darem conta dele tendo em consideração a viabilidade e os custos de vias alternativas de atuação.
Em 1935, começam por serem adotadas as leis raciais de Nuremberg, que distinguiam entre “judeu”, “mestiço” (Mischling) e “de sangue alemão ou aparentado” com base em critérios genealógicos. Os marcadores específicos de classificação grupal que permitiram a discriminação e precederam a própria ação genocida ficam já aqui estabelecidos. Em novembro de 1938, o regime nazista orquestrou um pogrom cujo resultado foi a destruição de centenas de sinagogas, saques, assassinatos, prisões e transferências para campos de concentração (ainda não existem campos de extermínio).
O primeiro que se pensou como solução prática para o objetivo traçado, seria transferir os judeus para outros países que os aceitassem. Após a anexação da Áustria, Eichmann foi muito elogiado por ter conseguido a que esses judeus emigrassem em massa, saindo do país. Após o território alemão ter começado a aumentar, a burocracia nazi considerou essas conquistas como a oportunidade sonhada para cumprir a ordem do Führer. Criaram então na Polónia, uma reserva (concentração) para o futuro “principado judeu”.
Mas a burocracia alemã encarregada da administração dos territórios da Polónia, objetou que tinha já muitos problemas para controlar os “seus” judeus. Eichmann vai passar então quase um ano a trabalhar no projeto alternativo de Madagáscar, pois uma vez que a França fora conquistada, era perfeitamente possível enviar os judeus para essa colónia francesa. A enorme distância, os transportes necessários e a marinha inglesa, foram atrasando o projeto.
Entretanto, o território conquistado ia aumentando e com ele o número de judeus debaixo da jurisdição alemã. Cada vez era mais visível uma Europa conquistada e dominada pelos nazis, pelo que o objetivo de uma “Alemanha livre de judeus” passou a ser uma “Europa livre de judeus”.
Com a próxima queda da Rússia, aqueles vastos territórios para oriente seriam a solução. Só que a Rússia não caiu, pelo que teria de aparecer uma solução alternativa. A 1 de outubro de 1941, Himmler dá ordens para se cancelar a emigração de judeus. Tinham-se encontrado outros métodos mais efetivos para cumprir a tarefa de se verem livres dos judeus: o extermínio físico.
Quando a 20 de janeiro de 1942 se realiza a célebre Conferência de Wannsee, já mais de meio milhão de judeus tinham sido assassinados.
Os historiadores do Holocausto concordam que a decisão de assassinar todos os judeus da Europa foi tomada alguns meses antes por Hitler e pelo Reichsführer SS Heinrich Himmler, embora não exista nenhum documento que prove explicitamente isso.
Em Wannsee, Reinhard Heydrich relatou esta decisão, assumiu o comando e convidou os participantes a resolver diferenças de competência, a fim de sistematizar e estender o genocídio até ao último canto da Europa. Foram resolvidos aspetos legais – como tratar os judeus e os Mischlinge de primeiro e segundo grau, bem como os “casamentos mistos”, como confiscar os seus bens – e foram formuladas propostas concretas de “soluções” para o problema, ou seja, a eficiência dos diferentes métodos de assassinato. Após o encontro, que durou 90 minutos, foram servidas bebidas e os comensais almoçaram.
Tomada a decisão, restava apenas coordenar os distintos departamentos da burocracia do Estado: realizou-se uma cuidadosa planificação, fizeram-se cálculos, mobilizaram-se os recursos necessários. A Habitual rotina burocrática.
Sigamos Bauman:
“A lição mais devastadora da análise da “estrada sinuosa para Auschwitz” é que, finalmente, a escolha do extermínio físico como o meio mais adequado para alcançar a “Solução Final” foi o resultado de procedimentos burocráticos de rotina, ou seja, do cálculo da eficiência, da regularização das contas, da aplicação dos padrões em geral. Pior ainda, a escolha eleita foi uma consequência do esforço para encontrar soluções racionais para os “problemas” que surgiram à medida que as circunstâncias mudavam.
Em nenhum momento da sua longa e tortuosa realização o Holocausto entrou em conflito com os princípios da racionalidade. A “Solução Final” não colidiu de forma alguma com a busca racional pela eficiência, com o alcance ótimo das metas. Pelo contrário, surgiu de um procedimento verdadeiramente racional e foi gerada por uma burocracia fiel ao seu estilo e à sua razão de ser.
Sabemos de muitos massacres, pogroms e assassinatos em massa, acontecimentos não muito distantes do genocídio, que foram cometidos sem contar com a burocracia moderna, com o conhecimento e tecnologias de que dispõe ou com os princípios científicos da sua gestão interna. O Holocausto não teria sido possível sem tudo isto. O Holocausto não resultou de uma fuga irracional daqueles resíduos ainda não erradicados da barbárie pré-moderna. Era um inquilino legítimo da casa da modernidade, um inquilino que não se sentiria confortável em qualquer outro edifício.
Não quero dizer que a intensidade do Holocausto foi determinada pela burocracia moderna ou pela cultura da racionalidade instrumental que ele encapsula, e muito menos que a burocracia moderna produza necessariamente fenómenos semelhantes ao Holocausto.
O que quero dizer é que as normas da racionalidade instrumental são especialmente incapazes de evitar esses fenómenos, que não há nada nesses padrões que desqualificam os métodos de “engenharia social” do estilo daqueles do Holocausto ou que considera irracionais as ações a que deram lugar.
Sugiro ainda que o único contexto em que poderia ser concebido, desenvolvido e realizada a ideia do Holocausto foi a cultura burocrática que nos encoraja a considerar a sociedade como um objeto a ser gerenciado, como uma coleção de diferentes “problemas” a resolver, como uma “natureza” que deve ser “controlada”, “dominada”, “melhorada” ou “remodelada”, como objeto legítimo de “engenharia social” e, em geral, como jardim que deve ser projetado e forçosamente preservado da maneira como foi projetado (a teoria da jardinagem divide a vegetação em dois grupos: “plantas cultivadas”, que não devem cuidar e “ervas daninhas” que devem ser eliminadas).
E também insinuo que o espírito de racionalidade instrumental e sua institucionalização burocrática não só deu origem a soluções como as do Holocausto, mas, fundamentalmente, tornou que estas soluções seriam “razoáveis”, aumentando com isso as probabilidades que elas fossem as escolhidas. Este aumento na probabilidade está relacionado com a forma mais do que coincidente com a capacidade da burocracia moderna para coordenar a ação de um grande número de pessoas jurídicas para atingir qualquer objetivo, mesmo que seja imoral.”
Conclusão:
O Holocausto não deve ser entendido como a antítese da civilização moderna ou como um desvio do caminho do progresso, mas sim como uma das suas possibilidades ocultas.
O Holocausto não desapareceu da face da terra com a derrota do nazismo em 1945. Permanece como uma ameaça num mundo em que se multiplicaram os meios e as tecnologias para o tipo de dominação que os nazis levaram à sua expressão extrema.