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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(469) Escravatura: natural e eterna

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

Trata-se de um gado cuja posse é embaraçosa, Platão.

 

O verdadeiro saber não se aprende: como procurar o que se ignora?

 

O caráter empreendedor e a ambição desmedida contrariam a vida do espírito.

 

Só por convenção é que um homem é escravo e outro livre,  Aristóteles

 

 

 

A convicção de que a escravatura é natural e eterna (sempre existiu e sempre existirá), e que “as pessoas a que podemos sem contestação possível chamar escravos […] devem ser afastadas e separadas da atividade política”, ainda hoje permanece como parte intrínseca da ideologia de exclusão de variados movimentos e organizações. E, contudo, essa convicção não pode ser atribuída à descoberta e inteligência dos seus pensadores programáticos e chefes, nem sequer às “fontes” fascistas e nazis do século passado a que muitas vezes se acolhem. Essas convicções (e a citação supra) encontravam-se já em O Político, e são de Platão.

 

Embora Platão reconhecesse que os escravos não deviam ser maltratados, abusados ou violentados, não os considerava qualificados para poderem ser cidadãos ou sequer homens: “Trata-se de um gado cuja posse é embaraçosa” (Leis, 777 b).

É por isso que apesar de reconhecer que existiam escravos devotados, logo acrescenta:

 

 “Mas não se diz também o contrário, que numa alma de escravo não há nada de honesto, que se formos razoáveis nunca devemos confiar nessa raça? O mais sábio dos poetas declara-o mesmo expressamente quando diz, falando de Zeus, que ‘os homens foram privados de metade da sua parte de inteligência por Zeus que vê ao longe, no dia em que fez escravos”.

 

Este seu desprezo pelos escravos anda junto com o seu desprezo para com o trabalho manual, por ele considerado como um obstáculo ao conhecimento e uma causa de indignidade para o cidadão:

 

Que nenhum natural [da cidade] pertença ao número dos que, enquanto profissionais, praticam uma arte que é o seu ofício […]. Se, entre as pessoas do país existir uma pessoa que se abandone ao exercício de qualquer arte, em lugar de se dedicar àquela cujo objeto é o culto do valor moral, as outras que a corrijam, quer censurando-a, quer privando-a de distinções até que tenham conseguido voltar a pô-la no bom caminho.” (As Leis, 777).

Falta muito para que os lavradores e todas as pessoas que praticam um ofício se conheçam a si mesmas; elas não conhecem sequer os assuntos que constituem as suas ocupações; por maioria de razões essas pessoas estão ainda mais afastadas de se conhecerem a si mesmas, em virtude justamente das artes que exercem, porque o que elas conhecem são os assuntos relativos ao corpo, os que concorrem para a sua manutenção […] Se portanto o facto de se conhecer a si mesmo reside numa sábia moderação, então nenhuma dessas pessoas, em virtude da sua arte, é sábia dessa maneira. […] Por consequência, as suas artes são precisamente tidas por artes de operários e não constituem objeto de estudo para um homem de valor.” (Primeiro Alcibíades, 131).

 

Há aqui, portanto, um desprezo pela técnica e uma valorização do saber teórico, que sempre o acompanham, e que o levam à distinção entre “saber” e “opinar”, entre disciplinas de ação e disciplinas de contemplação.

Daí que para Platão, e contrariamente à pretensão dos sofistas (“esses peregrinos da educação, esses estrangeiros vindos para Atenas a fim de serem pagos pelas novas camadas da população recentemente conquistada para a vida pública na sequência do desenvolvimento democrático”, V. Magalhães Vilhena, Estudos Inéditos de Filosofia Antiga), o verdadeiro saber não se aprende: como procurar o que se ignora? Para Platão, saber é recordar-se, é “retomar por si mesmo um conhecimento em si mesmo”.

 

A cultura não é o que certos que fazem profissão de a ministrar, dizem que é”, porque esses pretendem “que conseguem depositar saber numa alma dentro da qual o saber não existe, eles conseguem depositá-lo, como se depositassem a visão em olhos cegos” (A República, 516).

 

Platão recusa admitir que se posa conferir a faculdade de ver a pessoas cuja cegueira é manifesta. O espírito aristocrático une-se assim ao espírito antidemocrático, o nobre desprezo pelo comum dos mortais, o arrogante desdém do profissional, a cultura e a sageza tornam-se privilégios de classe.

Eis o que ele nos diz no Protágoras, 323:

 

Se o homem pensa independentemente dos objetos e dos sentidos, as suas ideias são verdades celestes. Sob o efeito da origem divina da sua alma, o homem, purificado das baixezas do corpo e das vis tarefas, participa na divindade. Se a alma humana já está pré-formada antes de ter início a experiência individual, então o sofista Protágoras estava errado ao julgar que o mérito não era uma qualidade natural, uma qualidade da natureza, inata, mas que pelo contrário ‘é qualquer coisa que se ensina e que aquele em que o mérito se afirma, tal resulta de um esforço de aplicação’. “

 

E no Fédon, 72:

 

“Mas, se a educação não é senão um esforço de rememoração, então é forçoso ‘que tenhamos aprendido num tempo anterior, as coisas de que agora nos lembramos […] o que é impossível, a menos que a nossa alma esteja em qualquer parte, antes de nascer na sua fora humana’.”

 

O seu desprezo pelo jornaleiro, pelo artesão e pelos demais assalariados, estende-se também aos comerciantes, a todos os que procuram obter riquezas: a preocupação exclusiva com o ganho quotidiano, a paixão insaciável pelo enriquecimento privam o cidadão do ócio necessário para se ocupar dos seus verdadeiros deveres, isto é, dos deveres cívicos. O caráter empreendedor e a ambição desmedida contrariam a vida do espírito.

Este sentimento de altivo desprezo pelo que constitui a maior parte do povo de Atenas era, muito provavelmente, também compartilhado por muitos dos seus contemporâneos aristocráticos, “homens de nascimento honesto e distinto”, como Xenofonte nos refere na República dos Atenienses:

 

Em todos os países, as classes altas são inimigas da democracia. Em geral, elas não são violentas, nem injustas, dão mostras de gostos honestos; pelo contrário, o povo é ignorante, turbulento, porque a pobreza o expõe muito mais a atos de baixeza, e porque muitas vezes, por falta de fortuna, ele se vê desprovido de instrução e de educação.

Não se deve permitir a todos indistintamente – dir-se-á – arengar e aconselhar, mas tão somente àqueles que possuem mais talento e mais virtude […] Que os cidadãos notáveis tenham o direito exclusivo de opinar em primeiro lugar – eis o que será um bem para os da sua classe, mas não para o povo; ao passo que se o cidadão mais ínfimo for livre de se levantar e de arengar a assembleia, descobre o que é bom para ele e para os seus iguais.

Mas – replicar-se-á – que poderá dizer de útil um homem daquela espécie, para si e para o povo? Pois bem, na opinião pública, esse homem tal como é, com a sua ignorância, a sua baixeza, mas com as suas boas intenções, vale mais do que um cidadão honesto, com a sua virtude, a sua sensatez, mas com sentimentos mal-intencionados.

Talvez um tal plano não seja o melhor possível, pelo menos assegurará a continuidade da democracia. Ao povo é necessária, não uma administração sensata que o tornaria escravo, mas a liberdade e a soberania. Que a constituição seja viciosa – para ele isso é coisa de somenos. O que, a vós, parece defeituoso no sistema político, é precisamente o que torna o povo poderoso e livre.

Quereis uma boa constituição? Pois fazei, antes de tudo, que sejam os mais hábeis a elaborara as leis, em seguida, que os bons sejam autorizados a reprimir os maus, a deliberar sobre os interesses do Estado, sem permitir que os loucos possam opinar, falar e arengar; mas com estes belos objetivos, o povo voltará muito em breve a cair na escravidão”.

 

 

Nascido e educado na aristocracia ateniense (Aristão, seu pai, descendia de Codro, o último rei de Atenas, e a sua mãe descendia de Sólon, o grande legislador ateniense), não rompe com as conceções tradicionais desse meio, mormente nunca pondo em causa o carácter necessário da escravatura (o que levanta a interessante questão da ligação entre a atividade intelectual do pensador e as condições de vida material em que essa atividade aparece, ou dito de outro modo, a questão da relação entre a escravatura e os ócios do homem livre tornados possíveis pela divisão do trabalho em vasta escala, entre a escravatura e o desenvolvimento do mundo antigo) e atribuindo à democracia a culpa de tudo.

Para ele, a democracia era a responsável pelo crescimento das classes urbanas opostas à aristocracia fundiária, pelo expansionismo mercantil e pela guerra, ou seja, por todas as desgraças que pesavam sobre a Cidade, e antes de tudo, sobre a sua classe, “a mais digna”.

 

Ele era incapaz de distinguir, no conteúdo do processo social, o que estava a definhar-se do que estava a brotar, o que deixara de viver do que estava a desenvolver-se; não era capaz de explicar a inelutabilidade dos eventos que se sucediam e que encaminhavam a cidade para a sua perda […] Por isso a política platónica não era capaz de descobrir o sentido da progressão histórica, nem de tomar consciência do facto de que as suas esperanças assentavam numa força social que chegava ao fim da sua evolução, já sem poder encontrar em si a capacidade de criar, de raiz, uma nova sociedade, nem de empreender a transformação da antiga” (V. de Magalhães Vilhena, Estudos Inéditos de Filosofia Antiga).

 

Daí que a sua República não tenha sido implantada em lugar nenhum, e onde o tentou, tal acabou por levar à sua expulsão e venda como escravo. Mas essa falta de sentido histórico que não permitiu a sua utilização como política prática a seguir (digamos até que nesse plano se tratava de uma utopia regressiva), não vai impedir que o platonismo se afirme como fonte teórica de numerosas correntes intelectuais ulteriores. O idealismo político dos séculos posteriores, tanto quanto o idealismo, inspiram-se larguissimamente em Platão. Ele é a fonte teórica de todo o idealismo que se lhe seguiu.

 

Mas tal não impediu que um seu contemporâneo, Aristóteles, tivesse notado que:

 

“para alguns, o poder do amo é contrário à natureza, visto que só por convenção é que um homem é escravo e outro livre, uma vez que por natureza não há diferença; esse poder deriva da violência, não da justiça”. (A Política, I, 3, 1253)

 

 

Recomendação:

 

O blog de 3 de outubro de 2018, “A burca, segundo Platão

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