(468) Só é preciso engaiolar um pássaro se ele souber que pode voar
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Na distopia do 1984, as pessoas sabiam que não viviam numa sociedade livre, enquanto que nesta distopia em que vivemos as pessoas acreditam que são livres.
Coletivamente, não poderíamos estar mais alinhados com a vontade dos poderosos do que já estamos, mesmo que os nossos cérebros fossem substituídos por chips de computador.
Sem a capacidade de manipular o público em grande escala, os nossos governantes não podem governar.
Se não se acautelarem, os jornais vão fazer com que odeiem as pessoas que estão a ser oprimidas, e que amem as pessoas que as estão a oprimir.
“Um ponto que continuo aqui a tentar deixar claro de todas as maneiras que posso é que esta é a distopia sobre a qual fomos avisados. A principal diferença entre esta distopia controlada pela mente e as distopias ficcionais dos romances como o 1984, é que em 1984 as pessoas sabiam que não viviam numa sociedade livre, enquanto que nesta distopia as pessoas acreditam que são livres. (1)
Na distopia de Orwell, as pessoas sabiam que não eram livres e tinham de usar uma forma dúplice de pensar para evitar problemas com os seus governantes. Nesta distopia, as pessoas não têm ideia do quão generalizadamente estão a ser dominadas pelos seus governantes; elas pensam que criaram as suas ideias, visão do mundo e posições políticas por si próprias, quando na realidade, sem sequer o saberem, esses sistemas de crenças foram construídos dentro das suas cabeças por uma máquina de propaganda profundamente sofisticada.
Todas as facões políticas dominantes e semi-dominantes, pertencem e são operadas pelos poderosos, e a propaganda é usada para fazer com que o público as subscreva para promover os interesses dos poderosos. Como a esmagadora maioria de nós foi manipulada para defender um destes sistemas de crenças que servem o poder (eles oferecem múltiplas escolhas dependendo da sua disposição ideológica), as medidas mais abertamente totalitárias descritas pelos romancistas distópicos são desnecessárias. Só se necessita engaiolar um pássaro se ele souber que pode voar.
Mas não se engane: a nossa sociedade não é mais livre do que aquelas dos futuros sombrios imaginados pelos contadores de histórias. Se as nossas mentes não são livres, então não somos livres. Se estivermos a ser manipulados com sucesso para pensar, falar, agir, votar, trabalhar e consumir de acordo com os desejos dos poderosos, então estaremos tão presos como estaríamos se tivéssemos correntes à volta do pescoço. Coletivamente, não poderíamos estar mais alinhados com a vontade dos poderosos do que já estamos, mesmo que os nossos cérebros fossem substituídos por chips de computador.
Não há mais necessidade de ficção distópica, porque a distopia já chegou. Está aqui. Na verdade, a ficção distópica é destrutiva porque faz com que as pessoas imaginem que a distopia é uma ameaça que existe em algum lugar no futuro, em vez de aqui e agora, à nossa volta.
Não precisamos de ficção distópica pela mesma razão que não precisaríamos de romances de fantasia imaginários com espadas e feitiçaria se vivêssemos num mundo de bruxas e dragões. As pessoas que vivem em sociedades distópicas não precisam de ficção distópica, precisam de factos distópicos. Jornalismo distópico. Documentários distópicos. Polémicas distópicas. Precisamos apenas de informações verdadeiras e ideias baseadas na realidade para combater as mentiras e a manipulação com as quais somos inundados no dia a dia.
Não podemos ser livres até que tenhamos usado o poder do nosso número para nos livrarmos do controlo dos nossos senhores distópicos, e nunca o faremos enquanto uma maioria crítica de nós for incapaz de ver o quão profundamente não-livres realmente somos. Não há como escapar da matriz de controle mental da propaganda imperial até que se possa ver as linhas de código que a compõem.
A nossa tarefa mais importante, neste momento da história, é continuar a apontar essas linhas de código para o maior número possível de pessoas, de todas as maneiras que pudermos imaginar. A única vantagem deste tipo de distopia é que os nossos governantes precisam de manter a sua imagem de sociedade livre e de boas pessoas, a fim de preservar a ilusão de que somos livres, evitando assim saírem e começarem a prender todos os que se destacam de inúmeras maneiras. Somos escravizados por mentiras e propaganda. Eles nunca nos concederão uma plataforma importante para fazer isso, mas podemos operar dentro das margens, despertando uma pessoa à vez para a realidade do que está a acontecer.
Portanto, saia por aí espalhando a verdade. Combatendo a propaganda. Enfraquecendo a confiança pública nos meios de comunicação de massa e nas construções políticas para as quais eles fabricam consentimento. Destacando a depravação e o assassinato do império. Use toda e qualquer mídia e fórum que considere eficaz.
Tudo o que fizer nesse aspecto faz a diferença e nunca deixe que alguém lhe diga o contrário. A máquina de propaganda é o eixo do seu poder. É o que mantém o império unido. Sem a capacidade de manipular o público em grande escala, os nossos governantes não podem governar.
Quando as pessoas deixarem de acreditar nas narrativas ao serviço do poder, ganharemos a capacidade de começar a trabalhar para a criação de uma sociedade baseada na verdade que funcione para todos. Mas isto nunca acontecerá enquanto estivermos a ser manipulados com sucesso para acreditarmos que este modelo é o aceitável para a civilização humana e serve os nossos interesses. O primeiro passo é separar os nossos cérebros da matriz de propaganda.”
- Este blog é a tradução literal do artigo da conhecida jornalista australiana Caitlin Johnstone, “You Only Need To Cage A Bird If It Knows That It Can Fly”, de 20 de Janeiro de 2024.
Notas complementares:
Há uma compilação de entrevistas de Malcom Little sobre a comunicação social mais alinhada (“How The Mainstream Media Operates”) em que ele diz: “Se não se acautelarem, os jornais vão fazer com que odeiem as pessoas que estão a serem oprimidas, e que amem as pessoas que as estão a oprimir”.
É no livro de 1988, Manufacturing Consent, que Noam Chomsky e Edward Herman, vão comparar a cobertura que a comunicação social dispensa aos vários atos e ações de violência cometidos no mundo, para tentarem perceber porque é que algumas dessas atrocidades são privilegiadas com notícias de primeira página e outras são simplesmente ignoradas. Os famosos “critérios jornalísticos”.
A conclusão a que chegaram é que o interesse desses meios de comunicação social tem que ver essencialmente com dois fatores: quem é o perpetrador, e quem é a vítima?
Se o perpetrador for um inimigo do estado ou um ator hostil, então o interesse dos mídia cresce exponencialmente. Mas, se a falha for do próprio estado ou dos seus aliados, então tendencialmente os mídia ignorarão a história.
E um dos exemplos que apresentam é o da cobertura que foi dada pelo assassinato de um sacerdote num país inimigo (a Polónia então comunista), que encheu páginas e páginas e de tempo de antena, quando comparado com o insignificante relevo dado ao assassinato de mais de 100 sacerdotes cometidos por grupos armados na América do Sul encobertos pelo governo.
Trinta e seis anos depois, o “critério jornalístico” mantém-se o mesmo, até mais aprimorado: eis um exemplo recente com as enormes diferenças de tratamento mediático (salvo as devidas proporções) dadas às mortes de Alexei Navalny e de Gonzalo Lira.
Entre 16 e 22 de fevereiro, o New York Times, Washington Post, ABC News, Fox News e a CNN, emitiram 731 segmentos sobre a morte, numa colónia penal no Ártico, de Alexei Navalny, e apenas um segmento sobre a morte a 12 de janeiro, numa prisão ucraniana, do jornalista norte-americano Gonzalo Lira. Ambos eram críticos dos governos que os encarceraram. Em ambos os casos, as famílias respetivas afirmam tratar-se de assassinatos.
Em qualquer caso trata-se de um avanço civilizacional: os meios de comunicação americanos consideram mais importante a morte de um cidadão russo na Rússia do que a morte de um cidadão americano na Ucrânia.
Recomendo a leitura do blog de 19 de setembro de 2016, “Lembram-se de O. J. Simpson?”.