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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(465) O presente sempre em fuga

Tempo estimado de leitura: 4 minutos

 

Se foi, não é, e também não é se está a ponto de vir a ser no futuro, Zenão de Elea.

 

É como se o cérebro rescrevesse a sua própria história, como se nada daquilo tivesse acontecido ou como se soubesse desde sempre afinal onde se iria estar.

 

Somos mais que simples sujeitos de conhecimento e o mundo é mais do que um mero objeto que se preste à explicação.

 

 

 

 

 

 

O presente não está a acontecer agora quando o estamos a viver. Lá porque quando olhamos para uma coisa julgamos que o que estamos a ver está a acontecer exatamente nesse instante em que a vemos, isso não é verdade. O que estamos a ver é algo que aconteceu imediatamente antes, e que, portanto, é passado.

É assim: quando os olhos veem uma coisa, essa informação leva um certo tempo até chegar ao cérebro, onde ela é processada, analisada e finalmente integrada na consciência.

E as perguntas são: porque é que não damos conta desses atrasos, e como é que o cérebro atua por forma a sentirmos que a experiência que estamos a viver está mesmo a acontecer em tempo real?

 

Vejamos um caso prático: o apanhar uma bola. A informação leva algumas dezenas de milissegundos a ir do olho ao cérebro, e para que seja tomada a ação correspondente a essa informação demora-se cerca de 120 ms. Ora durante esse tempo a bola continua a movimentar-se, por isso, a informação sobre a posição onde se encontra a bola tem sempre um atraso relativamente à posição onde a bola se encontra na realidade.

Nos desportos em que a bola é lançada com velocidades superiores a 100km por hora (ténis, basebol e outros), durante esse lapso de tempo a bola percorre mais de 3 metros. Pelo que se a perceção que temos da posição da bola nos fosse dada pela informação mais recente que o cérebro tinha, então nunca seríamos capazes de apanhar ou bater a bola. Portanto, como é que o cérebro nos permite ver onde a bola está em vez de ver onde ela estava?

 

Através de um ‘mecanismo’ de predição, que vai extrapolando a posição do objeto ao longo da sua trajetória apercebida. Ou seja, o cérebro continua a ‘ver’ o objeto no sítio onde se espera que o objeto venha a estar, em vez da informação real que lhe chegou dos olhos.

Este padrão de atividade do cérebro só desaparece quando nova informação dos olhos chegar ao cérebro para lhe dizer que o objeto já lá não está, desapareceu. A predição original é então rapidamente reescrita, como se o cérebro encobrisse as suas predições erradas.

É como se o cérebro rescrevesse a sua própria história, como se nada daquilo tivesse acontecido ou como se soubesse desde sempre afinal onde o objeto iria estar.

 

 

Há 2.400 anos, Zenão de Elea (na Grande Grécia, colónia grega no sul da Itália), apresentou aquilo que ficou conhecido como o paradoxo de Aquiles e a Tartaruga, segundo o qual um corredor mais rápido nunca poderia ultrapassar um mais lento, uma vez que o mais rápido teria primeiro que chegar ao sítio onde o mais lento se encontrava e entretanto o mais lento já tinha andado mais um bocado que o mais rápido teria então de alcançar, sendo que entretanto o mais lento já tinha andado mais um bocado, etc. (conforme vem recontado por Aristóteles na Física VI:9, 239b 15).

 

Esta escola de pensamento, chamada Eleática, que começa com Parménides, advogava que a realidade era indivisível, imperecível, perfeita, imóvel e incriada, admitindo, portanto, apenas a existência de uma única entidade responsável por toda a realidade (monismo, “Tudo é Um”), e que os sentidos não podiam reconhecer a essência dessa realidade, dada a inconsistência (falsa aparência) dos seus relatos (observação dada pelos sentidos, que chamava de opinião). Essa essência só podia ser conhecida pelo pensamento (pela razão), pelo que se considera que Parménides tenha sido o primeiro pensador a opor razão à opinião, e que até hoje ainda continua a manifestar-se nos diálogos entre razão e experiência, teoria e prática, idealismo e materialismo… 

A sua oposição ao conceito de criação assentava no facto de uma coisa não poder ter origem em algo que fosse diferente de si, porquanto o ser não pode vir do não-ser.

Como tudo era Uno, a transformação permanente, o devir como a essência das coisas de Heraclito, era refutada por Zenão:

 

Como é possível que aquilo que é possa vir a ser? E como pode ele vir à existência? Se foi, não é, e também não é se está a ponto de vir a ser no futuro. Assim, o nascimento não existe e não pode também falar-se de destruição”.

 

 

Veiem de longe estas tentativas para se conseguir alcançar a essência da existência ou, conforme as escolas, a existência da essência, para se compreender aquilo que na essência o mundo e a consciência são.

Para Kant, era já muito claro que os humanos não podiam ter acesso direto à realidade, podendo apenas ter acesso aos conteúdos dos seus espíritos, notando ainda que apenas o que era experienciado pelo espírito é que seria para nós realidade (a tal distinção que fazia entre Noumena – as coisas-em-si-mesmas fundamentalmente incognoscíveis – e Phenomena – o mundo conforme aparecia no espírito).

 

Dado que a cumplicidade com o mundo oriunda da nossa relação com ele tornava difícil essa compreensão, mormente pela atitude científica pela qual nos desenraizamos do mundo ao ponto de conceber uma cisão entre sujeito e objeto, reduzindo a Filosofia a uma explicação dos factos, tentou-se arranjar um método que permitisse à Filosofia chegar à essência desses mesmos factos, um “regresso às coisas mesmas”, numa compreensão do mundo vivido antes de ele ser explicado ou analisado em termos científicos.

Este regresso implicava olharmos o mundo antes de o conhecermos, isto é, olharmos o mundo com a consciência de que, antes de ele se dar como objeto, ele já era um mundo “para mim”.

É este “regresso às coisas mesmas” que Husserl vai propor com a fenomenologia como método de análise da realidade sem nenhum tipo de ideias pré-concebidas, eliminando tudo o que fosse acessório e sobre valorizado pelo tempo, cultura, pessoal, etc., não para negar a existência do mundo, mas para que, ao afastarmo-nos dele para melhor o visualizar  e compreender que o mundo é anterior ao conhecimento que sobre ele construímos, se reconheça que ele é um “tecido sólido” cuja existência não depende do meu conhecimento sobre ele.

Este mundo não se reduz ao conhecimento sobre o mundo; ele pré-existe como irrefletido e vivido e é sobre ele que se funda toda a reflexão.

Ao suspendermos a atitude natural que temos para com o mundo, tal vai-nos permitir quebrar laços, “distender os fios intencionais que nos ligam ao mundo para os fazer aparecer”, permitindo-nos aperceber que somos mais que simples sujeitos de conhecimento e o mundo é mais do que um mero objeto que se preste à explicação. “Por esta distensão, revela-se que existimos no e relacionamo-nos com o mundo antes de o conhecimento ter lugar, e o mundo é, antes de mais, mundo vivido”.

É nesta relação entre nós e o mundo que reside a ideia de que o homem é, na sua essência e existência, um ser enraizado, um ser-no-mundo. Filosoficamente, é aqui que acaba a tradição assente nos dualismos essência e existência, ser e aparecer, sujeito e objeto.

 

Podemos agora ir descansados ao futebol e aplaudir ou invetivar o guarda redes que consegue (ou não) apanhar a bola pontapeada e aleatoriamente desviada pelo defesa ou atacante. Instinto natural ou estudos de matemática e filosofia (com bons ou maus resultados) farão para sempre parte do entretenimento. Sente-se com a cabeça, pensa-se com os pés.

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