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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(461) Primeiro como tragédia, depois como farsa

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

“Esqueçam os protestos contra a guerra, Woodstock, até mesmo os cabelos compridos. O verdadeiro legado da geração de sessenta é a revolução do computador.”

 

“Mãos Fora da Internet!”

 

Liberdade entendida como o direito a consumir uma quantidade exorbitante de recursos para acumular uma quantidade exorbitante de capital à custa do futuro de todos os outros. 

 

Nós glorificamos a guerra – a única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutivo de quem nos traz liberdade, as ideias belas pelas quais vale a pena morrer, e o desprezo pelas mulheres.”

 

 

 

 

 

O “Manifesto do Otimista-Tecno” de Andreessen é essencialmente revelador do pensamento dos milionários empreendedores do Silicon Valley (mas não só) segundo os quais o único modo do mundo avançar é apenas com mais tecnologia.

Desde o seu aparecimento na década de 60, várias foram as ideias (até agora utópicas) sobre a importância e utilização da tecnologia que aí tiveram origem nesse Vale de Silício: o “novo comunalismo” (new communalism) com o seu mottoEsqueçam os protestos contra a guerra, Woodstock, até mesmo os cabelos compridos. O verdadeiro legado da geração de sessenta é a revolução do computador”; o “ciber-libertarianismo” (cyber-libertarianism) com o seu mottoVive & Deixa Viver” e “Mãos Fora da Internet!”; até à que a partir dos anos 90 veio a ser chamada como “ideologia da Califórnia” (Californian ideology), que via na subida vertiginosa da Internet a confirmação provada da importância crescente da tecnologia e da diminuição do poder dos governos.

 

Mas o que agora Andreessen nos propõe é já uma “filosofia” de dominação através da tecnocracia tendo por base a “força económica (poder financeiro), poder cultural (poder soft) e poder militar”, por forma a que quem desenvolva, promova ou lucre com as suas invenções (mesmo que tenham sido concebidas e desenvolvidas com dinheiros públicos) o possa fazer sem quaisquer constrangimentos éticos, ambientais ou políticos (a liberdade e a democracia podem mesmo ser dispensadas, podendo até ser incompatíveis).

Aliás, a liberdade é entendida como o direito a consumir uma quantidade exorbitante de recursos para acumular uma quantidade exorbitante de capital à custa do futuro de todos os outros. 

Não se dando conta, Andreessen utiliza a linguagem dos colonizadores quando vê a natureza e as outras pessoas como domínios a serem conquistados e explorados para o “crescimento” […] “mapeando territórios não explorados, conquistando dragões, e trazendo os despojos para casa, para a nossa comunidade”.  

Não tem qualquer pudor em afirmar que “as pessoas espertas e as sociedades espertas ultrapassam as menos espertas em virtualmente todas as métricas que se utilizem”.

A tecnologia não se preocupa com a etnicidade, raça, religião, origem nacional, género, sexualidade, posições políticas, altura, peso, cabelo ou falta dele”. Por isso, a “América e os seus aliados” e a “nossa civilização”, por mérito próprio, não devem temer abraçar o seu lugar como leader tecnológico (e civilizacional) mundial.

 

Numa crítica generalista pode-se afirmar que qualquer ideologia que proponha acelerar a exploração indiscriminada de recursos que tenha ou possa vir a ter consequências devastadoras para milhões de pessoas com o intuito de se dar um salto evolutivo, deverá pelo menos oferecer mais garantias ou mais evidências científicas para além do mero facto de que tal beneficiará economicamente os seus proponentes. Ainda que espertos.

 

Há, contudo, um outro aspeto que me parece mais preocupante deste “Manifesto” de Andreessen, nesta sua admiração quase platónica pela tecnologia mais avançada, como se ela pairasse por aí à espera de quem a controlasse.

Quando a 20 de fevereiro de 1909, Filippo Tommaso Marineti publicou no francês Le Figaro (http://www.unknown.nu/futurism/manifesto.html) o “Manifesto do Futurismo”, nada fazia prever o seu posterior alinhamento com o fascismo de Mussolini, sendo antes este seu primeiro manifesto entendido como um hino a favor de um movimento artístico e cultural, uma estética de modernidade  com base na visão tecnológica do que a sociedade do futuro deveria ser, uma mudança radical já então possível ao dispor dos corajosos, tendo como finalidade

 

“libertar este país do cheiro putrefacto da gangrena de professores, arqueologistas, cicerones e antiquários. Já por muito tempo tem a Itália sido um comércio de roupas em segunda mão. Queremos libertá-la dos seus inúmeros museus que a cobrem qual cemitérios.”

 

Como futurista, ele é um firme crente da componente tecnológica, daí o acreditar na velocidade como necessária à alteração do tempo, à entrada numa nova era de progresso.

A excitação de Marinetti perante a velocidade dos automóveis, dos barcos a vapor e das locomotivas, leva-o a não hesitar em considerar a beleza de um carro de corridas como superior à da famosa Vitória Alada de Samotrácia:

 

“4. Afirmamos que a magnificência do mundo foi enriquecida com uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um carro de corridas com o capô adornado com grandes tubos, quais serpentes com um bafo explosivo – um carro a rugir como se estivesse a expelir metralha é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.”

 

Com o aproximar da Guerra (agosto de 1914), Marinetti vai ser dos seus primeiros apoiantes, incitando a Itália que se declarara neutral (só se junta aos Aliados em maio de 1915) a entrar nela, porquanto para ele a guerra funcionaria como uma purga que faria com que a Itália e a Europa perdessem o lastro do passado que as impedia de progredir. Como aliás já constava do seu Manifesto:

 

9. Nós glorificamos a guerra – a única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutivo de quem nos traz liberdade, as ideias belas pelas quais vale a pena morrer, e o desprezo pelas mulheres.”

 

Há um outro Manifesto posterior (sempre que Marinetti se queria manifestar sobre qualquer coisa, publicava um novo Manifesto) relativo à guerra colonial que a Itália impôs à Etiópia, em que esta sua posição sobre a guerra fica mais clara:

 

Há vinte e sete anos que nós, futuristas, nos manifestamos contra o fato de se designar a guerra como antiestética … por conseguinte, declaramos: … a guerra é bela porque fundamenta o domínio do homem sobre a maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e tanques. A guerra é bela porque inaugura a sonhada metalização do corpo humano. A guerra é bela porque enriquece um prado florescente com as orquídeas de fogo das metralhadoras. A guerra é bela porque reúne numa sinfonia o fogo das espingardas, dos canhões, dos cessar-fogo, os perfumes e odores de putrefação. A guerra é bela porque cria novas arquiteturas, como a dos grandes tanques, a da geometria dos aviões em formação, a das espirais de fumo de aldeias a arder, e muitas outras … poetas e artistas do futurismo … lembrai-os destes fundamentos de uma estética da guerra, para que a vossa luta possa iluminar uma nova poesia e uma nova escultura!

 

Quando a guerra acaba em 1918, os Futuristas passam a um período de intensa atividade política: formam o Partido Político Futurista, (https://it.wikisource.org/wiki/Manifesto_del_Partito_Politico_Futurista_Italiano), e forjam uma aliança com Benito Mussolini.

Logo à cabeça, o Manifesto do Partido político Futurista proclama a intenção do Partido: “Fazer de novo a Itália grande”.

 A sua religião era a do “amanhã”, com propostas que iam desde a abolição do senado e sua substituição por homens de ciência, à dissolução da instituição do casamento.

 

Há quem diga que “a história se repete”, querendo talvez com isso dizer que o Sol, como sempre tem nascido ao longo da história, irá certamente nascer amanhã. Não era bem com essa intenção que Hegel dizia que a História se repetia incessantemente, mas, mesmo assim, Marx não se escusou de o corrigir n’ O 18 de Brumário de Luís Bonaparte:

 

Hegel observa algures que todos os grandes acontecimentos e personagens da História mundial sobrevêm, por assim dizer, duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa.

 

No entanto, é para mim bem possível que os grandes acontecimentos apareçam até mais do que duas vezes, e até como tragédias sempre maiores.

 

Notas:

Ver o blog de 7 de dezembro de 2016, “Os últimos dos homens”.

E o de 22 de março de 2017 “O ‘Futurismo’ presente”.

Recomendo também o de 17 de maio de 2017, “Madoff: a ganância sistémica”, e o de 3 de outubro de 2018, “A burca, segundo Platão”.

Interessante também o relatório do FMI de 14 de janeiro de 2024, “Gen-AI: Artificial Intelligence and the Future of Work”.

 

 

 

 

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