(458) A culpa como desculpa
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O parágrafo que levou a Fundação HB a retirar a atribuição do prémio, alegando que dele se poderia inferir que Israel tinha como objetivo “liquidar Gaza como se tratasse de um gueto nazi”.
A carta escrita por Hannah Arendt na qual, a propósito da visita aos Estados Unidos de Menachem Begin, focava o aparecimento em Israel de um partido cujos métodos, organização e filosofia política eram semelhantes aos dos partidos nazis.
O enorme sentimento de culpa que a Alemanha tem (ou diz ter) por ter perpetrado o mais conhecido genocídio da história.
O blog anterior, “O tiro pela culatra da Arte Degenerada”, incidia sobre o cancelamento do festival temático “Periferias” que se vinha realizando anualmente desde 2000 na pequena cidade de Huesca, Espanha, e que neste ano de 2023 seria dedicado à cultura cigana. Tal atitude foi devida à oposição assumida por uma organização conotada com a “direita”, o partido Vox.
Já este blog, “A culpa como desculpa”, vai incidir sobre um prémio atribuído a uma conceituada jornalista, que depois foi retirado, desta vez por uma organização conotada com a “esquerda”, o partido Verde da Alemanha.
O Prémio Hannah Arendt para o Pensamento Político, foi criado em 1994 pela Fundação Heinrich Böll, uma fundação independente ligada ao Partido Verde da Alemanha (Die Grünen). Era sua intenção “honrar indivíduos que identificam aspetos críticos e pouco visíveis de acontecimentos políticos correntes e que não tinham receio de apresentarem as suas opiniões abertas ao debate político público”.
Neste ano, em agosto, a Fundação HB, com base numa decisão feita por um júri independente, anunciou que o prémio fora atribuído à jornalista russo-americana Masha Gessen:
“uma analista do declínio e esperança, Gessen relata os jogos do poder e as tendências totalitárias da mesma forma que relata a desobediência civil e o amor à liberdade”.
Mas eis que a 9 de dezembro, Gessen, publica na New Yorker um ensaio (“In the Shadows of the Holocaust”) onde, numa crítica ao forte apoio que parte da cultura política institucionalizada alemã vem prestando a Israel, vai chamar a atenção para o paralelo entre o que se está a passar em Gaza e os guetos de judeus na então Europa nazi:
“Nos últimos dezassete anos, Gaza tem sido como que um depositório hiperdensamente povoado, empobrecido e murado, em que apenas uma pequena fração da população tinha o direito de sair, mesmo por um curto período de tempo – por outras palavras, um gueto. Não como o gueto judeu de Veneza ou um gueto numa cidade periférica da América, mas como um gueto judeu num país da Europa de Leste ocupado pela Alemanha nazi. Nos dois meses desde que o Hamas atacou Israel, todos os habitantes de Gaza sofreram com o ataque sem interrupção das forças israelitas. Milhares morreram. Em média, uma criança é morta em Gaza a cada dez minutos. As bombas israelitas atingiram hospitais, maternidades e ambulâncias. Oito em cada dez habitantes de Gaza estão agora sem abrigo, deslocando-se de um lugar para outro, nunca conseguindo chegar a um local seguro.”
Este parágrafo foi, aparentemente, o suficiente para que a Fundação HB lhe retirasse o prémio, porquanto dele se poderia inferir que Israel tinha como objetivo “liquidar Gaza como se tratasse de um gueto nazi” e que “esta declaração é para nós inaceitável e rejeitamo-la”.
Parece interessante chamar a atenção para uma carta publicada a 4 de dezembro de 1948 no The New York Times, escrita por Hannah Arendt e subscrita por vários intelectuais judeus, entre eles Albert Einstein, e na qual, a propósito da visita aos Estados Unidos de Menachem Begin, focavam o aparecimento em Israel de um partido cujos métodos, organização e filosofia política eram semelhantes aos dos partidos nazis:
"Entre os fenómenos políticos mais perturbadores dos nossos tempos está o aparecimento, no recém-criado Estado de Israel, do "Partido da Liberdade" (nuat Haherut), um partido político estritamente semelhante na sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos Partidos nazistas e fascistas. Foi formado a partir dos membros e seguidores do ex-Irgun Zvai Leumi, uma organização terrorista e chauvinista de direita na Palestina. A atual visita de Menachem Begin, líder deste partido, aos Estados Unidos é obviamente calculada para dar a impressão de apoio americano ao seu partido nas próximas eleições em Israel e para cimentar laços políticos com elementos sionistas conservadores nos Estados Unidos. Vários americanos de reputação nacional emprestaram os seus nomes para dar as boas-vindas à sua visita. É inconcebível que aqueles que se opõem ao fascismo em todo o mundo, se corretamente informados sobre o histórico e as perspetivas políticas do Sr. Begin, pudessem acrescentar os seus nomes e apoio ao movimento que ele representa."
"Um exemplo chocante foi o seu comportamento na aldeia árabe de Deir Yassin. Esta aldeia, fora das estradas principais e cercada por terras judaicas, não participou na guerra e até lutou contra bandos árabes que a queriam usar como base. Em abril, o The New York Times informou que bandos terroristas atacaram esta vila pacífica, que não era um objetivo militar, mataram a maioria de seus habitantes - 240 homens, mulheres e crianças - e mantiveram alguns deles vivos para desfilarem como cativos pelas ruas de Jerusalém. A maior parte da comunidade judaica ficou horrorizada com o ato, e a Agência Judaica enviou um telegrama de desculpas ao rei Abdullah da Transjordânia. Mas os terroristas, longe de se envergonharem de seu ato, estavam orgulhosos deste massacre, divulgaram-no amplamente e convidaram todos os correspondentes estrangeiros presentes no país para verem os cadáveres amontoados e a destruição geral em Deir Yassin."
"O incidente de Deir Yassin exemplifica o caráter e as ações do Partido da Liberdade. Dentro da comunidade judaica, eles pregaram uma mistura de ultranacionalismo, misticismo religioso e superioridade racial. Como outros partidos fascistas, eles foram usados para furar greves e têm pressionado para a destruição dos sindicatos livres, propondo em seu lugar sindicatos corporativos segundo o modelo fascista italiano. Durante o último ano de violência esporádica antibritânica, os grupos IZL e Stern inauguraram um reinado de terror na comunidade judaica palestina. Por falarem contra eles professores foram espancados; por não deixarem os filhos juntarem-se-lhes, adultos foram baleados. Através da utilização de métodos de gângsteres, espancamentos, quebra de janelas e roubos generalizados, os terroristas intimidaram a população e cobraram um pesado tributo."
Para quem não se lembre, Menachem Begin foi fundador do partido atualmente no poder, Likud, e sexto Primeiro Ministro de Israel.
Masha Gessen, jornalista russo-americana que nasceu numa família judia que viveu em Moscovo, faz parte do corpo de redatores da New Yorker, é uma crítica acérrima do presidente da Rússia, Vladimir Putin, (o seu livro, The Man Without a Face, apresenta Putin não como um génio político, mas como um simplório cujo ego arruinou o país) e do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, (segundo ela, o sucesso de Trump nas eleições de 2016, só pode ser explicado devido à sabotagem eleitoral feita pelo governo russo).
E o que diz nesse artigo que publicou em dezembro, é muito mais inócuo do que a carta-ensaio de Arendt acima relatado.
O que leva a pôr-se a questão: será que a Fundação HB aceitaria para o “Prémio Hannah Arendt para o Pensamento Político” a carta-ensaio que a própria Hannah Arendt escreveu em dezembro de 1948?
Uma das explicações possíveis para o cancelamento do prémio pela Fundação HB, tem que ver com o enorme sentimento de culpa que a Alemanha tem (ou diz ter) por ter perpetrado o mais conhecido genocídio da história, o que tem levado os representantes institucionais da Alemanha a considerarem como sua missão nacional, a defesa intransigente de Israel.
O que neste caso, confundindo críticas às políticas e práticas de Israel ou a defesa da situação na Palestina, faz com que considere tais posições como antissemitismo. Mesmo que isso implique o silenciamento de vozes judaicas que se façam ouvir contra o apartheid de Israel, a sua ocupação, colonização, e até agora ao que muitos chamam, ainda que incorretamente, de genocídio.
Anexo:
Carta aberta da Fundação HB em que suspende a atribuição do prémio a Masha Gessen:
Senhoras e senhores,
na próxima sexta-feira, a associação "Prémio Hannah para o Pensamento Político", juntamente com os doadores do prémio, as Fundações Böll Berlim e Bremen e o Senado da Cidade Hanseática Livre de Bremen, entregarão o Prêmio Hannah Arendt de Pensamento Político 2023 à historiadora Masha Gessen.
A Deutsch-Israelische Gesellschaft Bremen/Unterweser e.V. (Sociedade Alemã-Israelense) apela aos responsáveis para que suspendam esta decisão. As recentes declarações de Masha Gessen num ensaio na “New Yorker” deixaram claro que isto honraria uma pessoa cujo pensamento está em claro contraste com o de Hannah Arendt. Tal honraria impediria a necessária e determinada posição contra o crescente antissemitismo. Neste ensaio, Masha Gessen banaliza as organizações que apelam a um boicote político, económico e cultural a Israel porque Israel é – na sua opinião – um “estado colonial”; mas este movimento de boicote abriu caminho para que os terroristas do Hamas de 7 de outubro fossem banalizados ou mesmo celebrados como “combatentes da libertação” em muitos lugares.
Como Sociedade Alemã-Israelense, ficamos particularmente incomodados pela declaração de Masha Gessen de que Gaza era “como um gueto judeu num país da Europa de Leste ocupado pela Alemanha nazi”. Gaza tem sido governada pelos próprios palestinianos desde 2005, desde a tomada violenta do poder sob o regime ditatorial do Hamas. O país recebeu milhares de milhões de dólares e euros em ajuda internacional, que o Hamas gastou não no bem-estar da população crescente, mas em armamento maciço e agressivo contra Israel (e na vida luxuosa da sua liderança). Os controlos fronteiriços por parte de Israel (e do Egipto!) destinavam-se a impedir este armamento. Os guetos nazistas na Polónia, na Ucrânia, na Bielorrússia e nos Estados Bálticos eram instalações sob controle total da Alemanha nazi, criada para matar sistematicamente os judeus através da fome, doenças e exploração. Os judeus foram deportados dos guetos para a morte por balas e gás.
É incompreensível para nós como um académico tão experiente como Masha Gessen, que deu um contributo tão grande para a análise crítica do imperialismo russo, possa equiparar seriamente Gaza aos guetos de extermínio nazis. Para nós, só há uma explicação: um preconceito negativo profundo e fundamental contra o Estado judeu. Isto não tem nada a ver com julgamento político no sentido de Hannah Arendt.
Masha Gessen é livre para defender tais opiniões, temos discussões desse tipo em muitas ocasiões hoje em dia; tal como a avaliação crítica da política israelita também é uma parte permanente do nosso trabalho como DIG. Mas as opiniões de Masha Gessen não deveriam ser homenageadas com a atribuição de um prémio que se destina a homenagear a filósofa judia Hannah Arendt.
Hermann Kuhn
(Presidente da DIG Bremen/Unterweser e.V.)
Outras referências:
O blog de 31 de março de 2020, “A colonização sionista da Palestina”.
O blog de 8 de novembro de 2023, “O gueto de Varsóvia”.
E particularmente o blog de 5 de abril de 2023, “Em defesa de Benjamin Natanhyau”.