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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(457) O tiro pela culatra da Arte Degenerada

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

É no Mein Kampf que Adolf Hitler nos vem dizer que durante a sua juventude pensara poder vir a viver só através da arte.

 

As suas criações revelavam-se com pouco talento, e embora demonstrasse uma memória quase fotográfica no tratamento dos edifícios, mostrava-se incapaz de apreciar a forma humana.

 

A exposição da Arte Degenerada aparece como tentativa para desprestigiar os artistas que o Governo entendia  sem qualidade e prejudiciais aos valores morais que pretendia ver instituídos.

 

Todos esses grupos de fofoqueiros, diletantes e falsificadores que se apoiam mutuamente serão desenterrados e eliminados, Adolf Hitler.

 

 

 

 

 

O festival temático e multidisciplinar, “Periferias”, que se realiza anualmente desde o ano 2000 na pequena cidade de Huesca, Espanha, que tem abordado temas como por exemplo exílios, cosmos, versão, festa, terra, futuro, horror, fake, raízes, e cujo tema deste ano de 2023 era dedicado à cultura cigana, vai deixar de se realizar.

E isto acontece, conforme noticia o El País de 11 de dezembro de 2023, devido à exigência que o partido Vox impôs como condição para  que os seus dois eleitos camarários apoiassem o executivo do partido PP.

 

É no Mein Kampf que Adolf Hitler nos vem dizer que durante a sua juventude pensara poder vir a viver só através da arte, pelo que com dezoito anos, quando se mudou para Viena, intentou levar á prática essa sua inclinação. Daí a vida boémia em que caiu, o vestir diferentemente, o viver exclusivamente de noite (mas nada de promiscuidade sexual, pois era-lhe importante chegar puro ao casamento), e o evitar arranjar trabalho fixo: como artista estava por cima disso.

Cheio de confiança, vai tentar entrar para a Academia das Belas Artes de Viena, mas por dois anos seguidos vê recusada a sua entrada. Segundo os examinadores, as suas criações revelavam-se com pouco talento, e embora demonstrasse uma memória quase fotográfica no tratamento dos edifícios (um dos professores aconselhou-o mesmo a esquecer-se da pintura e ir para arquitetura), mostrava-se incapaz de apreciar a forma humana.

Pelo que foi sobrevivendo conforme podia, dormindo em bancos de rua, mendigando refeições em refeitórios sociais de freiras, pintando casas e vendendo estampas de igrejas durante os casamentos que aí se realizavam.

A primeira pessoa que se interessou em comprar por bom preço os seus quadros foi um vidreiro judeu, Samuel Morgenstern. A partir daí, Morgenstern passou a comprar-lhe quase toda a produção, telas que o vidreiro utilizava para encher as molduras dos quadros que vendia na sua loja: “A experiência diz-me que é mais fácil vender as molduras se elas já tiverem uma imagem dentro”, conforme se pode ler no Hitler’s Vienna: A Portrait of the Tyrant as a Young Man.

Muito tempo depois, em 1938, o Governo arrebataria o negócio a Morgenstern, privando-o de licença comercial, o que o impedia de poder trabalhar, acabando por forçá-lo a isolar-se no gueto de Litzmannstad, onde acabaria por morrer, arruinado e miserável.

Triste e curiosamente, os livros da contabilidade de Morgenstern mostraram posteriormente que a maior parte das pinturas com a assinatura de Hitler tinham sido compradas por judeus que queriam levar para casa molduras bonitas já com paisagens.

Em princípios de 2017, inaugurou-se no Museu Della Follia de Salo na Lombardia, uma exposição que pretendia estudar a relação entre a loucura e a arte, e onde se exibia uma pintura a óleo inédita de Hitler. Vittorio Sgarbi, comissário da exposição, disse sobre o quadro: “É uma porcaria que diz muito sobre a psique do autor, não existe aqui grandeza, só miséria”.

 

Foi a 18 de julho de 1937 que o governo nazi inaugurou com pompa e circunstância (Adolf Hitler discursou na abertura, explicando o que era a “arte alemã”, única a ser admitida publicamente no futuro) a primeira Grande Exposição de Arte Alemã (Grosse deutsche Kunstausstellung), na Casa da Arte Alemã (Haus der Kunst) no museu de Munique,  onde figuravam centenas de obras e artistas que o regime dava o beneplácito de considerar como representativas dos seus ideais.

Em salas muitissimamente bem arranjadas, podiam apreciar-se pinturas de famílias alemães idealizadas e felizes, paisagens bucólicas da Alemanha, soldados vitoriosos, jovens loiras alemãs nuas, etc.

 

Mas nesse mesmo julho de 1937, apenas um dia depois, inaugurou-se também uma outra exposição que o governo nazi patrocinou, no Hofgarten de Munique, e a que deu o nome de Arte degenerada (Entartete Kunst), onde se exibiam umas seiscentas e cinquenta pinturas, esculturas e livros de mais de uma centena de artistas, escolhidas pelo pintor do regime Adolf Ziegler e mais cinco outras pessoas a quem tinha sido dada a incumbência de vasculharem e retirarem de todos os museus todas as obras de arte moderna que pudessem ofender o regime, nomeadamente peças do cubismo, expressionismo, surrealismo e abstracionismo.

As instalações no Hofgarten, em visível oposição às da grande Exposição de Arte Alemã, tinham um “aspecto caótico para propositadamente transmitirem uma ideia de se estava perante uma arte e artistas moralmente desprezíveis: quadros empilhados ou pregados nas paredes à pressa, inclinados e rodeados de grafitis que insultavam a obra ou o autor.”

No catálogo oficial podia-se ler que a finalidade da exposição era “demonstrar as intenções por detrás de todo este movimento filosófico, político, racial e moral, assim como as forças motrizes da corrupção que o motivam”.

 

Vejamos alguns exemplos das degeneradas obras e artistas aí presentes:

 

O pintor e escultor expressionista Max Beckmann, muito reconhecido na Alemanha durante a República de Weimar, autor de Retrato de família (1920) e de O sonho (1921), professor na Städelschule de Frankfurt, medalha de ouro da cidade de Düsseldorf. Assim que Hitler chegou ao poder acusa-o de ser bolchevique cultural, afasta-o do ensino e confisca-lhe a obra.

 

Franz Marc, outro pintor alemão, pioneiro do expressionismo, autor de Grandes cavalos azuis (1911), Cão deitado na neve (1911), As raposas (1913). Em 191 alistou-se como voluntário para combater na Primeira Guerra Mundial, acabando por ser encarregado para desenhar a camuflagem militar. Em 1916, o Governo alemão elaborou uma lista de artistas que considerava ser necessário retirar do campo de batalha. Antes de chegar a ordem de evacuação, um estilhaço de metralha, matou-o em Verdun. Vinte anos depois, os nazis olharam para as suas obras e etiquetaram-nas como arte degenerada, retirando cento e trinta dos seus quadros dos museus alemães.

 

Otto Dix, outro artista que se voluntariou para o exército, retratista fora de série com Pela beleza (1922), Retrato da periodista Sylvia von Harden (1924),e com a descrição dos horrores das batalhas com Tropas de assalto avançando debaixo de gás (1924) e Hora de almoço nas trincheiras (1924). Os nazis consideraram que aquilo era uma “sabotagem ao espírito militar das forças armadas”, confiscaram duzentos e setenta quadros e fizeram fogueiras com a maior parte deles.

 

Ernst Barlach, escultor, gravador e escritor alemão, também voluntário em 1916 como soldado de infantaria, vê-se obrigado a abandonar o Exército devido a doença cardíaca.  Foi, no entanto, suficiente para passar de uma atitude favorável à guerra para um antimilitarismo militante, o que se pode ver na sua célebre escultura, Cenotáfio de Magdeburgo (1929). Três soldados alemães rodeando uma sepultura num cemitério junto de uma viúva enlutada com o rosto coberto e um esqueleto vestido como um soldado alemão, não caíram nada bem aos novos censores nazis: Barlach foi proibido de trabalhar como escultor e a maioria das suas obras foi confiscada.

 

Emil Hansen, um convicto antissemita e nacional-socialista, adota o nome artístico de Emil Nolde, que acredita piamente que o expressionismo era um movimento muito alemão e muito nobre, vai pintar O jardim das flores (1908), O paraíso perdido (1921) e Paisagem à luz vermelha (1925). Hitler não compartilha essa opinião, pelo que mandou confiscar todas as suas pinturas.  Nolde passou o resto da vida a pintar a aguarela (para que o cheiro do óleo não o denunciasse quando a Gestapo entrava de surpresa na sua casa) e a esconder os seus trabalhos que intitulou “Os quadros que não foram pintados”.

 

Paul Klee, alemão nascido na Suíça, aborda já o surrealismo, No princípio (1916), Carnaval nas montanhas (1924), Balão vermelho (1922), teve dezassete das suas obras na exposição. Mestre no pontilhismo com Ad Parnassum (1932), e finalmente, pouco antes de morrer, Morte e fogo (1940).

 

Outros artistas figuraram também na exposição, como George Gorsz, Autómatos republicanos (1920), Marx Ernst, O anjo do lar (1937), Edwin Scharff, que esculpiu as estátuas monumentais de domadores de cavalos em Düsseldorf, Rossebändiger (1937), Max Pechstein e Debaixo das árvores (1911), e ainda Kandinski, Henri Matisse, Pablo Picasso, Vincent van Gogh, Ernst Kirchner , Edvard Munch.

 

Acontece que esta tentativa para desprestigiar os artistas que o Governo entendia como sem valor e prejudiciais aos valores morais que pretendia ver instituídos, acabou por redundar num fracasso, na medida em que a Exposição dos Degenerados teve cerca de quatro vezes mais visitantes que a Exposição da Arte Alemã acarinhada pelo Governo. Aliás, a maior parte das obras da Arte Alemã expostas, foram compradas por Hitler com dinheiro do Governo.

Quanto a Adolf Ziegler, o artista pintor encarregado de selecionar e arrebanhar as obras para a exposição dos degenerados, quando expressou certas dúvidas sobre o desenvolvimento da campanha de guerra em curso, Hitler mandou levá-lo para o campo de concentração de Dachau para durante seis semanas se reeducar. Regressado das “férias”, nunca mais encontrou trabalho, acabando por se retirar para uma aldeia em Baden-Baden.

 

 

Adenda:

 

Eis parte do discurso proferido por Adolf Hitler na abertura da Grande Exposição de Arte Alemã em Munique, 18 de julho de 1937:

 

De agora em diante, travaremos uma guerra implacável de limpeza contra os últimos elementos da nossa desintegração cultural. Mas se houver um entre eles que ainda acredita que está destinado a algo mais elevado, então teve quatro anos para o provar, mas esses quatro anos foram suficientes para chegarmos a um julgamento final. Mas agora – quero-lhe assegurar aqui - todos esses grupos de fofoqueiros, diletantes e falsificadores que se apoiam mutuamente serão desenterrados e eliminados. Essas idades da pedra pré-históricas, pré-históricos e gagos de arte, podem regressar às cavernas dos seus antepassados, a fim de lá colocarem os seus primitivos rabiscos internacionais.”

 

 

 

 

 

 

 

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