(457) O tiro pela culatra da Arte Degenerada
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É no Mein Kampf que Adolf Hitler nos vem dizer que durante a sua juventude pensara poder vir a viver só através da arte.
As suas criações revelavam-se com pouco talento, e embora demonstrasse uma memória quase fotográfica no tratamento dos edifícios, mostrava-se incapaz de apreciar a forma humana.
A exposição da Arte Degenerada aparece como tentativa para desprestigiar os artistas que o Governo entendia sem qualidade e prejudiciais aos valores morais que pretendia ver instituídos.
Todos esses grupos de fofoqueiros, diletantes e falsificadores que se apoiam mutuamente serão desenterrados e eliminados, Adolf Hitler.
O festival temático e multidisciplinar, “Periferias”, que se realiza anualmente desde o ano 2000 na pequena cidade de Huesca, Espanha, que tem abordado temas como por exemplo exílios, cosmos, versão, festa, terra, futuro, horror, fake, raízes, e cujo tema deste ano de 2023 era dedicado à cultura cigana, vai deixar de se realizar.
E isto acontece, conforme noticia o El País de 11 de dezembro de 2023, devido à exigência que o partido Vox impôs como condição para que os seus dois eleitos camarários apoiassem o executivo do partido PP.
É no Mein Kampf que Adolf Hitler nos vem dizer que durante a sua juventude pensara poder vir a viver só através da arte, pelo que com dezoito anos, quando se mudou para Viena, intentou levar á prática essa sua inclinação. Daí a vida boémia em que caiu, o vestir diferentemente, o viver exclusivamente de noite (mas nada de promiscuidade sexual, pois era-lhe importante chegar puro ao casamento), e o evitar arranjar trabalho fixo: como artista estava por cima disso.
Cheio de confiança, vai tentar entrar para a Academia das Belas Artes de Viena, mas por dois anos seguidos vê recusada a sua entrada. Segundo os examinadores, as suas criações revelavam-se com pouco talento, e embora demonstrasse uma memória quase fotográfica no tratamento dos edifícios (um dos professores aconselhou-o mesmo a esquecer-se da pintura e ir para arquitetura), mostrava-se incapaz de apreciar a forma humana.
Pelo que foi sobrevivendo conforme podia, dormindo em bancos de rua, mendigando refeições em refeitórios sociais de freiras, pintando casas e vendendo estampas de igrejas durante os casamentos que aí se realizavam.
A primeira pessoa que se interessou em comprar por bom preço os seus quadros foi um vidreiro judeu, Samuel Morgenstern. A partir daí, Morgenstern passou a comprar-lhe quase toda a produção, telas que o vidreiro utilizava para encher as molduras dos quadros que vendia na sua loja: “A experiência diz-me que é mais fácil vender as molduras se elas já tiverem uma imagem dentro”, conforme se pode ler no Hitler’s Vienna: A Portrait of the Tyrant as a Young Man.
Muito tempo depois, em 1938, o Governo arrebataria o negócio a Morgenstern, privando-o de licença comercial, o que o impedia de poder trabalhar, acabando por forçá-lo a isolar-se no gueto de Litzmannstad, onde acabaria por morrer, arruinado e miserável.
Triste e curiosamente, os livros da contabilidade de Morgenstern mostraram posteriormente que a maior parte das pinturas com a assinatura de Hitler tinham sido compradas por judeus que queriam levar para casa molduras bonitas já com paisagens.
Em princípios de 2017, inaugurou-se no Museu Della Follia de Salo na Lombardia, uma exposição que pretendia estudar a relação entre a loucura e a arte, e onde se exibia uma pintura a óleo inédita de Hitler. Vittorio Sgarbi, comissário da exposição, disse sobre o quadro: “É uma porcaria que diz muito sobre a psique do autor, não existe aqui grandeza, só miséria”.
Foi a 18 de julho de 1937 que o governo nazi inaugurou com pompa e circunstância (Adolf Hitler discursou na abertura, explicando o que era a “arte alemã”, única a ser admitida publicamente no futuro) a primeira Grande Exposição de Arte Alemã (Grosse deutsche Kunstausstellung), na Casa da Arte Alemã (Haus der Kunst) no museu de Munique, onde figuravam centenas de obras e artistas que o regime dava o beneplácito de considerar como representativas dos seus ideais.
Em salas muitissimamente bem arranjadas, podiam apreciar-se pinturas de famílias alemães idealizadas e felizes, paisagens bucólicas da Alemanha, soldados vitoriosos, jovens loiras alemãs nuas, etc.
Mas nesse mesmo julho de 1937, apenas um dia depois, inaugurou-se também uma outra exposição que o governo nazi patrocinou, no Hofgarten de Munique, e a que deu o nome de Arte degenerada (Entartete Kunst), onde se exibiam umas seiscentas e cinquenta pinturas, esculturas e livros de mais de uma centena de artistas, escolhidas pelo pintor do regime Adolf Ziegler e mais cinco outras pessoas a quem tinha sido dada a incumbência de vasculharem e retirarem de todos os museus todas as obras de arte moderna que pudessem ofender o regime, nomeadamente peças do cubismo, expressionismo, surrealismo e abstracionismo.
As instalações no Hofgarten, em visível oposição às da grande Exposição de Arte Alemã, tinham um “aspecto caótico para propositadamente transmitirem uma ideia de se estava perante uma arte e artistas moralmente desprezíveis: quadros empilhados ou pregados nas paredes à pressa, inclinados e rodeados de grafitis que insultavam a obra ou o autor.”
No catálogo oficial podia-se ler que a finalidade da exposição era “demonstrar as intenções por detrás de todo este movimento filosófico, político, racial e moral, assim como as forças motrizes da corrupção que o motivam”.
Vejamos alguns exemplos das degeneradas obras e artistas aí presentes:
O pintor e escultor expressionista Max Beckmann, muito reconhecido na Alemanha durante a República de Weimar, autor de Retrato de família (1920) e de O sonho (1921), professor na Städelschule de Frankfurt, medalha de ouro da cidade de Düsseldorf. Assim que Hitler chegou ao poder acusa-o de ser bolchevique cultural, afasta-o do ensino e confisca-lhe a obra.
Franz Marc, outro pintor alemão, pioneiro do expressionismo, autor de Grandes cavalos azuis (1911), Cão deitado na neve (1911), As raposas (1913). Em 191 alistou-se como voluntário para combater na Primeira Guerra Mundial, acabando por ser encarregado para desenhar a camuflagem militar. Em 1916, o Governo alemão elaborou uma lista de artistas que considerava ser necessário retirar do campo de batalha. Antes de chegar a ordem de evacuação, um estilhaço de metralha, matou-o em Verdun. Vinte anos depois, os nazis olharam para as suas obras e etiquetaram-nas como arte degenerada, retirando cento e trinta dos seus quadros dos museus alemães.
Otto Dix, outro artista que se voluntariou para o exército, retratista fora de série com Pela beleza (1922), Retrato da periodista Sylvia von Harden (1924),e com a descrição dos horrores das batalhas com Tropas de assalto avançando debaixo de gás (1924) e Hora de almoço nas trincheiras (1924). Os nazis consideraram que aquilo era uma “sabotagem ao espírito militar das forças armadas”, confiscaram duzentos e setenta quadros e fizeram fogueiras com a maior parte deles.
Ernst Barlach, escultor, gravador e escritor alemão, também voluntário em 1916 como soldado de infantaria, vê-se obrigado a abandonar o Exército devido a doença cardíaca. Foi, no entanto, suficiente para passar de uma atitude favorável à guerra para um antimilitarismo militante, o que se pode ver na sua célebre escultura, Cenotáfio de Magdeburgo (1929). Três soldados alemães rodeando uma sepultura num cemitério junto de uma viúva enlutada com o rosto coberto e um esqueleto vestido como um soldado alemão, não caíram nada bem aos novos censores nazis: Barlach foi proibido de trabalhar como escultor e a maioria das suas obras foi confiscada.
Emil Hansen, um convicto antissemita e nacional-socialista, adota o nome artístico de Emil Nolde, que acredita piamente que o expressionismo era um movimento muito alemão e muito nobre, vai pintar O jardim das flores (1908), O paraíso perdido (1921) e Paisagem à luz vermelha (1925). Hitler não compartilha essa opinião, pelo que mandou confiscar todas as suas pinturas. Nolde passou o resto da vida a pintar a aguarela (para que o cheiro do óleo não o denunciasse quando a Gestapo entrava de surpresa na sua casa) e a esconder os seus trabalhos que intitulou “Os quadros que não foram pintados”.
Paul Klee, alemão nascido na Suíça, aborda já o surrealismo, No princípio (1916), Carnaval nas montanhas (1924), Balão vermelho (1922), teve dezassete das suas obras na exposição. Mestre no pontilhismo com Ad Parnassum (1932), e finalmente, pouco antes de morrer, Morte e fogo (1940).
Outros artistas figuraram também na exposição, como George Gorsz, Autómatos republicanos (1920), Marx Ernst, O anjo do lar (1937), Edwin Scharff, que esculpiu as estátuas monumentais de domadores de cavalos em Düsseldorf, Rossebändiger (1937), Max Pechstein e Debaixo das árvores (1911), e ainda Kandinski, Henri Matisse, Pablo Picasso, Vincent van Gogh, Ernst Kirchner , Edvard Munch.
Acontece que esta tentativa para desprestigiar os artistas que o Governo entendia como sem valor e prejudiciais aos valores morais que pretendia ver instituídos, acabou por redundar num fracasso, na medida em que a Exposição dos Degenerados teve cerca de quatro vezes mais visitantes que a Exposição da Arte Alemã acarinhada pelo Governo. Aliás, a maior parte das obras da Arte Alemã expostas, foram compradas por Hitler com dinheiro do Governo.
Quanto a Adolf Ziegler, o artista pintor encarregado de selecionar e arrebanhar as obras para a exposição dos degenerados, quando expressou certas dúvidas sobre o desenvolvimento da campanha de guerra em curso, Hitler mandou levá-lo para o campo de concentração de Dachau para durante seis semanas se reeducar. Regressado das “férias”, nunca mais encontrou trabalho, acabando por se retirar para uma aldeia em Baden-Baden.
Adenda:
Eis parte do discurso proferido por Adolf Hitler na abertura da Grande Exposição de Arte Alemã em Munique, 18 de julho de 1937:
“De agora em diante, travaremos uma guerra implacável de limpeza contra os últimos elementos da nossa desintegração cultural. Mas se houver um entre eles que ainda acredita que está destinado a algo mais elevado, então teve quatro anos para o provar, mas esses quatro anos foram suficientes para chegarmos a um julgamento final. Mas agora – quero-lhe assegurar aqui - todos esses grupos de fofoqueiros, diletantes e falsificadores que se apoiam mutuamente serão desenterrados e eliminados. Essas idades da pedra pré-históricas, pré-históricos e gagos de arte, podem regressar às cavernas dos seus antepassados, a fim de lá colocarem os seus primitivos rabiscos internacionais.”