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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(453) Pílula azul ou vermelha?

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

Os rostos gerados por IA já não se distinguem dos rostos humanos. Os tweets gerados por GPT-3 já não se distinguem dos tweets escritos pelos utilizadores humanos do Twitter.

 

Tudo passa a ser possível de ser apresentado, independentemente da veracidade ou realidade.

 

A sociedade é feita de narrativa, do mesmo modo que a Matrix é feita de código.

 

Quem controla as narrativas em que uma sociedade acredita, controla essa sociedade.

 

 

 

 

A greve dos atores e argumentistas da indústria de cinema de Hollywood teve essencialmente que ver com a utilização que as principais empresas estavam a fazer das suas imagens já gravadas e dos seus argumentos já existentes, com as quais construíam, ou podiam construir, através da utilização da IA, novas produções cinematográficas.

Ou seja, uma vez de posse das imagens ou dos escritos, tal passava a ser propriedade exclusiva da empresa para sempre, podendo utilizá-las em seu benefício sem prévia autorização. Tudo legal, nada que não constasse nos contratos.

 

E não era pouco. Atente-se por exemplo no que a indústria porno estava já a fazer com a utilização da IA e da realidade virtual. Desde 1999 que a mrskin.com começou a investigar todos os nus da filmografia das atrizes e atores, com os poderes atualmente existentes da IA e da realidade virtual, tal permitiu-lhes realizar cenas nas quais podemos ver Demi Moore e Aston Kutcher em pleno ato sexual, ou um improvável 69 entre Brigitte Bardot e Emma Watson, até mesmo uma menage a trois entre Brad Pitt, Pedro Pascal e Kit Harington.

Tudo passa a possível de ser apresentado, independentemente da veracidade ou realidade. Manipulação de vídeos que fazem passar por reais rostos, corpos e vozes que não são reais.

 

E tal também se pode aplicar ao campo das notícias, como aquela foto de Osama Bin Laden com Obama, Condoleeza Rica e Hillary Clinton, ou  aquele vídeo em que aparece o presidente da Ucrânia, Volódomir Zelenski,  a declarar a sua rendição à Rússia. A estes casos chamam os especialistas de deepfake. Possivelmente aos outros atrás relatados chamar-lhe-ão de deepfuck.

 

Acontece que com os geradores de imagens atuais por IA, o recurso aos deepfake tornam-se desnecessários, pois já não se necessita de recorrer a um vídeo prévio para por rostos em corpos e vice-versa. Tudo pode ser criado a partir da informação contida na Rede. Daí que, por exemplo, empresas sérias como a Midjourney, para evitar serem confundidas com as que utilizam a mesma técnica para finas pornográficos, censurem aos seus utilizadores o uso de pesquisa com palavras como útero, esperma ou vulva.

As imagens atualmente produzidas com estes métodos são imensamente reais (The Realist, com a IA Stable Diffusion), a ponto de o seu senão ser o de até serem perfeitas demais, como se pode verificar neste exemplo do Papa Francisco a dançar break dance.

Aliás, é o que vem confirmar um recente estudo de 13 de novembro de 2023, “AI Hyperrealism: Why AI Faces Are Perceived as More Real Than Human Ones”, onde se demonstra que os rostos gerados por IA não se distinguem dos rostos humanos, especialmente se esses rostos forem de brancos, dado que os algoritmos de reconhecimento se treinaram mais em rostos de brancos. Mas este desvio é outro problema, e não é o que está agora em causa.

Também um estudo de 28 de junho de 2023, “AI model GPT-3 (dis)informs us better than humans”, nos vem dizer que os humanos não conseguem distinguir entre os tweets gerados por GPT-3 e os tweets escritos pelos utilizadores reais do Twitter.

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Há um artigo já  de 22 de agosto de 2018 de Caitlin Johnstone, “Society Is Made Of Narrative. Realizing This Is Awakening From The Matrix”, que previa já os problemas que estas atualidades tecnológicas parecem agora tornar mais evidentes. Eis parte do seu escrito:

 

No filme Matrix, os humanos encontram-se aprisionados num mundo virtual por um poderoso sistema de inteligência artificial num futuro distópico. O que eles consideram realidade é na verdade um programa de computador que foi inserido nos seus cérebros para os manter em estado comatoso. Eles vivem toda a vida naquela simulação virtual, sem qualquer forma para saberem que o que parecem estar a vivenciar através dos sentidos é na verdade feito por um código gerado por IA.

 

A vida na nossa sociedade atual é praticamente o mesmo. A diferença é que, em vez da IA, são oligarcas psicopatas que nos mantêm a dormir na Matrix. E em vez do código, é a narrativa.

 

A sociedade é feita de narrativa do mesmo modo que a Matrix é feita de código. Identidade, linguagem, etiqueta, papéis sociais, opiniões, ideologia, religião, etnia, filosofia, agendas, regras, leis, dinheiro, economia, empregos, hierarquias, política, governo, são tudo construções puramente mentais que não existem em qualquer lugar fora do mundo. Ruídos mentais nas nossas cabeças. Se eu lhe pedisse para apontar para o joelho, você fá-lo-ia instantaneamente e sem palavras, mas se eu lhe pedisse para apontar para a economia, por exemplo, o mais próximo que você poderia chegar seria através da utilização de uma montanha de símbolos linguísticos que por sua vez iriam apontar para um grupo de conceitos. Ou seja, para me mostrar a economia, tinha de me contar uma história.

Qualquer pessoa que já tenha experimentado um momento de quietude mental sabe que, sem uma conversa, nenhuma dessas coisas faz parte da sua experiência atual. Não há identidade, linguagem, etiqueta, papéis sociais, opiniões, ideologia, religião, etnia, filosofia, agendas, regras, leis, dinheiro, economia, empregos, hierarquias, política ou governo na sua experiência sem uma conversa mental sobre essas coisas. Não há nem mesmo um “você” em lugar nenhum, porque acontece que isso também é feito de narrativa.

 

Sem narrativa mental, nada é experienciado, exceto impressões sensoriais que aparecem sem forma ou limites claros. Os campos visual e auditivo, a sensação de entrada e saída de ar pelo aparelho respiratório, a sensação dos pés no chão ou do traseiro na cadeira. É isso. Isso é mais ou menos a totalidade da vida menos a narrativa.

 

Contudo, quando você acrescenta a conversa mental, nenhuma dessas coisas tende a ocupar uma quantidade significativa de interesse ou atenção. As aparências no campo visual e auditivo são repentinamente divididas e rotuladas com a linguagem, sendo a atenção que lhes é dedicada determinada por aquilo que ameaça ou satisfaz as várias agendas, medos e desejos da construção de identidade conceitual conhecida como “você”. Você pode passar dias, semanas, meses ou anos sem realmente perceber a sensação do seu sistema respiratório ou dos seus pés no chão, à medida que o seu interesse e atenção são sugados para um relacionamento com a sociedade que existe apenas como narrativa.

 

“Eu sou suficientemente bom? Estou a fazer a coisa certa? Oh, espero que o que estou a tentar fazer dê certo. Preciso de ter a certeza que concluo todos os meus projetos. Se eu fizer isso primeiro, poderei a longo prazo economizar algum tempo. Ah, lá está Ashley, eu odeio aquela tipa. Deus, eu sou tão gordo e feio. Se eu conseguir o que quero e atingir os meus objetivos importantes, sentir-me-ei bem. Brevemente tenho de pagar os impostos. O que há na TV? Ah, é aquele idiota. Como diabos foi ele eleito, afinal? Todos os que fizeram isso acontecer são nazis. Deus, mal posso esperar pelo fim de semana. Espero que até lá tudo corra como planeado.”

 

E assim por diante. Quase toda a nossa energia mental vai para essas narrativas mentais. Elas dominam as nossas vidas. E, por essa razão, as pessoas que conseguem controlar essas narrativas conseguem controlar-nos.

 

E eles fazem-no.

 

A maioria das pessoas tenta exercer algum grau de controle sobre as pessoas à sua volta. Mas eles tentam influenciar a forma como as pessoas nos seus círculos familiares, sociais e laborais pensam sobre eles, comportando-se e falando de uma determinada maneira. Os membros da família passarão a vida a dizer repetidamente a outros membros da família que eles não são tão inteligentes/talentosos/bons quanto pensam, para evitar que se tornem muito bem-sucedidos e se afastem. Os parceiros românticos serão persuadidos de que nunca poderão partir porque mais ninguém os amará. Em graus variados, eles manipulam as narrativas dos indivíduos.

 

Depois, há as pessoas que descobriram que podem realmente aproveitar a sua capacidade de influenciar a forma como as pessoas pensam sobre si mesmas e sobre o seu mundo e transformá-las em lucro pessoal. Os líderes das seitas convencem os seguidores a dedicarem toda a sua vida ao serviço deles. Os anunciantes convencem os consumidores de que eles têm um problema ou deficiência que só pode ser resolvido com ‘This Exciting New Product’. Participantes ambiciosos de uma corrida desenfreada aprendem como subir na hierarquia corporativa ganhando o favor das pessoas certas e infligindo pequenos atos de sabotagem contra os seus pares concorrentes. Jornalistas ambiciosos aprendem que progridem muito mais nas suas carreiras ao apresentarem narrativas que favorecem o poder estabelecido (establishment) sobre o qual os plutocratas que possuem as grandes empresas de comunicação social construíram os seus reinos. Eles manipulam as narrativas dos grupos.

 

E depois há os oligarcas. Os mestres manipuladores. Estes reis corporativos do mundo moderno aprenderam o segredo que todos os governantes desde o início da civilização conhecem: quem controla as narrativas em que uma sociedade acredita é o controlador dessa sociedade. Identidade, linguagem, etiqueta, papéis sociais, opiniões, ideologia, religião, etnia, filosofia, agendas, regras, leis, dinheiro, economia, empregos, hierarquias, política, governo: todas as construções mentais que só influenciam a sociedade na medida em que são acreditadas e subscritas por uma maioria significativa do coletivo.  Se você tem influência sobre as coisas que as pessoas acreditam sobre essas construções mentais, você tem influência sobre a sociedade. Você governa isso. Os oligarcas manipulam as narrativas de sociedades inteiras.

 

É por isso que ao longo da história tem havido queimas de livros, queimadas de hereges e execuções por zombar do imperador: ideias que diferem das narrativas dominantes sobre o que é o poder, como funciona o dinheiro, quem deveria estar no comando e assim por diante, são ameaçadoras para o governante. A qualquer momento, em qualquer reino, o povo poderia ter decidido tirar a coroa da cabeça do rei e colocá-la na cabeça de qualquer mendigo comum e tratá-lo como o novo rei. E, para todos os aspetos significativos, ele seria o novo rei. A única coisa que impediu que isto acontecesse foram as narrativas dominantes subscritas pela sociedade da época sobre o Direito Divino, fidelidade, lealdade, sangue nobre e assim por diante. A única coisa que mantinha a coroa na cabeça de um rei era a narrativa.

 

Exatamente a mesma coisa permanece verdadeira hoje; a única coisa que mudou foram as narrativas que o público subscreve. Por causa do que lhes é ensinado na escola e do que os falantes nos seus ecrãs lhes dizem sobre a sua nação e o seu governo é que a maioria das pessoas acredita que vive numa situação de democracia relativamente livre onde o poder responsável e temporário é colocado nas mãos de um grupo seleto com base num processo de votação que cremos informado com base num debate não regulamentado de informações e ideias. Completamente separada do governo, acreditam eles, está uma economia cujo comportamento é determinado pela oferta e procura dos consumidores. Na realidade, a economia, o comércio e o governo são totalmente controlados por uma classe de elite de plutocratas, que também são donos das empresas de comunicação social que transmitem a informação sobre o mundo nos ecrãs das pessoas.

 

Controle as narrativas da economia e do comércio e você controlará a economia e o comércio. Controle as narrativas sobre política e governo e você controlará a política e o governo. Este controlo é usado pelos controladores para canalizar o poder para os oligarcas, transformando assim efetivamente a sociedade numa gigantesca propriedade de energia para a classe de elite.

Mas é possível acordar dessa Matrix narrativa […]

 

 

Os trabalhadores da indústria cinematográfica que se viram forçados a fazer greve para se defenderem da utilização abusiva das suas imagens, sons e escritos, acabaram por desconvocar a greve após uma negociação que envolveu o pagamento suplementar de mais de mil milhões de dólares.

Ao aceitarem esse pagamento, espero que o tenham feito conscientes que estavam a aceitar engolir a pílula que lhes garantia a continuidade de permanecerem na Matrix. Humanos na sua condição mais natural: garantir a sobrevivência.

 

 

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