(452) Os ‘relatórios minoritários’ do mundo real
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No filme, quando um dos três psíquicos previa a possibilidade de um futuro alternativo para a vítima e para o perpetrador em que o crime não acontecia, esse “relatório minoritário” dissonante era destruído para que o público conseguisse manter a confiança no sistema.
Nas empresas, o relatório minoritário é também a forma para demonstrar como os valores de justiça, equilíbrio, participação e trabalho podem ser alcançados pela expansão dos valores empresariais. A cultura empresarial como exemplo de democracia.
“Determino e mando publicar”, cabeçalho das Ordens de Serviço.
Minority Report é um filme de 2002 de Steven Spielberg com base numa novela do mesmo nome escrita em 1956 pelo saudoso Philip K. Dick, com Tom Cruise, Colin Farrell e Max von Sydow, e cuja ação se passa em 2054 numa altura em que o governo federal se prepara para fazer aprovar o programa policial “Pré crime”, que na prática já vinha sendo experienciado há seis anos.
Segundo o programa, um trio de psíquicos humanos clarividentes (“precogs”) percecionavam impressões psíquicas de homicídios eminentes e ainda por realizar, visões essas que oficiais especializados da polícia analisam para conseguirem determinar o local onde vão acontecer, podendo assim prenderem os pretensos criminosos antes de os crimes acontecerem.
Quando um dos três psíquicos prevê (sonha) a possibilidade de um futuro alternativo para a vítima e para o perpetrador em que o crime não aconteça, esse relatório dissonante é destruído para que o público consiga manter a confiança no sistema (programa). Esse “relatório minoritário” é eliminado.
Na vida real das empresas e outras organizações políticas, administrativas, jurídicas, etc., uma opinião minoritária ou “relatório minoritário” é a expressão de desacordo com a decisão da maioria que os órgãos consultivos podem levar ao conhecimento dos empregados. Em termos jurídicos, isto é conhecido como “dissidência de opinião”.
Segundo a teoria dessas organizações, um relatório minoritário pode ser valioso para captar as nuances de uma decisão. Não reverte, apela ou visa alterar a decisão tomada pela maioria.
Um relatório minoritário pode concordar com a decisão, mas discordar com princípios, sugestões ou estratégias específicas. Uma opinião minoritária pode trazer maior precisão à decisão da maioria, mas deve ser usada seletivamente, como quando a opinião está ausente na parte da discussão da ata da reunião.
Os relatórios minoritários também não devem ser usados para promover agendas pessoais, obter uma “palavra final” ou gerar polarização. Em vez disso, os relatórios pretendem trazer luz a uma discussão rica.
Tendo tudo isto em vista, essas organizações indicam algumas normativas que entendem ser de bom uso para se escrever um relatório minoritário:
“Os relatórios minoritários devem ser discutidos e redigidos com o mesmo nível de transparência que qualquer outro trabalho em grupo. É necessário aviso prévio, agendas e atas de reuniões. O relatório e os rascunhos são de registro público.
Assim como existe um relatório, decisão ou recomendação maioritária, existe apenas um relatório minoritário. Os membros dissidentes trabalham juntos para produzir uma carta.
[…] É importante definir a quem o relatório é endereçado. Por exemplo, se o grupo se reporta a um programa, diretor, ou Conselho, essa autoridade vai na linha “Para”.
[…] Definir se o relatório minoritário aborda uma decisão ou recomendação. Se não for nenhuma das duas, então a carta pode ser antes enviada ao contato do grupo como uma “preocupação” do processo ou como “saída entrevista”, e não como um relatório minoritário. Um relatório minoritário não é uma carta para “desabafar” e não pode ser usado para ameaçar, exigir ou emitir ultimatos.
[…] Os relatórios minoritários podem ser escritos quer a decisão tenha sido tomada por consenso ou por votação.
Os relatórios minoritários são apresentados ao mesmo tempo que o relatório maioritário.”
Instruções como estas ou semelhantes fazem parte de qualquer manual das grandes e pequenas organizações, como forma para mostrar aos seus empregados como devem atuar afim de evitarem dissidências que possam vir a emperrar o seu bom funcionamento. É também a forma para lhes insinuar como os valores de justiça, equilíbrio, participação e trabalho podem ser alcançados através da expansão dos valores empresariais. A cultura empresarial como exemplo de democracia. Tudo azul, tudo muito azul.
No seguimento das declarações de Paddy Cosgrave, fundador da Web Summit, que, tal como o secretário-geral da ONU António Guterres, considerou tratarem-se também de “crimes de guerra” a resposta de Israel ao ataque do Hamas, assistiu-se ao cancelamento do apoio e das participações no referido “evento” da Alphabet (dona da Google), Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), Amazon, Intel, Siemens e outros fundos de capitais.
Uma das conclusões possíveis de retirar desta posição comum e imediata pelas grandes tecnológicas é que decisões maioritárias como estas, que são as que importam, só podem ser feitas pelos maioritários. Por isso, os relatórios minoritários, não passam disso mesmo, são relatórios para o pessoal menor.
Isto fez-me recordar os tempos nas Forças Armadas a quando ao fim do dia se procedia à leitura da Ordem de Serviço exarada pelo oficial comandante, e que, justificadamente, começava (ou terminava) sempre assim:
“Determino e mando publicar”.
O corolário evidente dessa tomada de posição conjunta das Tecnológicas pode também ser visto como inspirador para a distinção que se entende estabelecer entre autocracia e democracia: numa autocracia não há liberdade para se dizer o que se quer; numa democracia há liberdade para se dizer o que se quer desde que se diga o que querem que se diga.
E pode também ser visto como indicador de quem é que atualmente determina. Que os outros, pressurosamente, publicam. Tudo só azul, tudo muito azul.
Referências:
Sobre a frase de Aristóteles, “ A democracia e a oligarquia podem fundir-se desde que os muitos pobres não ameacem os poucos ricos através de instituições representativas, e os poucos ricos não concentrem riqueza ao ponto dos muito pobres se tornarem politicamente explosivos, e sobre o princípio histórico segundo o qual “A democracia é apenas uma das formas da política que os oligarcas utilizam para a defesa da sua riqueza”, ler o blogue de 14 de março de 2018, “As máscaras das oligarquias”.
Sugiro ainda o blogue de 20 de janeiro de 2016, “Tudo azul, tudo muito azul”.