(449) O ruído como divertimento
Tempo estimado de leitura: 6 minutos.
Todo o mal do homem vem de uma única coisa, que é não saber ficar em repouso, num quarto, Pascal.
Visto que se não pode ser universal sabendo tudo o que se pode saber sobre tudo, é preciso saber um pouco de tudo, Pascal.
O homem é um ser paradoxal que não pode ao mesmo tempo viver e conhecer-se. A vida e a consciência excluem-se, o que o leva a concluir pela necessidade ontológica do divertimento, Lucien Goldmann.
Não tendo podido curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens lembraram-se para se tornarem felizes, de não pensar nisso, Pascal.
“Visto que se não pode ser universal sabendo tudo o que se pode saber sobre tudo, é preciso saber um pouco de tudo. Porque é mais belo saber qualquer coisa de tudo do que saber tudo de uma coisa; esta universalidade é a mais bela. Se se pudessem ter as duas coisas, melhor ainda; mas se é preciso escolher, deve escolher-se aquela, e o mundo sente-o e fá-lo, porque o mundo é muitas vezes um bom juiz”, assim se expressa Pascal (1623 – 1662) num dos fragmentos que deixou para serem colecionados nos Pensamentos.
Cientista de excelência num tempo de grandes racionalistas, cedo percebe os limites da razão para explicar o finito e o infinito, e para conhecer a natureza do homem, indo inteirando-se que o homem é ao mesmo tempo grandeza e miséria, “nem anjo nem animal, mas homem”.
As suas posições claras sobre os limites da razão, as suas conversões e êxtase místicos, os pequenos pedaços de papel em que escrevia o que pensava e que escondia nos bolsos e no forro do casaco, levam alguns dos seus contemporâneos (e não só) a apelidá-lo de irracionalista.
“O homem não passa de um sujeito cheio de erro, natural e indelével sem a graça. Nada lhe mostra a verdade. Tudo o engana. Estes dois princípios de verdades, a razão e os sentidos, enganam-se reciprocamente um ao outro. Os sentidos enganam a razão com falsas aparências; e a própria trapaça que oferecem à razão, recebem-na dela por sua vez: ela desforra-se. As paixões da alma perturbam os sentidos e causam-lhes impressões falsas. Eles mentem e enganam-se à porfia.”
O homem é assim um ser paradoxal que não pode ao mesmo tempo viver e conhecer-se. A vida e a consciência excluem-se, o que o leva a concluir pela necessidade ontológica do divertimento (divertissement).
Fragmento 139 ou 205 (conforme as edições a que digam respeito):
“Quando me pus algumas vezes a considerar as diferentes agitações dos homens e os perigos e as penas a que eles se expunham, na corte, na guerra, de que nascem tantas querelas, paixões, empreendimentos ousados e por vezes maus, etc., descobri que todo o mal do homem vem de uma única coisa, que é não saber ficar em repouso, num quarto. Um homem que tem bens suficientes para viver, se soubesse ficar em casa com prazer, não sairia para andar no mar ou ir ao cerco de uma praça. Não se compraria um cargo no exército tão caro, se não se achasse insuportável não sair da cidade; e não se procuram as conversas e os jogos senão porque se não pode ficar em casa com prazer.
Mas quando pensei de mais perto, e quando, depois de ter encontrado a causa de todas as desgraças, quis descobrir-lhes a razão, achei que há uma bem efetiva, que consiste na desgraça natural da nossa condição fraca e mortal, e tão miserável que nada nos pode consolar, quando pensamos nela de perto.
De qualquer condição que imaginemos, se se reunirem todos os bens que nos podem pertencer, a realeza é o mais belo cargo do mundo, e, contudo, se se imaginar um com todas as satisfações que lhe podem estar ligadas, se ele não tiver divertimento, e se se deixar considerar e refletir sobre o que é esta felicidade insípida, não o aguentará, cairá necessariamente sob os olhares que o ameaçam, as revoltas que podem acontecer, e enfim a morte e as doenças que são inevitáveis; de maneira que se está sem o que se chama divertimento, está desgraçado, e mais desgraçado que o mais pequeno dos seus, que brinca e se diverte.
Daqui resulta que o jogo e a conversa das mulheres, a guerra, os grandes empregos, sejam tão procurados. Não é que haja com efeito felicidade, nem que se imagine que a verdadeira felicidade seja ter dinheiro que se posa ganhar no jogo, ou na lebre que se corre: não o quereríamos se tal nos fosse oferecido. Não é este uso mole e tranquilo, e que nos deixa pensar na nossa desgraçada condição, que se procura, nem os perigos da guerra, nem o sacrifício dos empregos, mas é o ruído que nos desvia de pensar nisso e nos diverte.
Daí que os homens gostem tanto do barulho e movimento; daí, que a prisão seja um suplício tão horrível; daí que o prazer da solidão seja uma coisa incompreensível. E é, enfim, o maior objeto de felicidade da condição dos reis, que se procure sem cessar diverti-los e proporcionar-lhes toda a espécie de prazeres.
O rei está rodeado de pessoas que só pensam em diverti-lo e em o impedir de pensar em si. Pois será infeliz, por muito rei que seja, se pensar em si mesmo.
Eis tudo o que os homens puderam inventar para se tornarem felizes. E aqueles que fazem de filósofos acerca disto, e que julgam que as pessoas são bem pouco razoáveis em andar a correr todo o dia atrás de uma lebre que não quereriam ter comprado, não conhecem nada a nossa natureza. Esta lebre não nos libertaria da contemplação da morte e das misérias, mas a caça – que nos desvia – liberta-nos dela.
E assim, quando se lhes censura que procurem com tanto ardor o que os não poderia satisfazer, se respondessem, como deveriam fazer se pensassem bem nisto, que procuram apenas uma ocupação violenta e impetuosa que os desvie de pensar em si, e que é por isso que se propõem um objeto atraente que os encante e atraia com ardor, deixariam os seus adversários sem réplica.
Mas não respondem a isto porque não se conhecem a si mesmos. Não sabem que é apenas a caça e não a presa que procuram.
Imaginam que se tivessem obtido o cargo repousariam depois comprazer, e não sentem a natureza insaciável da sua concupiscência. Julgam procurar sinceramente o repouso e só procuram com efeito a agitação.
Têm um instinto secreto que os leva a procurar fora o divertimento e a ocupação, e que lhes vem do ressentimento das suas misérias contínuas; e têm outro instinto secreto que resta da grandeza da nossa primeira natureza, que os faz saber que a felicidade, com efeito, só está no repouso e não no tumulto; e destes dois instintos contrários, forma-se neles um projeto confuso, que se lhes esconde da vista no fundo da sua alma, e os leva a tender para o repouso pela agitação, e a imaginar sempre que a satisfação que não têm lhes virá, se, superando algumas dificuldades que encaram, puderem por ali abrir uma porta no repouso.
Assim se passa toda a vida. Procura-se o repouso combatendo alguns obstáculos; e se se superam, o repouso torna-se insuportável; porque, ou se pensa nas misérias que se têm ou naquelas que nos ameaçam. E, quando nos víssemos bastante protegidos de todos os lados, o tédio pela sua autoridade privada, não deixaria de aparecer, no fundo do coração, onde tem raízes naturais, e de encher o espírito com o seu veneno.
Assim o homem é tão desgraçado que se aborreceria mesmo sem nenhuma causa de aborrecimento, pelo estado próprio da sua compleição; e é tão vão que, estando cheio de mil causas de tédio, a mínima coisa, como um bilhar e uma bola que empurre, bastam para o divertir.
Mas, direis, que fim terá em tudo isto? O de se gabar entre os seus amigos de que jogou melhor que os outros. Assim uns suam nos seus gabinetes para mostrar aos sábios que resolveram uma questão de álgebra que não se tinha podido encontrar até aqui; e tantos outros se expõem aos maiores perigos para se gabarem em seguida de um lugar que terão conquistado, e tão estupidamente, na minha opinião; enfim, outro se matam para notar todas estas coisas, não para se tornarem mais sábios, mas só para mostrarem que as sabem, e são estes os mais estúpidos da série, visto que o são com conhecimento, enquanto se pode pensar dos outros que o não seriam se tivessem esse conhecimento.
Tal homem passa a sua vida sem se aborrecer jogando um pouco dinheiro todos os dias. Dai-lhe todas as manhãs o dinheiro que pode ganhar diariamente, sob a condição de não jogar: torná-lo-eis desgraçado. Dir-se-á talvez que procura o divertimento do jogo e não o ganho. Fazei-o jogar por nada, não aquecerá e aborrecer-se-á. Não é, portanto, só o divertimento que ele procura: um divertimento amolecedor e sem paixão aborrecê-lo-á. É preciso que ele esqueça e se engane a si mesmo, imaginando que seria feliz se ganhasse o que não quereria que lhe dessem sob a condição de não jogar, a fim de criar um motivo de paixão, e que excite com isto o seu desejo, a sua cólera, o seu medo, pelo objeto que imaginou, como as crianças que temem a cara que enfarruscaram.
Donde vem este homem, que perdeu há um mês o seu filho único, e que, sobrecarregado com promessas e querelas, estava esta manhã tão perturbado, já não pensa nisso agora? Não vos admireis: está todo entretido a ver por onde passará o javali que os cães perseguem com tanto ardor há seis horas. Não é preciso mais. O homem, por muito cheio de tristeza que esteja, se se pode conseguir dele que participe num divertimento, ei-lo feliz durante esse tempo; e o homem, por muito feliz que seja, se não está divertido e ocupado por qualquer paixão ou divertimento que impeça o tédio de se espalhar, cedo ficará triste e desgraçado. Sem divertimento não há alegria, com o divertimento não há tristeza.
E é também o que forma a felicidade das pessoas de alta condição, que têm um número de pessoas que as diverte e que têm o poder de se manter nesse estado. Reparai nisto, que será ser superintendente, chanceler, primeiro presidente, senão uma condição em que se tem desde manhã um grande número de pessoas que vêm de todos os lados, para não lhes deixar uma hora do dia em que possam pensar em si próprios? E quando caem em desgraça e os mandam para as suas casas de campo, onde não lhes faltam nem bens, nem criados para os assistir nas suas necessidades, eles sentem-se miseráveis e abandonados, porque ninguém os impede de pensar em si.”
Termino com a transcrição do curto fragmento 121 ou 213:
“Não tendo podido curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens lembraram-se para se tornarem felizes, de não pensar nisso.”
Lucien Goldmann, no Le Dieu caché. Étude sur la vision tragique dans les Pensées de Pascal et dans le théâtre de Racine, vai resumir assim os pensamentos de Pascal sobre o homem:
“Viver no mundo, é viver ignorando a natureza do homem; conhecê-la, é compreender que ele só pode salvar os valores autênticos se recusar o mundo e a vida intramundana, escolhendo antes a solidão e – no limite – a morte.”
Referência:
O blog de 7 de julho de 2021, “Pascal vacinou-se” sobre a célebre aposta de Pascal e as razões que o coração desconhece.