(448) “Apresento-lhes a minha mulher, a quem nunca bati”
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Se toda a gente te disser mentiras […] mais ninguém vai acreditar seja no que for […] E as pessoas que já não acreditam em nada não conseguem decidir-se […] E acabam por ficarem privadas não só das suas capacidades para agir como das suas capacidades para pensar e julgar, Hannah Arendt.
A repetição de uma afirmação plausível aumenta a crença de uma pessoa na veracidade da afirmação, L Hasher, D Goldstein e T Toppino.
E te darei a ti, e à tua semente depois de ti, a terra das tuas peregrinações, toda a terra de Canaã, em perpétua possessão, e ser-lhes-ei o seu Deus, livro do “Génesis” (17:8), da Bíblia, Antigo Testamento.
Em 1977, Lynn Hasher, David Goldstein e Thomas Toppino, apresentaram um estudo feito na Villanova University e na Temple University, “ Frequency and the Conference of Referential Validity”, resultado de um conjunto variável de 60 afirmações que deveriam ser consideradas como falsas ou verdadeiras por 40 estudantes das suas universidades, algumas das quais seriam depois repetidas em três sucessivas ocasiões com um intervalo de duas semanas.
As afirmações, num total de 7200 (60 afirmações x 3 sessões x 40 áreas) referiam-se a 40 áreas entre as quais história, governação, política, desporto, biologia, medicina, religião, costumes, artes, geografia e demografia, mas que não exigiam nenhum conhecimento especializado.
Eis as conclusões a que chegaram:
“A repetição de uma afirmação plausível aumenta a crença de uma pessoa na veracidade da afirmação […] A frequência é o atributo da memória que serve de base à nossa capacidade de conseguir distinguir acontecimentos antigos de acontecimentos recentes […] Esta experiência parece suportar à ideia empírica que ‘se uma coisa for dita às pessoas muitas vezes, elas acabam por acreditar nela’ […] A frequência é um atributo chave da memória, desempenhando um papel fundamental na discriminação entre memórias, em desenvolver um efeito positivo para um estímulo, e em atribuir um referencial de validade para afirmações plausíveis.”
Seguiram-se vários estudos que vieram complementar as conclusões de Hasher e outros. Ainda em 2012, o Europe’s Journal of Psychology publicou um estudo de Danielle C. Polage, “Making up History: False Memories of Fake News Stories”, em que confirma que a exposição repetida a um estímulo fictício faz com que os participantes desenvolvam uma falsa memória por terem já ouvido falar nessas falsas histórias por uma fonte exterior à experiência.
Em resumo, temos tendência para acreditar que informações falsas possam ser apreendidas como corretas quando repetidas vezes sem conta, criando uma ilusão da verdade (illusory truth effect). Não é, pois, de admirar o seu desenvolvimento e utilização “científica” nas campanhas de anúncios, de notícias, de política e de políticos.
Há um muito interessante ensaio de Heidi Taksdal Skjeseth publicado em 2017 pela Universidade de Oxford com o elucidativo título All the president’s lies: Media coverage of lies in the US and France que cobre o período relativo à campanha presidencial que levou à eleição de Donald Trump em 2016, que não deixa contudo de nos chamar a atenção para aquilo que Hannah Arendt disse sobre o efeito continuado das mentiras sobre a democracia:
“Se toda a gente te disser mentiras, a consequência não é tu vires a acreditar nelas, mas antes o de mais ninguém vir a acreditar seja no que for […] E as pessoas que já não acreditam em nada não conseguem decidir-se. Ficam privadas não só das suas capacidades para agir como das suas capacidades para pensar e julgar. E com tais pessoas podes fazer delas o que quiseres.”
Nos tempos que correm temos visto esta técnica ser utilizada várias vezes, como por exemplo com a campanha desenvolvida para nos levar a acreditar na existência de armas de destruição de massa do Iraque, e com a atualíssima campanha sobre Israel, onde sempre que se refere a ação do Hamas ela é continuadamente apelidada como sendo uma “ação não provocada”:
“Os Estados Unidos condenam inequivocamente os ataques não provocados os terroristas do Hamas contra civis israelitas”, lê-se num comunicado da Casa Branca.
“As perdas de vidas em Israel resultantes de um violento, calculado e não provocado ataque pelo Hamas parte-nos o coração”, lê-se num comunicado de Hakeem Jeffries, Chefe Minoritário do Congresso.
“Este ignominioso, não provocado, e bárbaro ataque a Israel deve ser encarado com condenação mundial e com um inequívoco suporte do estado judaico ao direito à sua autodefesa”, num X do candidato presidencial Robert F. Kennedy Jr.
“Agressão não provocada pelos terroristas do Hamas”, num X do ex-secretário de estado, Mike Pompeo.
Muitas mais personalidades políticas e meios da grande comunicação social seguem este mantra, como se todos tivessem frequentado a mesma escola e aprendido pela mesma cartilha. De certa forma isto acaba por parecer um pouco suspeito, ou pelo menos faz lembrar a história do gato escondido com o rabo de fora ou a fábula de La Fontaine do leão e do cordeiro. É como se sempre que nos referirmos ao nosso carro ou à nossa mulher, disséssemos constantemente: “Este é o meu carro, nunca bati com ele”, ou “Esta é a minha mulher, nunca lhe bati”.
Menos ingénuo, Noam Chomsky faz-nos notar que “É claro que é propositado. Caso contrário, eles não se refeririam continuadamente como sendo não provocada”.
E é certamente por sermos ingénuos que acreditamos que os serviços de inteligência de Israel conseguiram ser simultaneamente totalmente incompetentes na previsão dos ataques do Hamas ao ponto de serem apanhados de surpresa (apesar dos serviços egípcios os terem avisado), e imensamente competentes logo de seguida na localização dos edifícios a bombardear (6.000 bombas) e onde só estavam apenas terroristas do Hamas.
Esta aparente incongruência (se é que o é), talvez só se possa entender se recuarmos um pouco no tempo:
É no livro do “Génesis” (17:8), da Bíblia, Antigo Testamento, que pela primeira vez Deus promete a Abraão a terra de Canaã para os seus descendentes:
“E te darei a ti, e à tua semente depois de ti, a terra das tuas peregrinações, toda a terra de Canaã, em perpétua possessão, e ser-lhes-ei o seu Deus.”
E o que aconteceria aos povos que já lá habitavam? A resposta vem no livro “Deuteronómio” (20:16-17):
“Porém, das cidades destas nações, que o Senhor, teu Deus, te dá em herança, nenhuma coisa que tem fôlego deixarás com vida;
Antes destruí-las-ás totalmente: aos heteus, e aos amorreus, e aos cananeus, e aos perizseus, e aos heveus, e aos jebuseus, como te ordenou o Senhor, teu Deus.”
Este extermínio de outros povos autorizado pelo Senhor, encontra-se minuciosamente relatado nos livros de “Josué” e de “Juízes” (livros que narram a conquista de Canaã e territórios limítrofes pelos israelitas). Aí podemos aperceber que a destruição étnica da cidade de Canaã (e muitas outras) com recurso ao genocídio, tinha como objetivo dar lugar a uma etnicidade única: a israelita.
E que as conquistas contadas como milagrosas incluíam sempre a matança de todos os seres vivos, humanos (desde homem a mulher, jovem a velho) e animais (desde vitelo a animal de carga), a apropriação de bens, e as variadas formas de tortura, como o empalamento - “E Josué incendiou a cidade com fogo: fê-la um amontoado inabitável até ao dia de hoje. E enforcou o rei de Gai numa árvore dupla e ele ficou na árvore até à noite…e o lançaram à porta da cidade … “(Josué, 8-29) - e a amputação dos dedos das mãos e dos pés - “e cortaram-lhe as pontas das mãos e dos pés” (Juízes, 1-6) -, reduzindo o inimigo ao estatuto de animal, dado que deixava de se poder alimentar como ser humano ao ter de apanhar a comida com a boca como um cão.
A fórmula final contada do ataque às cidades termina invariavelmente com:
“E os filhos de Israel apropriaram para si mesmos todos os despojos; chacinaram todo o povo com a boca da espada, … e não deixaram nem um único ser com vida.” (Josué, 11-14)
“Tal como o Senhor ordenara a Moisés, Seu escravo, assim Moisés ordenara a Josué; e assim Josué procedeu … “(Josué, 11-15).
Rashid Khalidi, professor de estudos árabes modernos Edward Said na Universidade de Columbia, após a pesquisa exaustiva que fez para o seu livro A Guerra dos Cem Anos na Palestina: Uma História de Colonização e Resistência, 1917-2017, e que inclui comunicações internas e privadas entre os primeiros sionistas e a liderança israelita, não tem dúvidas em afirmar que os colonizadores judeus sabiam desde o início que o povo palestino tinha que ser subjugado e removido para criar o estado judaico.
Também Frederico Lourenço escreve na “Nota introdutória a Josué” (Bíblia, Antigo Testamento, Os livros históricos, tomo I):
“A mensagem clara do livro de Josué é que Deus autoriza, por amizade a um povo, o extermínio de outros povos”.
Este é o plano traçado, e que mais de dois mil anos depois está a ser seguido. Tem vindo a ser seguido (Recorde-se o blog de 5 de abril de 2020, “Em defesa de Benjamin Netanyahu”).
E as condições são neste momento melhores que nunca: Israel está muito bem armado, tem o apoio total dos EUA, os países árabes limítrofes estão mais fracos que nunca e mais interessados com a manutenção da sua sobrevivência regional do que em ajudar os palestinianos (como se tem vindo a verificar desde a criação do estado judeu, a área palestiniana tem vindo sempre a diminuir sem qualquer intervenção unida de força), os colonatos “ilegais” israelitas na Cisjordânia atingiram uma extensão tal que impedem já a formação da solução de dois estados (e a haver um só estado, ele só será o de Israel).
Inversamente, estas são as mesmas razões porque a ação do Hamas parece ter sido estrategicamente extemporânea: a limpeza étnica está em execução. Mesmo que a “justiça” e a “moral” estejam do seu lado:
“Há um tipo que me roubou o telefone. Como não sabia ao certo onde ele morava, decidi lançar fogo a toda a sua vizinhança. Morreram muitas pessoas, mas a culpa disso é dele por morar junto de outras pessoas que não roubaram nada. Ele usava os vizinhos como escudos humanos. Ele é, portanto, 100% responsável pelas suas mortes, e não eu.”
Nota:
Para um entendimento mais alargado do assunto, sugiro a leitura do blog de 31 de março de 2020, “A colonização sionista da Palestina”.