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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(446) Alternativas: da mão estendida às reguadas

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Exigir a abolição da propriedade privada ou promover o igualitarismo nas nossas sociedades caídas no pecado, seria estar a pedir para gentes imperfeitas aquilo que corresponde só ao perfeito, Tomás de Aquino.

 

Em vez de taxar excessivamente os ricos, deveríamos antes conceder-lhes o direito a decidirem voluntariamente que parte da sua riqueza queriam doar para o bem-estar comum, Sloterdijk.

 

Deve-se antes permitir que a maquinaria capitalista faça o seu trabalho na esfera adequada, e impor uma justiça igualitária através da política, Pikerty.

 

 

 

 

Quando no século IV a Igreja cristã se converteu em religião estatal, vai ter de enfrentar a seguinte contradição imanente: como reconciliar a sociedade feudal de classes, em que os senhores ricos governavam sobre os camponeses pobres, com a pobreza igualitária do coletivo dos crentes de acordo com os evangelhos?

Vai ser Tomás de Aquino a resolver o problema: se bem que em princípio a propriedade compartida fosse melhor, isso só se verificaria para os humanos perfeitos; para a grande maioria de nós que vivemos em pecado, a propriedade privada e a diferença de riqueza são algo de natural, e mais, resultaria até pecaminoso  nas nossas sociedades caídas no pecado exigir a abolição da propriedade privada ou promover o igualitarismo, porque isso seria estar a pedir para gentes imperfeitas aquilo que corresponde apenas e só ao perfeito.

 

Acontece que nos dias de hoje vivemos tempos em que a intenção natural dos Estados Unidos para se manterem como única superpotência (polícia universal) se tem vindo a esboroar com o aparecimento e formação de múltiplos centros do capitalismo global prevalecente, pelo que se começam a tornar necessárias novas regras de interação entre todos eles na busca de uma Nova Ordem Mundial.

Só que aqui teremos de nos confrontar com o que constitui a sua contradição principal: a impossibilidade estrutural em se encontrar uma ordem política global que corresponda à economia capitalista global.

Dito de outro modo, em virtude da existência de sólidas identidades particulares (étnicas, religiosas, culturais), será possível organizar-se a economia global de mercado como se tratasse de uma democracia global e liberal com parlamentos mundiais, eleições mundiais, etc. mundiais? Como ultrapassar estas tensões resultantes da livre circulação global de mercadorias acompanhadas das crescentes separações que se verificam na esfera social?

 

Eis duas alternativas sugeridas, uma apresentada por Peter Sloterdijk e outra por Thomas Pikerty.

Sloterdijk, no seu Repenser l’impôt, vai dizer-nos que se se quer salvar o essencial do estado de bem-estar, temos de abandonar a social-democracia do século XX. E isto porque, segundo ele, o estrato produtivo explorado já não é a classe operária, mas a classe média/alta: é ela que ao pagar elevados impostos, financia a educação, a saúde, etc., da maioria.

Para levar a cabo esta revolução cultural (nova) tem de se abandonar a ideia bastante arreigada de que deve ser o Estado a ter o direito de cobrar impostos aos cidadãos, de determinar e apropriar-se de parte do seu produto. Esta ideia parte do conceito que as pessoas são basicamente egoístas, e que há que as obrigar a contribuir com algo para o bem comum, e que só o Estado, através do seu aparelho coercivo, pode assegurar a necessária solidariedade e redistribuição.

Dever-se-ia, portanto, começar a tratar-se o grupo que mais paga para a sociedade, não como suspeitosos, mas como generosos doadores para que se sentissem orgulhosos da sua generosidade. Pelo que em vez de taxar excessivamente os ricos, deveríamos conceder-lhe antes o direito a decidirem voluntariamente que parte da sua riqueza queriam doar para o bem-estar comum (dizerem quanto e para que fins). Só assim se alteraria toda a ética em que se baseia a coesão social.

 

Alguns críticos desta proposta de Sloterdijk, chamam a atenção para a prática de dois dos modelos de generosidade por ele mencionados: Carnegie,  o chamado homem do aço com oração de ouro, utilizava os detetives da Pinkerton e um exército privado para acabar com a resistência dos trabalhadores, exibindo em seguida a sua generosidade devolvendo (parcialmente) aquilo de que se tinha apropriado (mas não criado); o mesmo para Bill Gates, cujas táticas brutais para acabar com os seus competidores e conseguir um monopólio, obrigaram as autoridades dos EUA a levantar múltiplas ações legais contra a Microsoft.

 

Thomas Pikerty, no seu Capital in the Twenty-First Century, vai começar por nos apresentar uma visão sobre as alterações históricas que se produziram na renda e riqueza das sociedades:

“Nos séculos XVII e XIX a sociedade europeia era enormemente desigual: a riqueza privada era muito maior que a renda nacional e estava concentrada nas mãos das famílias ricas dentro de uma rígida estrutura de classes. Esta situação persistiu inclusive quando a industrialização contribuiu lentamente para aumentar os salários dos trabalhadores, e a tendência para uma maior desigualdade só se inverteu entre 1930 e 1975 por causa de uma série de circunstâncias singulares: As duas guerras mundiais, a Grande Depressão, e a aparição dos Estados comunistas, que levaram os governos dos Estados capitalistas desenvolvidos a imporem medidas para a redistribuição da renda”, (o que se formos cínicos ou ingénuos nos poderia até levar a concluir que o igualitarismo e o bem-estar universal acompanham sempre as grandes catástrofes das guerras e crises mundiais).

De 1975 em diante, e sobretudo depois da queda do comunismo, a tendência para a desigualdade regressou, o que leva Pikerty a prever um mundo com pouco crescimento económico, ao mesmo tempo que rechaça a ideia que os avanços tecnológicos nos conduzam aos níveis do século XX.

Só uma forte intervenção política poderá evitar o aumento da desigualdade. Daí propor um imposto anual sobre a riqueza global de até 2%, combinado com o imposto progressivo sobre a renda que poderá alcançar os 80%.

 

E aqui põe-se a grande questão: se o capitalismo nos conduz para um crescimento da desigualdade e debilidade da democracia, não deverá ser nosso objetivo superar-se o capitalismo?

Para Pikerty, o facto é que no século XX as alternativas ao capitalismo não funcionaram, pelo que há que aceitar o capitalismo como o único sistema que funciona. A única solução exequível consiste em permitir que a maquinaria capitalista faça o seu trabalho na esfera adequada, e impor uma justiça igualitária através da política, mediante um poder democrático que regule o sistema económico e imponha a redistribuição.

 

Pikerty sabe perfeitamente que o modelo que propõe só tem hipótese de funcionar se fosse adotado globalmente para além dos Estados nacionais, pois se assim não fosse o capital fugiria para os Estados com menores impostos. Uma medida global destas implicaria a existência de um poder global já previamente existente com força e autoridade suficientes para a impor. Ou seja, é uma proposta de alternativa que de antemão já não precisaria de ser posta porquanto já estaria resolvida.

 

Estas duas alternativas (de Sloterdijk e de Pikerty) não são assim tão diferentes e têm em comum duas premissas subjacentes: a maquinaria capitalista tem que ser mantida uma vez que é a única capaz de produzir riqueza, e há que corrigir a igualdade redistribuindo a riqueza aos desfavorecidos.

A diferença reside apenas na maneira de alcançar o proposto: Pikerty defende a regulamentação estatal direta e massiva através de impostos altos, ao passo que Sloterdijk tem por base as doações voluntárias dos ricos.

De mão estendida para as reguadas.

 

Outras hipóteses serão sempre possíveis, como, por exemplo, a então preconizada por Heidegger para resolver a contradição que ainda hoje continua a aparecer na Igreja, em que a Igreja oficial aparece como a principal força anticristã, e segundo o qual “Só um deus nos pode salvar”.

Uma outra saída possível seria a fundação na solidariedade de uma nova forma de vida social, uma nova unidade religiosa que mascarasse as divisões reais. Alternativas. Alternativas?

 

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