Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(440) Sobre a obscenidade

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

A sociedade da abundância é obscena nos discursos, nos sorrisos dos seus políticos e oradores; nas suas orações, na sua ignorância, na falsa sabedoria dos intelectuais que ela sustenta, H. Marcuse.

 

O símbolo da obscenidade não é a mulher nua que exibe a sua púbis, mas o general que exibe no seu peito a medalha que ganhou no Vietname, H. Marcuse.

 

Face a uma sociedade sem moral, a moralidade torna-se uma força política efetiva, H. Marcuse.

 

 

 

 

 

Foi em 1969 que Herbert Marcuse abordou no seu ensaio sobre a libertação, An Essay On Liberation, o tema da obscenidade na sociedade da abundância em que se vivia:

 

“É obsceno, da parte dessa sociedade, produzir e expor descaradamente uma quantidade asfixiante de mercadorias, enquanto as suas vítimas se veem privadas de mais do que o estritamente necessário; ou empanturrar-se de alimentos, de encher com as suas sobras caixotes de lixo, quando nas suas zonas de agressão, destrói ou envenena os raros resquícios comestíveis que aí existem. A sociedade da abundância é obscena nos discursos, nos sorrisos dos seus políticos e oradores; nas suas orações, na sua ignorância, na falsa sabedoria dos intelectuais que ela sustenta.

A obscenidade enquanto conceito moral é vítima, no arsenal verbal da ordem estabelecida, de uma utilização abusiva: ela nunca é aplicada ao comportamento moral da ordem estabelecida, mas sim e sempre ao comportamento moral dos outros. Assim, o símbolo da obscenidade não é o da mulher nua que exibe a sua púbis, mas do general que exibe no seu peito a medalha que ganhou no Vietname; não é o ritual hippie, mas a declaração do alto dignatário da Igreja segundo o qual a guerra é necessária para se obter a paz.

A terapia linguística, quer dizer o esforço para desembaraçar as palavras (e, portanto, os conceitos) da significação adulterada com que a ordem estabelecida as carregou, impõe que os critérios morais não sejam mais fundados (nem sancionados) pela ordem estabelecida, mas pela revolta.

De igual modo, o vocabulário sociológico deve ser alvo de uma refundação radical: é preciso retirar-lhe a capa de pretensa neutralidade, é preciso deliberadamente, sistematicamente, “moralizá-lo” numa ótica de Recusa.

A moralidade não é necessariamente e antes de tudo um facto ideológico; perante uma sociedade sem moral, a moralidade aparece como uma força política efetiva; é ela que dá ânimo aqueles que queimam as suas cadernetas militares da incorporação, aqueles que ridicularizam os seus líderes nacionais, aqueles que nas igrejas se fazem ouvir com cartazes onde inscrevem o mandamento: “Não matarás”.

 

A reação normal à obscenidade é a vergonha, normalmente interpretada como a manifestação fisiológica do sentimento de culpa que acompanha a transgressão de um tabu. Mas as exibições obscenas da sociedade da abundância não provocam habitualmente nem vergonha nem sentimento de culpa, mesmo se essa sociedade enfrente alguns dos tabus morais mais importantes da nossa civilização.

A noção de obscenidade provém da esfera sexual, a falta e o sentimento de culpa provém da situação edipiana. Se a moralidade social tivesse por base a moral sexual, poderíamos pensar que a falta de vergonha na sociedade da abundância e o apagamento eficaz do sentimento de culpa, correspondem a uma atenuação da vergonha e do sentimento de culpa na esfera sexual.

 Aliás, a exibição da nudez para todos os efeitos práticos é autorizada e mesmo encorajada; e os tabus sobre as relações pré-maritais e extramaritais, estão consideravelmente relaxados. Encontramo-nos assim confrontados com este paradoxo, que a liberalização da sexualidade serve de base institucional ao poder repressivo e agressivo da sociedade da abundância.

Contudo, esta contradição é apenas aparente, isto se dermos conta que esta liberalização da moralidade da ordem estabelecida continua inscrita no quadro das restrições eficazes: desde que se mantenha contida nessa moldura, o que ela faz é reforçar a coesão do conjunto.

O relaxamento dos tabus, restringindo o sentimento de culpa, cria uma relação libidinal (mesmo que fortemente ambivalente) entre os indivíduos “livres” e os Pais institucionalizados: estes aparecem como autoritários, mas tolerantes; e é assim que eles dirigem a nação e a economia por forma que pareça assegurar e a proteger a liberdade dos cidadãos.

Pelo que, sempre que a violação dos tabus transcender a esfera sexual, a falta e o sentimento de e a revolta, tal indica não um apagamento ou uma atenuação do sentimento de culpa, mas apenas uma transferência: não somos nós que somos culpados, são os “pais”; a sua tolerância aparente não passa de hipocrisia; para se verem livres da sua própria culpa atribuindo-a a nós, os filhos, criam um mundo de hipocrisia e de violência no qual nós recusamos viver. A revolta instintiva passa então a revolta política, e esta conjuntura suscita de parte da ordem estabelecida a mobilização de toda a sua potência […]”

 

“[…] A economia dita de consumo e a política do capitalismo dos monopólios forjaram o homem a uma segunda natureza que o liga à forma comercial através de um modo libidinal e agressivo. A necessidade de possuir, de consumir, de manipular, de renovar constantemente todos os gadgets, aparelhos, motores, máquinas de todas as espécies que se oferecem, e se impõem mesmo, aos indivíduos, a necessidade de se servir deles mesmo com risco da própria vida, torna-se […] uma necessidade “biológica”.

Assim, a segunda natureza do homem opõe-se a uma alteração que risque interromper e talvez mesmo a abolir aquela dependência do indivíduo relativamente a um mercado cada vez mais saturado de mercadorias – pondo assim fim à sua existência como consumidor que se consome a ele próprio na sua compra e na sua venda.

As necessidades engendradas pelo sistema são, portanto, eminentemente estabilizadoras e conservadoras: elas representam o enraizamento da contrarrevolução no mais profundo da estrutura instintiva.

O mercado foi sempre um mercado de exploração e, portanto, de dominação, contribuindo para um fechamento da estrutura de classes da sociedade. Contudo, o processo de produção do capitalismo avançado modificou a forma de dominação: recobriu com um véu tecnológico o puro interesse da classe que opera no mercado.

Será ainda necessário explicar que não é a tecnologia, a técnica, a máquina, que exercem o domínio, mas somente a presença, nas máquinas, da autoridade dos patrões que determinam o número, a duração da existência, o poder e a significação na vida dos homens, e que decidem sobre a necessidade que temos deles? […]

O automóvel, a televisão, os aparelhos domésticos, não têm por si próprios uma função repressiva, só na medida em que sendo produzidos segundo as leis de lucro do mercado eles se tornam parte integral da existência dos indivíduos, da sua “quotidianidade” – por forma a que os indivíduos são constrangidos a adquirir por compra uma parte integrante da sua existência, e que esta se torna a realização do capital.

É o interesse de classe puro e simples que preside à construção de automóveis ultrapassados (fora de moda) e pouco seguros, libertando assim energia destruidora; que se serve das comunicações de massa para fazer o elogio da violência e da estupidez, e assegurar a servidão dos seus auditores. Os patrões não fazem mais que responder aos pedidos do público e das massas: a famosa lei da oferta e da procura estabelece uma harmonia entre os dirigentes e os dirigidos.

Esta harmonia é, evidentemente, pré-estabelecida, na medida em que os patrões moldaram um público que reclama as suas mercadorias, e com a maior insistência possível, nessas e por essas mercadorias, em que descarregam a frustração e agressividade que elas provocam.

Com efeito, onde é que a autodeterminação e a autonomia do indivíduo, poderão exprimir-se? No direito de conduzirem um automóvel, de manipularem engenhos mecânicos, comprarem uma arma, ou de expressarem a sua opinião, por mais agressiva e estúpida que seja, a um grande número de auditores.

O modo como o capitalismo organizado sublimou a frustração e a agressividade primária dos indivíduos para os utilizar de maneira produtiva na sociedade, não tem precedentes na história: não que essa sublimação transporte consigo uma quantidade de violência extraordinária, mas porque ela nunca engendrou tal satisfação, um tal contentamento, nunca ela conseguiu reproduzir tão bem a “servidão voluntária” […]

 

O capitalismo está em vias de produzir uma bem maior quantidade de objetos que nos provoquem satisfação do que anteriormente, e isso permite-lhe uma acomodação pacífica dos conflitos de classes; mas isso não apaga a sua caraterística fundamental, a apropriação privada da mais-valia (apropriação controlada, mas não abolida, pela intervenção do Estado), e a conversão dessa mais-valia em lucro do grande capital. O capitalismo reproduz-se transformando-se, ou seja, melhorando o seu sistema de exploração. A exploração e a dominação não são mais sentidas como penosas, elas são “compensadas” por um nível de conforto jamais igualado […]

Da mesma forma, este sistema, em função do qual vastas regiões do planeta se transformaram num inferno, repousa sobre um processo de produção no qual a energia física dá progressivamente lugar à energia mental: o trabalho tornou-se por isso menos extenuante?

Se respondermos pela afirmativa, então justificamos todas as formas de opressão desde que elas mantenham a populaça tranquila e contente; ao passo que uma resposta negativa despoja o indivíduo do direito de ser o próprio juiz da sua felicidade.”

 

 

Transcorridos 54 anos após a publicação deste escrito, ou passou ainda pouco tempo para que a moralidade se tenha tornado uma força política, ou o conceito de moralidade se alterou, se modificou, se tornou irrelevante, ou foi absorvido pela força política.

 

 

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub