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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(439) A colonização do Universo: “First we take Manhattan …”

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

Os humanos anatomicamente modernos surgiram há menos de 400.000 anos; estamos presentes há menos de 0,01 por cento do tempo da história da Terra.

 

Replicar tudo o que a Terra nos oferece num outro planeta, em escalas de tempo de algumas vidas humanas, é simplesmente impossível.

 

Se não podemos aprender a trabalhar dentro do sistema planetário com o qual evoluímos, como esperamos replicar esses processos profundos num outro planeta?

 

O ´faroeste’ como ideal e espaço de liberdade para quem saiba manejar as pistolas”, Bauman.

 

 

 

Sabemos hoje que Marte é um planeta frio, seco, com uma atmosfera muito fina e tempestades de areia que podem durar semanas sem fim. A pressão média à superfície é menos de um por cento da Terra, pelo que sobreviver sem fato pressurizado é impossível. A composição do ar é essencialmente de dióxido de carbono (na Terra a atmosfera contém apenas 0,04 % de CO2) e, as temperaturas oscilam entre os 30º no verão e os -140º no inverno.

Ou seja, é impossível a permanência em Marte por longos períodos a não ser que se o transforme num local/ambiente mais parecido com a Terra (terraforming). O que poderia ser feito se, por exemplo, se libertasse CO2 para criar um efeito de estufa que permitiria aumentar a temperatura, tornaríamos a atmosfera de Marte mais densa. Só que ao atingirmos níveis de 10% de CO2 (que não chegariam para aquecer o planeta), os seres humanos sufocariam, mesmo que tivessem oxigénio em abundância.

Outra hipótese seria a construção de cúpulas à superfície ou em grutas onde os humanos se abrigassem, só que devido às grandes diferenças de pressão entre o interior e exterior (muito maior que num avião em grande altitude) teria de ser mantida uma vigilância constante e permanente para evitar que qualquer fuga originasse uma explosão e sufocamento.

 

Mas havendo tantas estrelas, não seria melhor aguardar para ver se elas não teriam um qualquer planeta (exoplaneta) com condições idênticas à Terra?

Só a missão Kepler da NASA já identificou mais de 100.000 estrelas, com 900 planetas de dimensão idêntica à Terra, dos quais 23 podem ser considerados como habitáveis (a superfície pode suportar água líquida, desde que tenha pressão atmosférica suficiente).

Estudos recentes predizem que em cada uma de 10 estrelas podem-se encontrar planetas deste tipo. A ser assim, só na nossa galáxia, com aproximadamente 300 biliões de estrelas, para uma média de 30% poderemos ter 90 biliões de planetas compatíveis. O que nos deixa esperançados, porque pelo menos um deles poderá ser exatamente igual à Terra.

 

Claro que existe o problema da distância. Marte está a 225 milhões de quilómetros. Mesmo que os astronautas viajassem a 58.000 kph (velocidade máxima da New Horizon), levariam 162 dias a alcançar Marte, e 79.000 anos a alcançarem a Proxima Centauri, a estrela mais próxima fora do nosso sistema solar a 40 triliões de quilómetros.

 

Esqueçamos todos estes problemas, e concentremo-nos na possível chegada ao nosso tão procurado novo planeta idêntico à Terra. Observamos formas de vida a flutuar nos oceanos, expelindo o metano que dá ao céu aquela cor alaranjada. Idêntico ao nosso, mas em que fase de desenvolvimento está? Lembremos que nós não conseguíamos sobreviver na Terra ao longo de 90% da sua história: a atmosfera rica em oxigénio de que dependemos só recentemente aconteceu no nosso planeta.

No começo (Éon Hadeano) a Terra teria sido um lugar terrível com oceanos de lava derretida e uma atmosfera de rocha vaporizada. Seguiu-se o Arqueano, há 4 biliões de anos, quando a primeira vida (não humana) surge na Terra. Depois do Arqueano veio o Proterozoico, há 2,5 biliões de anos. Neste aparecia já terra, um oceano azul e um céu mais familiares. O oxigénio finalmente começou a acumular-se na atmosfera. Mas o nível de oxigénio era inferior a 10% do que temos hoje. O ar ainda seria impossível para nós respirarmos. Seguiram-se as grandes glaciações, onde por milhões de anos o gelo cobriu todo o globo, dos polos ao equador. A Terra passou mais tempo totalmente congelada do que o tempo que nós, humanos, existimos.

 

O atual período da Terra, o Fanerozoico, começou há apenas cerca de 541 milhões de anos com a explosão Cambriana – um período de tempo em que a vida se diversificou rapidamente. Uma infinidade de vida, incluindo as primeiras plantas terrestres, dinossauros e as primeiras plantas com flores, todas apareceram durante este período. Finalmente a nossa atmosfera tornou-se na que podemos respirar. Este período também foi caracterizado por múltiplas extinção em massa que eliminaram até 90% de todas as espécies em curtos espaços de tempo. Do ponto de vista do planeta, as mudanças que levam a essas extinções em massa são relativamente pequenas. No entanto, para as formas de vida da época, essas mudanças destruíram o seu mundo e muitas vezes levaram à sua extinção completa.

 

Olhando para a longa história da Terra, descobrimos que seríamos incapazes de viver no nosso planeta durante a maior parte da sua existência. Os humanos anatomicamente modernos surgiram há menos de 400.000 anos; estamos presentes há menos de 0,01 por cento do tempo da história da Terra.

A única razão pela qual consideramos agora a Terra habitável é por causa da vasta e diversa biosfera que por centenas de milhões de anos evoluiu e moldou o nosso planeta na casa que conhecemos hoje. A nossa sobrevivência contínua depende da continuação do estado atual da Terra, sem quaisquer solavancos desagradáveis ​​ao longo do caminho. Somos formas de vida complexas com necessidades complexas. Somos totalmente dependentes de outros organismos para toda a nossa alimentação e para o próprio ar que respiramos. O colapso dos ecossistemas da Terra é o colapso dos nossos sistemas de suporte à vida. Replicar tudo o que a Terra nos oferece num outro planeta, em escalas de tempo de algumas vidas humanas, é simplesmente impossível.

 

Alguns argumentam que precisamos colonizar outros planetas para garantir o futuro da raça humana. Dentro de 5 biliões de anos, o nosso Sol, uma estrela de meia-idade, tornar-se-á uma gigante vermelha, aumentando de tamanho e possivelmente engolindo a Terra. Em 1 bilião de anos, prevê-se que o aquecimento gradual do nosso Sol fará com que os oceanos da Terra fervam. Embora isso certamente pareça preocupante, 1 bilião de anos é muito, muito tempo. Há um bilião de anos, as massas de terra da Terra formaram o supercontinente Rodínia, e a vida na Terra consistia em organismos unicelulares e pequenos multicelulares. Nenhuma planta ou animal ainda existia. Os vestígios mais antigos do Homo sapiens datam de 315.000 anos atrás, e 12.000 anos atrás todos os humanos viviam como caçadores-coletores.

 

A revolução industrial aconteceu há menos de 400 anos. Desde então, a atividade humana na queima de combustíveis fósseis tem mudado rapidamente o clima, ameaçando vidas humanas e danificando ecossistemas em todo o mundo. Sem uma ação rápida, prevê-se que as mudanças climáticas causadas pelo homem tenham consequências globais devastadoras nos próximos 50 anos. Esta é a crise iminente em que a humanidade se deve concentrar.

Se não podemos aprender a trabalhar dentro do sistema planetário com o qual evoluímos, como esperamos replicar esses processos profundos num outro planeta? Considerando como as civilizações humanas são diferentes hoje de 5.000 anos atrás, preocupar-se com um problema que os humanos podem ter que resolver num bilião de anos é simplesmente absurdo.

Relembremos ainda que muitas das atitudes proclamadas respeitantes à colonização do espaço são preocupantemente próximas das mesmas atitudes exploradoras que nos levaram à crise climática que enfrentamos agora.

 

A Terra é o lar que conhecemos e amamos graças à sua relação de biliões de anos com a vida. Assim como as pessoas são moldadas não apenas pela sua genética, mas também pela sua cultura e relacionamentos com os outros, os planetas são moldados pelos organismos vivos que surgem e prosperam neles. Com o tempo, a Terra foi dramaticamente transformada pela vida num mundo onde nós, humanos, podemos prosperar. A relação funciona nos dois sentidos: enquanto a vida molda o seu planeta, o planeta molda a sua vida. A Terra atual é o nosso sistema de suporte à vida e não podemos viver sem ela.

Em teoria, a razão porque os cientistas se interessam particularmente pelo estudo de Marte e outros planetas, é para tentarem perceber como é que a Terra e a vida na Terra se formaram e evoluíram. Ou seja, para melhor nos conhecermos. Esta busca não é feita com a intenção de escapar aos problemas que temos, pois sabemos bem que a Terra é a nossa única casa no cosmos.

Esta é a teoria bem-intencionada.

 

 

A 27 de setembro de 2016, o dono da SpaceX, Elon Musk, deu a conhecer no Congresso Internacional de Astronáutica em Guadalajara, os seus planos para o transporte e colonização de Marte.

Para além dos complicados problemas técnicos envolvidos nesta missão, e que são exclusivamente da responsabilidade da empresa que se propõe executá-la e que só a ela dizem respeito, há, no entanto, outros problemas que têm fortes implicações para o viver individual e coletivo da sociedade dos seres humanos.

Por exemplo: qualquer empresa privada pode enviar pessoas para Marte, construir habitações e começar uma nova sociedade, desde que siga as regras estabelecidas e acordadas  no Tratado do Espaço Exterior  (aprovado nas Nações Unidas em 1966, e que, entre outros, diz que  a exploração e o uso do espaço sideral serão realizados em benefício e no interesse de todos os países e serão da competência de toda a humanidade; o espaço exterior não está sujeito à apropriação nacional por reivindicação de soberania, por meio de uso ou ocupação, ou por qualquer outro meio; os Estados não devem colocar armas nucleares ou outras armas de destruição em massa em órbita ou em corpos celestes ou estacioná-los no espaço sideral de qualquer outra maneira; os Estados serão responsáveis ​​pelas atividades espaciais nacionais, sejam elas realizadas por entidades governamentais ou não governamentais; os Estados devem evitar a contaminação prejudicial do espaço e dos corpos celestes), mas, quem tem autoridade sobre elas? A que leis devem ficar sujeitas? Que tipo de governo local será implantado?

Sabemos que mesmo que o dono da empresa seja Musk, a colónia terá de ficar sujeita à jurisprudência americana, e isto porque ainda que a missão parta da Guiana Francesa ou do Cazaquistão, como a SpaceX é uma empresa americana, todo o transporte é feito numa nave americana. Tal como sucede atualmente no direito marítimo internacional, as leis que se aplicam aos navios em águas internacionais são as do país sob cuja bandeira navegam.

 

E quem dá autorização para colonizar o espaço, quando até para enviar um foguete para o espaço é necessária uma autorização governamental e, dependendo de que atividade se pretende desenvolver tem de se obter uma segunda ou terceira licença específica? Podem os governos concederem estas autorizações sem infringirem o estabelecido no Tratado Do Espaço Exterior?

 

E os procedimentos para evitar a contaminação dos locais a explorar serão seguidos ou continuarão a ficar ao critério do “gentleman’s agreement” como tem sido a prática corrente?  Que mecanismo têm os governos para obrigar as empresas que voem sob as suas bandeiras a não violarem os princípios da proteção planetária? 

 

E quais os procedimentos e processos para licenciamento para a mineração no espaço? Numa altura em que várias empresas se preparam para essa exploração, os governos pouco dizem ou fazem, o que acabará como sempre por serem considerados como “força de bloqueio” ao “desenvolvimento e progresso” por parte das empresas.

 

Não é, pois, de espantar que Musk, ao arrepio do que consta do Tratado do Espaço Exterior, tenha sugerido a utilização frequente de pequenas bombas atómicas na atmosfera de Marte para o tornar mais consentâneo para habitar por populações da Terra (as detonações aqueceriam o dióxido de carbono congelado existente transformando-o num gás capaz de capturar calor, criando um efeito de estufa).

Ou seja, não se trata já de ir apenas contra as forças de bloqueio que são os governos, mas contra as forças de bloqueio que são as organizações internacionais que a todos nos representam. E quando isso acontecer (está a acontecer) foi dado mais um passo em direção ao oeste longínquo tão ansiado:

O ´faroeste’ como ideal e espaço de liberdade para quem saiba manejar as pistolas”.

Esta é a realidade imposta.

 

 

 

 

Notas:

Aconselho a leitura do blog de 31 de julho de 2019, “O futuro da civilização humana”, o de 18 de setembro de 2019, “Beam me up!”, o de 8 de julho de 2020, “O futuro não precisa de nós”, e o de 11 de novembro de 2020, “Escapatórias sem escape”.

E ainda o blog de 21 de dezembro de 2016, “O ‘faroeste’ instalado”.

 

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