Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(438) Vida como simulação

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Não é inteligente acreditar completamente nos que nos enganam nem que seja uma só vez, Descartes.

 

A crença de que há uma hipótese significativa de um dia nos virmos a tornar pós-humanos que fazem simulações de antepassados é falsa, a menos que estejamos a viver atualmente numa simulação, Bostrom.

 

A probabilidade de estarmos a viver numa base real é de uma em biliões, E. Musk.

 

Problema: não há como verificar se estamos ou não a viver numa simulação.

 

 

 

Há aproximadamente dois mil e quatrocentos anos (476-221 a. C.), um texto chinês incluído numa coleção de alegorias, parábolas, paradoxos e fábulas, que se entendeu chamar de Zhuangzi (Senhor Zhuang), do nome do seu autor, descrevia um dos primeiros paradoxos do sonho, sobre a falsa dicotomia entre o sonhar e o estar acordado, em “O Sonho da Borboleta”:

 

Aconteceu que uma vez, Zhuang Zhou sonhou que era uma borboleta, uma borboleta que esvoaçava por cima de tudo, feliz consigo própria e fazendo o que lhe apetecia. Ela não sabia que era Zhuang Zhou.

Eis quando de repente acordou e verificou que ali estava ele, sem sombra de dúvida Zhuang Zhou que tinha sonhado que era uma borboleta, ou uma borboleta a sonhar que era Zhuang Zhou. Devia haver, contudo, uma distinção entre Zhuong Zhou e a borboleta! A isto chama-se a Transformação das Coisas.”

 

Também no século IV a. C., Platão vai abordar este tema da realidade ou aparência, na “Alegoria da Caverna” e no Teeteto, a que se seguiram semelhantes conceções de Aristóteles e outros. Muitos séculos depois, recorde-se o célebre “argumento do sonho” (1641)utilizado por Descartes nas Meditações sobre Filosofia Primeira para demonstrar que os nossos sentidos não podem ser tidos como confiáveis na sua totalidade para podermos distinguir entre a realidade e a ilusão.

E isto porque quando se está a sonhar, não damos conta de que estamos a sonhar. E em algumas raras ocasiões, o sonho pode estar contido dentro de outro sonho onde aparecemos como estando a ter um sonho, sendo isso apenas um sonho do qual não nos recordamos de estar a ter. Pelo que nunca se pode estar certo de não nos encontrarmos agora a sonhar ou imersos num estado de sonho perpétuo que não nos permita aperceber da realidade …

 

Tudo o que até agora fui levado a aceitar como sendo verdade vem dos meus sentidos. Mas verifiquei que ocasionalmente eles me enganam e, portanto, não é inteligente acreditar completamente nos que nos enganam nem que seja uma só vez.

 

 

Muitos e variados filósofos e cientistas têm-se debruçado sobre estes argumentos e contra-argumentos. Em 2001, o professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de Oxford, Nick Bostrom, publicou um estudo intitulado “Are You Living In A Computer Simullation?”, onde na sua “Sinopse” podemos ler:

 

Este estudo argumenta que pelo menos uma das seguintes proposições é verdadeira: (1) é muito provável que a espécie humana se extinga antes de atingir um estágio “pós-humano”; (2) é extremamente improvável que qualquer civilização pós-humana faça um número significativo de simulações de sua história evolutiva (ou variações dela); (3) quase de certeza estamos a viver numa simulação de computador. Segue-se que a crença de que há uma hipótese significativa de um dia nos virmos a tornar pós-humanos que fazem simulações de antepassados é falsa, a menos que estejamos a viver atualmente numa simulação. Uma série de outras consequências desse resultado são também discutidas.”

 

E na sua “Introdução” explica:

 

 “Muitas obras de ficção científica, bem como algumas previsões de tecnólogos e futurólogos sérios, preveem que no futuro estarão disponíveis enormes quantidades de poder computacional. Suponhamos por um momento que essas previsões estejam corretas. Uma coisa que as gerações futuras podem fazer com esses computadores superpoderosos é correr (run) simulações detalhadas dos seus antepassados ​​ou de pessoas como os seus antepassados. Como os computadores seriam então tão poderosos, eles poderiam correr muitas dessas simulações. Suponha que essas pessoas simuladas estejam conscientes (como estariam se as simulações fossem suficientemente refinadas e se uma certa posição amplamente aceite na filosofia da mente fosse certa). Pode acontecer que a grande maioria das mentes como a nossa não pertença à raça original, mas sim a pessoas simuladas pelos descendentes avançados de uma raça original. É então possível argumentar que, se fosse esse o caso, seria racional pensar que provavelmente estamos entre as mentes simuladas e não entre as mentes biológicas originais. Portanto, se não pensarmos que estamos a viver atualmente numa simulação de computador, não temos o direito de acreditar que teremos descendentes que farão correr muitas dessas simulações dos seus antepassados. Essa é a ideia básica. O restante deste artigo explicará isso com mais cuidado. […]”

 

E, após várias páginas com cálculos matemáticos, dá-nos a “Conclusão”:

 

Uma civilização “pós-humana” tecnologicamente madura teria um enorme poder computacional. Com base nesse facto empírico, o argumento da simulação mostra que pelo menos uma das seguintes proposições é verdadeira: (1) A fração de civilizações de nível humano que atingem um estágio pós-humano é muito próxima de zero; (2) A fração de civilizações pós-humanas que estão interessadas em executar simulações de ancestrais é muito próxima de zero; (3) A fração de todas as pessoas com o nosso tipo de experiências que vivem numa simulação é muito próxima de um.

Se (1) for verdadeiro, quase certamente seremos extintos antes de chegarmos à pós-humanidade. Se (2) for verdadeiro, então deve haver uma forte convergência entre os percursos das civilizações avançadas, de modo que praticamente nenhuma contenha indivíduos relativamente ricos que desejem executar simulações sobre antepassados e sejam livres para fazê-lo. E se (3) for verdadeiro, quase certamente vivemos numa simulação. Na floresta escura de nossa ignorância atual, parece sensato distribuir a credibilidade de alguém mais ou menos uniformemente entre (1), (2) e (3).

A menos que agora vivamos numa simulação, os nossos descendentes quase certamente nunca porão a correr uma simulação dos antepassados.

 

Transcorridos pouco mais de vinte anos desde que Bostrom publicou este estudo (que também originou o aparecimento do conceito, filosofia e crença do pós-humanismo), parte relativamente importante da humanidade acredita de facto na possibilidade de estarmos a viver numa simulação de computador: desde os adoradores da saga do The Matrix até ao super empreendedor Elon Musk (vale a pena ver e ouvir a sua conferência no YouTube, subordinada ao tema “Is life a video game?” em que conclui que A probabilidade de estarmos a viver numa base real é de uma em biliões”), até a vários cientistas de conceituadas Universidades que demonstram matematicamente que, na melhor das hipóteses, a probabilidade de estarmos a viver numa base real é quase a mesma que a probabilidade de estarmos a viver numa simulação, ou seja: a probabilidade é de cinquenta por cento. O mesmo que atirar a moeda ao ar.

 

 O problema é que não há como se verificar se estamos ou não a viver numa simulação. Pelo que nos resta recorrer ao velho princípio da parcimónia atribuído a William of Ockham, filósofo e teólogo do século XIV, que nos diz que na falta de outra evidência, a explicação mais simples é que deve ser a correta. Neste caso, perante as complicadas e elaboradas explicações que acabam por não nos conseguirem garantir se estamos ou não a viver dentro de uma simulação, então devemos aceitar como correta a explicação mais simples e natural: a de que vivemos num mundo real.

 

É por isso que, convenientemente e incongruentemente (ai! os contratos para a exploração do espaço, ai! os contratos com a Defesa), o empreendedor-mor Musk, que afirma sem rebuço que estamos a viver numa simulação apesar da pequenina dúvida (“um para biliões”) que admite que possa ter, lá vai explorando a rapaziada do mundo real que lhe dá os dólares reais em tal quantidade que lhe permite até dizer (e convencer-nos) que eles não são deste mundo real (aquela velha teoria da separação de poderes, “A césar o que é de César”). Nova Religião prometida, novo conto do vigário, o velho real de sempre vestido de novo.

 

 

Nota:  Vermes com 46.000 anos de permanência no permafrost num estado de “vida suspensa”, foram “descongelados” regressando à sua vida normal.  Regressados à vida, será que aprenderam alguma coisa com a suspensão de 46.000 anos?

Sobre as novas religiões e os novos Messias, aconselho a leitura do blog de 30 de dezembro de 2015, “A rãzinha e a andorinha”.

Nota: Sobre Bostrom, transumanismo, tecno gnose, bioengenharia e outros, aconselho o blog de 7 de agosto de 2019, “Pré-viventes ou pré-sobreviventes?

 

 

2 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub