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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(432) Sociedade sem chefes

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

As sociedades, sobretudo em situações de emergência, necessitem de uma figura que represente a autoridade.

 

Os gregos antigos socorriam-se de um método de escolha para as funções políticas pela seleção “à sorte” de um grupo de pessoas.

 

Os estados de intensa participação da democracia direta não duram e o cansaço acaba por se instalar.

 

Quando o amo desaparece, é substituído pelo chefe, pelo seu autoritarismo, e tarde ou cedo tudo isto acaba em fascismo, Roudinesco.

 

 

 

 

 

A obediência (blog de 30 de março de 2016) é o processo através do qual uma pessoa se vê a si própria como um instrumento para realizar os desejos de outra pessoa, e é isto que faz com que ela não se considere como sendo responsável pelas ações resultantes e por si praticadas. Uma vez feita esta pequena alteração (mas grande pelas consequências) de ponto de vista, seguir-se-ão todas as outras características essenciais da obediência, que fazem dela o cimento que liga os homens aos sistemas de autoridade.

Para Hobbes (1588-1679), esta obediência à autoridade era até encarada como uma virtude sem a qual não teria sido possível a existência da sociedade humana, pelo que mesmo quando os atos prescritos pela autoridade fossem diabólicos, era preferível acompanhá-los a fim de não se pôr em risco a estrutura da autoridade, pilar da sociedade.

A ser assim, não é de admirar que as sociedades, sobretudo em situações de emergência, necessitem de uma figura que represente a autoridade, um chefe, um amo. Como tem acontecido.

É, por exemplo, o caso de Margaret Thatcher quando aplicou inabalavelmente e sem vacilações o seu plano de liberalismo económico que ao princípio foi tido como lunático (recentemente a Tuss bem tentou, mas era uma imitação, não era o chefe) até acabar por ele se tornar aceite como um caminho económico normal.

E Thatcher sabia perfeitamente o que estava a fazer, porque quando lhe perguntaram sobre qual teria sido a sua maior conquista, disse: “O novo trabalhismo” (The new Labour). E tinha toda a razão, porquanto o seu triunfo foi os seus inimigos políticos adotarem as suas políticas económicas básicas. Como nota Zizek:

 

O verdadeiro triunfo não é a nossa vitória sobre o inimigo, mas antes que este comece a utilizar a nossa própria linguagem por forma a que as nossas ideias tenham imposto as regras de todo o campo de jogo”.

 

Sabe-se, desde há muito, que estas formas autoritárias de liderança, particularmente quando apropriadas por pessoas com personalidades perigosas, podem conduzir a ditaduras incontroláveis.

Cientes disso, os gregos antigos socorriam-se de um método de escolha para as funções políticas através da seleção “à sorte” de um grupo de pessoas. Assim, conseguiam assegurar que pessoas comuns estivessem representadas no governo, precavendo-se ainda (julgavam eles) contra a corrupção e roubo.

Para minorarem o risco de entregarem a responsabilidade a incompetentes, garantiam que as decisões fossem tomadas por grupos. Diferentes membros do grupo eram responsáveis por áreas diferentes, verificando assim as ações e comportamentos de cada um dos outros.

Para as decisões mais importantes, como no caso de se decidir ir para a guerra ou da escolha dos chefes militares ou da eleição dos magistrados, tal só era feito em assembleias magnas (Ekklësia) com milhares de participantes (exceto os do costume: mulheres, escravos, baixas posses, etc.).

Tinham ainda um outro mecanismo de proteção contra os recalcitrantes ou os que apresentavam perigo de corromper o sistema: a assembleia reunia-se anualmente para deliberar sobre a sua expulsão (ostracismo) da cidade por dez anos.

 

Face aos tempos que correm em que a democracia representativa, com o seu ritual eleitoral em que só de quatro em quatro anos se interrompe a passividade dos votantes, se mostra incapaz de resolver os problemas da sociedade, são muitos os que, conhecedores dessa solução grega, anseiam por instituir uma autogestão direta, em que a intensa participação coletiva das comunidades locais debatem e decidem sem intermediários e sem líder que os guie.

Acontece que esses estados de intensa participação não duram e o cansaço acaba por se instalar. E isto porque a grande maioria quer ser passiva, quer confiar num aparelho estatal que garanta o perfeito funcionamento de todo o edifício social, para assim continuar a prosseguir trabalhando em paz.

Vimos isso em todas as revoluções coloridas contemporâneas, e mesmo nas passadas, onde, por exemplo a mais importante acabou num partido leninista centralizado com um líder.

Contudo, ainda hoje temos um exemplo interessante da aplicação da democracia direta que é o da Suíça, com os seus múltiplos referendos, iniciativas populares locais, etc., mas onde juntamente com cada papel de voto distribuído onde o cidadão irá escrever a sua decisão é entregue um folheto onde o governo sugere o seu sentido de voto.

É assim que por exemplo, por esse sistema de voto de democracia direta as mulheres só tiveram direito de voto a partir de 1971 (e isto só em alguns Cantões), a construção de minaretes é proibida, bem como a nacionalização de trabalhadores imigrantes, etc.

Além de que, para as grandes decisões estratégicas esse sistema referendário local não é tido em consideração, porquanto elas são tomadas por uma assembleia que escapa ao debate e ao controle públicos. Evidentemente.

 

Apesar disto, ultimamente têm aparecido pensadores que continuam a acreditar na validade da forma da democracia direta usada na Grécia Antiga, sugerindo alternativas. Note-se que o sistema de tirar à sorte ainda hoje continua a ser parcialmente usado, como por exemplo na escolha dos jurados para os julgamentos nos tribunais.

Já outros pensadores, como é o caso de Alain Badiou e Elisabeth Roudinesco (“Appel aux psychoanalystes. Entretien avec Éric Aeschimann”), entendem que um sujeito necessita sempre de um Amo para se elevar acima do “animal humano”:

 

“ROUDINESCO: Como último recurso, o que se perdeu nas sociedades psicanalíticas foi a posição do Amo em proveito da posição dos chefinhos.

AESCHIMANN: O que quer dizer com “amo”?

ROUDINESCO: A posição do amo permite a transferência: o psicanalista “supõe-se que sabe” o que o analisado descobrirá. Sem este saber atribuído ao psicanalista, a procura da origem do sofrimento é quase impossível.

AESCHIMANN: Temos mesmo que passar pela reinstauração do amo?

BADIOU: O amo é o que ajuda o indivíduo a converter-se em sujeito. Quer dizer, se se se admite que o sujeito emerge da tensão entre o indivíduo e a universalidade, é então evidente que o indivíduo necessita de uma mediação, e, portanto, de uma autoridade, para poder avançar por esse caminho. A crise do amo é uma consequência lógica da crise do sujeito, e o psicanalista não escapa a isso. Há que renovar a posição do amo; não é certo que se possa passar sem ele, especialmente na perspetiva da emancipação.

ROUDINESCO: Quando o amo desaparece, é substituído pelo chefe, pelo seu autoritarismo, e tarde ou cedo tudo isto acaba em fascismo. Desgraçadamente, a história tem-lo demonstrado.”

 

Ou seja, para se conseguir despertar as pessoas do seu dogmático “adormecimento democrático”, da sua consciência cega nas formas institucionalizadas da democracia representativa, os chamamentos de uma organização autónoma direta não são suficientes: torna-se necessária uma nova figura do Amo.

 

 

Adenda:

 

Incluo duas passagens do blog referido logo no começo sobre “obediência”:

 

“Depois das suas famosas e controversas experiências sobre a indução no comportamento humano, e após ter lido as transcrições do episódio de My Lai e do julgamento de Eichmann, Stanley Milgram vai retirar algumas conclusões, publicadas no seu livro Obedience to Authority:

 

#. “Aparece sempre um conjunto de pessoas que faz o seu trabalho de forma meramente administrativa, sem qualquer consideração de ordem moral.”

#. “As ações praticadas são quase sempre justificadas com finalidades construtivas, à luz de um interesse maior ideológico. Na Alemanha, até mesmo para aqueles que se identificaram com a “solução final”, a destruição de judeus era encarada como um processo “higiénico” para eliminar “ervas daninhas”.”

#. “A obediência nunca levantava qualquer problema relacionado com a moral ou filosofia. Ela era relacionada com a envolvente maior das relações sociais, das aspirações de carreira, e das técnicas da rotina a aplicar.”

#. “Cada indivíduo possui, em maior ou menor grau, uma consciência que pode servir de barreira aos impulsos destrutivos dos outros. Mas, assim que uma pessoa se integra na estrutura de uma organização, perde parte dessas suas limitações de moralidade individual a favor das sanções da autoridade.”

#. “Mesmo em regimes democráticos, uma grande percentagem de pessoas faz aquilo que lhes dizem para fazer, sem grandes preocupações sobre o ato a cometer, sem grandes limitações de consciência, desde que percebam que a ordem venha de uma autoridade legítima.”

 

Considere-se ainda o que George Orwell escreveu sobre os ataques aéreos às cidades inglesas perpetrados pelos alemães:

 

 “Enquanto escrevo, seres humanos altamente civilizados sobrevoam a minha casa, tentando matar-me. Eles não sentem qualquer animosidade contra mim como indivíduo, nem eu contra eles. Eles estão apenas a “fazerem o seu dever”, como se diz. A maior parte deles, não o duvido, são boas pessoas obedientes à lei, que nunca pensariam em cometer um assassinato em toda a sua vida. Por outro lado, se um deles conseguisse com uma bomba bem colocada desfazer-me aos bocados, não seria por isso que deixaria de dormir tranquilamente.”

 

 

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