(429) A importância do indivíduo na História: Lenine e a Ucrânia
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Quando em junho de 1973, Luis Carrero Blanco é nomeado por Franco primeiro-ministro de Espanha, tudo indicava que a sucessão estava assegurada e o regime ditatorial franquista estava garantido.
A 21 de janeiro de 1924, Lenine morre. Ia fazer 54 anos. Durante a sua vida sofreu vários atentados, o mais grave dos quais ocorreu a 30 de agosto de 1918, quando Fanny Kaplan o atingiu com três tiros de pistola, perfurando-lhe o pulmão esquerdo.
Os povos da Rússia têm direito á autodeterminação, á secessão e á formação de um estado separado, Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia de 2 de novembro de 2017.
O animal arranca o chicote das mãos do mestre e vergasta-se a si mesmo para se tornar mestre, sem saber que isso não passa de uma fantasia produzida por mais um nó no flagelo do mestre, Kafka.
Uma das dificuldades da teoria marxista da história tem que ver com o valor que é atribuído à importância da participação do indivíduo face à sociedade. Valor que pode influenciar o comportamento da sociedade ou é por ela influenciado, tanto pela sua participação como pela sua não participação. De certa forma, a sua única explicação continua a ser hegeliana ao evocar uma necessidade retroativa: depois de o acontecimento ter tido lugar, ele torna-se necessário. “Déjà vu”.
Quando em junho de 1973, Luis Carrero Blanco é nomeado por Franco como primeiro-ministro de Espanha, tudo indicava que a sucessão estava assegurada e o regime ditatorial franquista estava garantido.
Mas eis que a 20 de dezembro de 1973, quando Carrero Blanco que vinha da missa, passava no seu carro blindado pela Calle de Serrano, explodiu uma potente bomba, matando-o. Porque foi escolhido Carrero Blanco como alvo? Segundo declararam mais tarde os bombistas que conduziram esta operação (Operação Ogro), porque “[…] ele tornara-se no elemento chave do sistema, sendo uma peça fundamental do jogo político da oligarquia. Por outro lado, ele tornara-se também insubstituível no regime pela sua experiência e capacidade para manobrar e porque mais ninguém a não ser ele conseguiria manter o equilíbrio interno do Franquismo”.
Sucedeu-lhe como primeiro-ministro Carlos Arias Navarro, que, sem o acordo dos Falangistas fiéis, entendeu liberalizar o regime e incluir o direito á formação de associações políticas.
Ou seja, não fosse o assassinato de Carrero Blanco e provavelmente o regime franquista ainda hoje seria dominante em Espanha.
Quando o governo alemão, que se encontrava na altura (abril de 1917) em guerra com a Rússia, autorizou a passagem pelo seu território de um comboio pretensamente selado vindo da Suíça, onde seguiam Vladimir Lenine e mais 31 opositores políticos russos, em direção à Dinamarca, Suécia e Finlândia, tendo como destino final Petrogrado na Rússia, julgava com isso poder estar a contribuir para abreviar o fim da guerra, dadas as posições antiguerra daqueles conhecidos revolucionários (o que de facto veio a acontecer em 1918com o Tratado de Brest-Litovsk).
Na altura, já o Czar Nicolau II tinha abdicado e o Império convertido na República Russa. Chegado a Petrogrado, Lenine assume o controle dos Bolcheviques. A 25 de outubro de 1917 dá-se a chamada Revolução de Outubro com a posterior tomada de poder pelos bolcheviques.
Da sua governação imediata, são dignos de nota o decreto de limitação do tempo de trabalho a oito horas diárias para toda a Rússia; o decreto sobre Educação Popular que garantia a educação secular gratuita a todas as crianças e o início de campanhas de alfabetização; o decreto sobre a igualdade dos sexos, propiciando autonomia económica às mulheres, livre acesso ao divórcio, e legalização do aborto até ao fim dos primeiros três meses; o decreto da separação da igreja e do estado, e a proibição do ensino religioso nas escolas.
Logo a 2 de novembro de 2017, é publicada a importante Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia que concedia liberdade de escolha a todos os territórios e nações que faziam parte do Império. Nela se proclamava a igualdade e soberania de todos os povos da Rússia; o direito dos povos da Rússia a uma livre autodeterminação, secessão e formação de um estado separado; a abolição de todos os privilégios nacionais e religiosos ou quaisquer restrições; e ao desenvolvimento de minorias nacionais e grupos etnográficos dentro do território da Rússia.
Não se deve esquecer que o Império herdado compreendia a Finlândia, Lituânia, Ucrânia, Moldova, Estónia, Bielorrússia, Polónia, Transcaucásia, etc.
É devido a essa Declaração dos Direitos que se pode afirmar que a idade de ouro da identidade nacional da Ucrânia não teve lugar debaixo da Rússia czarista, mas sim na primeira década da União Soviética.
Eis o que a Wikipedia diz sobre essa década na Ucrânia:
“A revolução que levou ao poder o Partido Socialista devastou a Ucrânia, deixando mais de 1,5 milhões de mortos e centenas de milhar de pessoas sem casa; para além disso, a Ucrânia soviética teve de se enfrentar com a fome de 1921. Vendo a sociedade exausta, o governo soviético continuou a ser muito flexível durante a década de 1920. Assim, a cultura nacional e o idioma ucraniano desfrutaram de um renascimento, já que a “ucranização” se converteu numa aplicação local da política soviética da “indigenização”. Os bolcheviques também se comprometeram a focar a atenção na saúde, na educação e na segurança social, bem como no direito ao trabalho e na habitação. Os direitos da mulher incrementaram-se consideravelmente através das novas leis que pretendiam eliminar as desigualdades sociais. A maioria destas políticas foram bruscamente suprimidas nos inícios da década de 1930, após José Estaline ter começado gradualmente a consolidar o seu poder até se tornar no chefe do Partido Comunista e do ditador, de facto, da União Soviética”.
Em que se baseava essa política de “indigenização” seguida nesses primeiros anos soviéticos?
Relembremos o que Lenine escreveu nas suas Teses relativamente ao direito de autodeterminação das nações (“The Socialist Revolution and the Right of Nation to Self-Determination”):
“O proletariado não pode deixar de se rebelar contra o facto de as nações oprimidas serem retidas pela força a permanecerem dentro dos limites de um determinado estado, e é isto que significa exatamente a luta pela autodeterminação. O proletariado deve exigir o direito a uma secessão política para as colónias e para as nações que a “sua própria nação oprime”. E se não o faz, então o internacionalismo proletário converter-se-á numa expressão sem sentido; a confiança mútua e a solidariedade de classe dos trabalhadores das nações opressoras e oprimidas será impossível.”
Esta foi a posição que Lenine sempre manteve. Recorde-se o seu desentendimento com Rosa Luxemburgo que defendia que se devia apenas conceder soberania plena ás pequenas nações onde as forças progressistas predominavam no estado. Para Lenine, o direito à secessão era incondicional, mesmo nos casos em que os adversários tomassem conta do poder do estado.
É isto que o faz também entrar em colisão com o projeto de Estaline sobre a formação de uma União Soviética centralizada, defendendo antes o direito incondicional das nações à secessão (como era nessa altura o caso da Geórgia), advogando a soberania plena das entidades nacionais que faziam parte do estado soviético, o que levou mesmo Estaline a enviar uma carta ao Politburo a 27 de setembro de 1922, onde acusava Lenine de “liberalismo nacional”. Para Estaline, devia-se proclamar de imediato o governo da Rússia soviética como o governo das outras cinco repúblicas (Ucrânia, Bielorrússia, Azerbaijão e Geórgia.
Nesses tempos iniciais difíceis que incluíam a brutalidade guerra civil (onde não se pode negligenciar a especial bestialidade do contrarrevolucionário Exército Branco, para o que basta citar o que o isento Christopher Hitchens escreveu em Arguably: “O general de divisão William Graves, que comandava a Força Expedicionária dos Estados Unidos durante a invasão da Sibéria em 1918 (acontecimento completamente eliminado de todos os livros de texto americanos) comentou nas suas memórias o antissemitismo dominante e letal que imperava na ala direita russa, acrescentando: “Duvido que a história nos mostre mais algum país no mundo em que nos últimos cinquenta anos se tenham cometido assassinatos com maior impunidade, com menos perigo de receber qualquer castigo, que na Sibéria durante a ditadura de Kolchak” […] [para Hitchens] a palavra mais habitual para se referir ao fascismo deveria ter sido russa e não italiana”), a falência da Revolução Socialista Mundial, a construção do socialismo num só país, as linhas de divisão dentro dos bolcheviques foram aparecendo.
Atente-se o que se diz no Relatório Político do Comité Central de 27 de março de 2022, especialmente no que se refere à Nova Política Económica proposta por Lenine:
“Os capitalistas estão a trabalhar ao nosso lado. Estão a trabalhar como ladrões, fazem lucro; mas sabem fazer as coisas. […] Ao longo do ano que passou, demonstrámos muito claramente que não somos capazes de gerir a economia. Essa é a lição fundamental. Ou provamos o contrário no ano que se segue, ou o poder soviético não poderá existir.
[…] Temos poder político mais do que suficiente […] Então, o que falta? Obviamente, o que falta é cultura na camada de comunistas que desempenham funções administrativas […] Qualquer vendedor formado numa grande empresa capitalista sabe resolver uma questão dessas; mas 99 comunistas responsáveis em cada 100 não sabem. E recusam-se a compreender que não sabem que têm de aprender o bê-á-bá deste negócio.
[…] A caraterística principal é não termos as pessoas certas para os lugares certos; é terem sido atribuídas a comunistas responsáveis que combateram magnificamente durante a revolução, funções comerciais e industriais das quais nada sabem; é estarem a impedirem-nos de encarar a verdade, pois os malfeitores e os vigaristas escondem-se magnificamente por trás das suas costas.
[…] Aquilo que o camponês conhece e a que está habituado é ao mercado e ao comércio. Não fomos capazes de introduzir a distribuição direta comunista. Faltaram-nos fábricas e o equipamento para o fazer. Assim sendo temos de dar aos camponeses aquilo que eles precisam através do comércio, e temos de o fazer tão bem quanto os capitalistas o fizeram.
[…] A ideia de construir a sociedade comunista exclusivamente com mãos comunistas é infantil, absolutamente infantil. Nós, comunistas, não passamos de uma gota de água no oceano, uma gota no oceano do povo.
E no discurso de Encerramento do Relatório Político do Comité Central de 28 de março de 2022:
[…] Num congresso de comunistas, aprovámos uma decisão para que o capitalismo de Estado fosse permitido pelo Estado proletário, e nós somos esse Estado […] o capitalismo de estado é a forma de capitalismo mais inesperada e imprevisível pois ninguém poderia prever que o proletariado chegasse ao poder num dos países menos desenvolvidos, e começaria por tentar organizar a produção em grande escala e a distribuição para o campesinato, e, depois, vendo-se incapaz de cumprir essa tarefa, devido ao baixo nível de cultura, aceitasse os serviços do capitalismo. Ninguém alguma vez o previu, mas é um facto incontornável.”
A 24 de dezembro de 1922, sentindo a morte aproximar-se, Lenine envia uma carta ao Congresso onde, a propósito da preocupação com a estabilidade do regime, diz:
“[…] os principais fatores na questão da estabilidade são membros do Comité Central como Estaline e Trotsky. Penso que as relações entre eles constituem a maior parte do perigo de uma cisão […] O camarada Estaline, agora secretário-geral, concentra nas suas mãos uma autoridade ilimitada, e não tenho a certeza se ele será sempre capaz de usar essa autoridade com suficiente cautela. O camarada Trotsky, por seu lado, […] distingue-se não só pela sua competência […] mas tem revelado um excesso de autoconfiança e um excesso de precaução com os aspetos puramente administrativos do trabalho.”
E, numa adenda de 4 de janeiro de 1923 posterior à carta:
“Estaline é demasiado mal-educado, e este defeito, embora seja perfeitamente tolerável entre nós e no trato entre nós […] torna-se intolerável num secretário-geral. É por isso que sugiro que os camaradas considerem uma maneira de afastar Estaline dessa função e indicar para o seu lugar, alguém que seja em todos os aspetos diferente do camarada Estaline […]”
A 21 de janeiro de 1924, Lenine morre. Ia fazer 54 anos. Durante a sua vida sofreu vários atentados, o mais grave dos quais ocorreu a 30 de agosto de 1918, quando Fanny Kaplan o atinge com três tiros de pistola, perfurando-lhe o pulmão esquerdo. Lenine sobreviveu, mas a sua saúde nunca mais recuperou do ataque, atribuindo-se a sua posterior incapacitação e causa de morte a esses tiros.
O transcurso dos acontecimentos vividos nesses tempos na parte oriental da Europa e setentrional da Ásia, podem encaixar perfeitamente numa frase interpretativa de Kafka, quando escreve:
“O animal arranca o chicote das mãos do mestre e vergasta-se a si mesmo para se tornar mestre, sem saber que isso não passa de uma fantasia produzida por mais um nó no flagelo do mestre”.