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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(426) O espetáculo da sociedade

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção anuncia-se como uma imensa acumulação de espetáculos, Guy Debord.

 

Os grandes espetáculos de beneficência não são para angariar fundos para as crianças com cancro ou para as vítimas de uma inundação, mas apenas para que as pessoas, nós, acreditemos estar a fazer algo de bom e mostrando solidariedade.

 

“Venha o diabo e escolha”, “Quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão”.

 

“Deixem-nos trabalhar!”

 

 

 

 

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção anuncia-se como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido, afastou-se numa representação”, é assim que começa o ensaio de Guy Debord de 1967, A Sociedade do espectáculo.

Menorizado por alguns por se tratar de um filósofo assumidamente marxista (note-se a semelhança com a primeira frase com que Marx inicia O Capital: “A riqueza das sociedades nas quais reina o modo de produção capitalista anuncia-se como uma imensa acumulação de mercadorias.”), o facto é que as suas análises, intelectualmente corretas ou não, têm vindo a ser confirmadas pela história.

 

A 10 de dezembro de 2013, quando a cerimónia do funeral de Nelson Mandela estava a ser transmitida para todo o mundo, encontrando-se presentes todos aqueles ditos grandes “altos dignatários”, que se iam sucedendo nas suas apropriadas alocuções, escutadas ao vivo por dezenas de milhar de pessoas presentes no estádio onde decorria a cerimónia, podia-se ver que ao  lado de Barack Obama, figurava de pé um africano negro, o intérprete para surdos da emissão de televisão transmitida para milhões por esse mundo fora.

Os que conheciam minimamente a linguagem gestual, deram-se conta que algo estava errado, porquanto os gestos do tradutor nada tinham que ver com o que estava a ser dito, e mais, os signos estavam a ser inventados e não tinham qualquer significado.

O comunicado oficial que se lhe seguiu, indicava que Thamsanqa Jantjie, de trinta e quatro anos, era um intérprete qualificado contratado pelo Congresso Nacional Africano. Numa entrevista dada ao Star de Joanesburgo, Jantjie atribuiu o seu comportamento a um súbito ataque de esquizofrenia, doença para a qual andava em tratamento. Na ocasião, todos aqueles gestos absurdos tinham que ver com isso: não se podia concentrar, começou a ouvir vozes e a ter alucinações. Apesar disso, Jantjie estava satisfeito com o trabalho que fizera: “Absolutamente! Creio que fui um campeão da linguagem gestual.”

No dia seguinte a imprensa descobriu que Jantjie tinha já sido preso pelo menos cinco vezes desde meados da década de noventa, escapando sempre à sentença com a invocação de não estar mentalmente capacitado para ser processado. As acusações referiam-se a violação, roubo, morada incorreta, prejuízos premeditados em propriedade e, finalmente em 2003, intenção de assassinar e sequestro.

As reações que se seguiram a este estranho episódio, foram de gargalhadas a indignação. Para além, evidentemente, do problema da segurança: como era possível, apesar das extremas medidas de segurança, que uma pessoa assim pudesse ter estado tão perto dos líderes mundiais?

A incredulidade de que tal teria sido possível levaram, inclusive, ao aparecimento das teorias sobre “milagre”, como se ele tivesse surgido do nada ou de outra dimensão. As próprias organizações de surdos-mudos, ao virem dizer que os sinais que Jantjie executara não significavam nada, não correspondiam a nenhuma linguagem de surdos existente conhecida, abriram a possibilidade que Jantjie estivesse a utilizar uma linguagem desconhecida, talvez para alienígenas. Além do mais, Jantjie permanecera a maior parte do tempo imóvel, só traduzindo os oradores que pronunciaram breves alocuções que se pareciam muito entre si, e fazia-o de forma muito tranquila e exata como que repetindo:

Este orador está simplesmente a repetir o patético e habitual blá blá, não vale a pena traduzir os detalhes.”

Os seus movimentos, com uma calma inexpressiva e robótica, pareciam mesmo indicar isso.

 

No entanto, se virmos bem, ao não transmitir nenhum significado concreto, a atuação de Jantjie não foi assim tão absurda porque ela traduziu o significado do que se estava a passar, o simulacro do significado.

Todos nós os que podemos ouvir e que não compreendemos a linguagem gestual, assumimos que os gestos de Jantjie significavam algo, apesar de não os conseguirmos compreender. Mas, será que na realidade os tradutores da linguagem gestual estão lá para traduzir para os que não podem ouvir a linguagem falada? Não estarão lá antes para nós, para que nos sintamos bem ao ver o interprete para surdos junto ao orador, proporcionando-nos assim a satisfação politicamente correta de que o que estamos a fazer é correto, prestando atenção aos desfavorecidos? Tal como acontece com os grandes espetáculos de beneficência que na realidade não são para angariar fundos para as crianças com cancro ou para as vítimas de uma inundação, mas apenas para que as pessoas, nós, acreditemos estar a fazer algo de bom e mostrando solidariedade.

Essa era para nós, os que não entendíamos a linguagem gestual, a verdadeira razão para a presença do tradutor ali: para nos sentirmos bem. Aliás, o mesmo se poderia dizer da cerimónia funerária de Mandela. Todas as lágrimas de crocodilo dos dignatários não passavam de um exercício de celebração de si mesmos, e Jantjie traduziu-as corretamente pelo que elas eram: um sem sentido.

O que os líderes mundiais ali celebravam era terem conseguido adiar a crise autêntica que acabaria por os atingir quando os sul-africanos negros que continuavam a sofrer privações se convertessem num agente político coletivo. Era para essas multidões negras e pobres que eram o Ausente para quem Jantjie gesticulava a mensagem: “para estes dignatários vocês não têm qualquer importância”.

 

 

Nada que seja novo. Nada que os nossos mandantes, visíveis ou encobertos, não tenham há muito utilizado, para seu proveito e nosso gáudio. Lembremos o “pão e circo” dos romanos, o nosso “papas, bolos, e tolos”, e muitos outros entretenimentos em que já nem não nos dão de comer, mas apenas espetáculo que papamos e pagamos. A verdadeira comida será para outros.

 

Durante o fim de semana de 19 a 21 de maio reuniu-se em Lisboa, Portugal, o grupo de Bilderberg pela 69ª vez. Para além, evidentemente, do Secretário Geral da NATO e do ministro dos negócios estrangeiros da Ucrânia, contam-se mais três primeiros ministros, dois vices, o presidente do parlamento europeu, o presidente do Eurogrupo, o vice-presidente da Comissão Europeia, dois comissários europeus, ministros europeus e um membro da Câmara dos Lordes (que por acaso também faz parte do conselho de administração da Chevron), os presidentes da Total, da BP e da Galp, os presidentes da Merck e da Pfizer, bem como um diretor da AstraZeneca, o presidente da BASF e um membro do conselho da Coca-Cola; o presidente do Banco Santander, e do Goldman Sachs, bem como alguns notórios inversores de risco e de ocasião; e ainda os CEO da DeepMind, da Microsoft, da OpenAI e da Google. Enviados por Biden, o diretor da national intelligence, o diretor do planeamento estratégico no conselho nacional de segurança, e outros estrategas onde se inclui o diretor da Cybersecurity and Infrastructure Security Agency e o conselheiro sénior para a China no ministério do Comércio.

 E muitos mais membros permanentes que escuso de citar, porquanto apesar da reunião ser blindada à comunicação social, basta conhecer a listagem dos convidados para se intuir sobre o que se vai apresentar, discutir, resolver e seguir: acima de tudo a manutenção da ordem estabelecida, as ameaças postas pela China e a IA, a fragmentação da Rússia e a guerra na Ucrânia, o fim do estado social e a submissão da Europa.

O importante é o como se irá fazer. Ouçamos o que alguns desses participantes mais importantes têm vindo recentemente a dizer. Tomemos o exemplo do que na sua audição perante o Congresso americano disse Eric Schmidt, recente ex-presidente da Google: [a IA] “estava no centro da competição ente a China e os EUA […] A China está atualmente a dedicar um enorme conjunto de recursos com vista a ultrapassar os EUA no campo das tecnologias, em particular na IA.”

Segundo ele, havia riscos existenciais na utilização da IA, avisando que “as coisas podem ser piores do que se diz”, rejeitando, no entanto, o conselho daqueles que pedem uma moratória de seis meses no desenvolvimento da IA porque tal iria “simplesmente beneficiar a China”.

Ou seja, temos de continuar a desenvolver algo que nos pode vir a destruir antes que a China consiga desenvolver isso que nos pode vir a destruir.

Diz a sabedoria popular: “Venha o diabo e escolha”, “Quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão”.

 

Mas, para nosso descanso, Schmidt, preocupado com a expansão sem controle da IA, apressa-se a dizer que ela tem de ser “convenientemente baiada”, mas tal só poderá ser feito pelas próprias empresas de IA através de autorregulação porque “não há qualquer hipótese para uma pessoa que não pertença à indústria de perceber o que é possível”.

Ou seja … “Deixem-nos trabalhar!

 

 

 

Nota: a interpretação sobre o significado dos gestos de Jantjie é de Slavoj Zizek no seu ensaio, “Prognosis «Un faux-filet, peut-être»”, contido no Trouble in Paradise.

 

 

 

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