(423) Olhares sobre a história, olhares da história
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“E necessário separar o bom do que não serve para nada”, justificação de Séneca para a exposição ou afogamento de crianças deficientes.
A contraceção, o aborto, a exposição das crianças de nascimento livre e o infanticídio do filho de um escravo eram práticas usuais e perfeitamente legais, naquela época, Paul Veyne.
O nascimento de um romano não é apenas um facto biológico. Os recém-nascidos só vêm ao mundo, só são recebidos em sociedade, em virtude de uma decisão do chefe de família.
O conceito de História como aquilo que aconteceu no passado é já de si bastante complicado, na medida em que obriga logo à partida a uma tomada de posição sobre a importância dos factos que poderão ser considerados como históricos.
E mesmo que conseguíssemos agora com a ajuda das modernas tecnologias fazermos a história individual de todas as pessoas quantas as que existiram, do passado até à atualidade, para assim virmos a ter aquilo que consideraríamos ser uma verdadeira e completa história universal (dos humanos), acabaríamos ainda assim por termos apenas a história das suas ações e não das suas intenções, sentires, pensamentos.
Daí que nos contentemos com olhares sobre a história sabendo que eles implicam sempre um ponto de vista comprometido (normalmente o das forças vencedoras, até porque elas nos dizem que “dos fracos não reza a história”). Curiosamente, acontece que ao escolher-se a história, estamos a alterá-la mesmo que honestamente (não contando toda a verdade, mas apenas a que se julga interessar ou a que se entende ser a verdade), estamos a criar as condições para que mais tarde a parte não contada se venha a revelar (é como se o simples facto de se olhar para a história faz com que ela se altere, como nos diz a mecânica quântica das suas experiências). Olhares sobre a história, olhares da história.
Ciente de tudo isto, os historiadores têm vindo a tentar colmatar estas dificuldades. É o que acontece com a escola histórica francesa mais famosa, a dos Annales, com a sua análise de reconstrução geral da vida social, cultural e económica da Idade Média e dos períodos modernos, através da sua reflexão sobre períodos de longa duração.
No entanto, embora esta generalização tenha permitido a “descoberta” de períodos em que se podiam inscrever acontecimentos que ocorreram, não permitia (não estava feita para isso) caraterizar a vida das pessoas que as originavam ou que nelas estavam contidas, o que nos levava a atribuir pouca importância às suas experiências, epistemologias, intimidades e vivências, por se julgar que elas pouco difeririam entre si (na medida que encontrando-se contidas nos períodos de longa duração, a sua atuação supunha-se idêntica).
Daí que apesar de reconhecerem diferenças entre o passado e o presente, nomeadamente no respeitante à tecnologia, à organização económica, à estrutura social, e outros, a maior parte dos historiadores ‘vê’ as pessoas do passado como versões deles próprios só que a atuarem em contextos diferentes.
Mas eis que em 1971, o historiador francês Paul Veyne, publica Comment on écrit l’histoire: Essai d’épistémologie, onde vai defender que a história deveria ser essencialmente descritiva e não analítica, devendo privilegiar o ideográfico e não o nomotético, focando-se no particular e não no geral. Uma revisão completa dos Annales.
Como corolário da sua tese, vai publicar em 1976, Le pain et le cirque: Sociologie historique d’un pluralisme politique, onde pela aplicação e estudo da vida quotidiana das pessoas e instituições da época acaba por revelar a existência de comportamentos muito diferenciados dos atualmente seguidos.
Por exemplo, no respeitante às doações públicas (o “evergetismo”, o fazer boas ações). Tratava-se na prática da transferência da riqueza dos privados para a esfera pública, através da organização da banquetes e espetáculos públicos e a um nível mais alto do embelezamento de edifícios públicos, restauração de infraestruturas ou de dádivas perpétuas. Incluíam-se ainda a construção de templos, teatros, anfiteatros, bibliotecas, banhos públicos, colunas e basílicas.
Se interpretarmos como homens contemporâneos, diremos que se trata de uma forma de redistribuição e despolitização (“pão e circo”) na procura de benefícios, ou de veículo de propaganda pessoal, ou ainda de caridade cristã.
Mas para Veyne, como os gastos eram sempre muito superiores aos benefícios colhidos (garantia de cargos públicos, reforço da posição social) tal explicação não colhe. Para ele, tratava.se de uma expressão natural de grandeza, e em que essa expressão era um fim em si mesmo.
E vai servir-se do exemplo da Coluna de Trajano em Roma, aquele enorme cilindro esculpido de cima a baixo com a história da conquista militar da Dácia (atual Roménia). O conjunto dos seus relevos poderia pressupor para um público que a lesse, mesmo que só em figuras, a publicitação das ideias e valores da superioridade romana.
Acontece que o tamanho da coluna não permitia sequer que a maior parte dos relevos se conseguissem ver a partir do chão, pelo que tal implicaria um erro de execução. E um anacronismo, porquanto antes da época moderna não existia uma “esfera pública”, nem mesmo “público”. Não haveria, pois, qualquer intenção de comunicar com o público. Veyne conclui então que o poder do imperador “assentava não na comunicação ou na persuasão, mas na performance ritualizada do consenso da sua regra”.
E explica:
A grande profusão de arte oficial concentrada em Roma, não servia uma função prática (como vimos até era em grande parte não visível). Ela constituía antes um fim para si mesmo. Veyne vai chamar-lhe de “arte sem observadores”, expressão de autoridade monárquica que se mantém para além da compreensão, para além de questionamento.
Esta representação monárquica só era possível entre súbditos que estavam predispostos a amar o seu imperador não pelos seus feitos ou pelo seu carisma, mas pelo seu poder absoluto. Daí que a arte oficial não necessitasse de representar os feitos do imperador, não era para ser funcional.
A ser assim, há aqui uma enorme diferenciação entre a relação do poder e a representação política desse imperialismo romano, e aquilo a que chamamos de “civilização Ocidental”. Recomendo a este propósito a leitura de um pequeno ensaio de Veyne, “Y a-t-il eu un impérialisme romain?”.
Veyne dedica-se também ao estudo da família e do amor, “La famille et l’amour sous le Haut-Empire romain”, onde vai verificar as alterações profundas que se deram na relação da família, mormente entre cônjuges (“domesticação das morais”). Pela sua importância, deixo aqui um pequeno excerto intitulado “Do ventre materno ao testamento; ser aceite ou abandonado”, retirado do volume 1 da História da vida privada, Do Império Romano ao ano mil, em que Paul Veyne assina o capítulo primeiro, O Império Romano:
“O nascimento de um romano não é apenas um facto biológico. Os recém-nascidos só vêm ao mundo, ou melhor, só são recebidos em sociedade, em virtude de uma decisão do chefe de família; a contraceção, o aborto, a exposição das crianças de nascimento livre e o infanticídio do filho de um escravo são, naquela época, práticas usuais e perfeitamente legais. Só serão mal vistas, e mais tarde ilegais, depois de se ter expandido a nova moral que, abreviadamente, diríamos estoica.
Em Roma, um cidadão não «tem» um filho: «toma-o», «levanta-o»; o pai exerce a prerrogativa, logo que a criança nasce, de a levantar do chão onde foi colocada pela parteira, para a tomar nos seus braços e assim manifestar que a reconhece e se recusa a expô-la. A mãe acaba de dar à luz (sentada numa cadeira especial, longe do olhar masculino) ou então morre durante o parto e o bebé é extraído do seu útero incisado: mas isso não será suficiente para decidir sobre a vinda ao mundo de um descendente.
A criança que o pai não levantou será exposta à porta de casa ou numa lixeira; recolhê-la-á quem o desejar. Será igualmente exposta se o pai, ausente, tiver dado à sua mulher grávida ordem de o fazer; os gregos e os romanos sabiam que os egípcios, os germânicos e os judeus tinham a particularidade de criar todos os seus filhos e de não expor nenhum.
Na Grécia expunham-se mais rapariga do que rapazes; no ano I antes de Cristo, um heleno escreve à sua mulher: «Se (bato na madeira!) tiveres uma criança, deixa-a viver se for um rapaz, se for uma rapariga expõe-na». Mas já não é tão certo que os romanos tenham sido igualmente parciais. Expunham os afogavam as crianças deficientes (não por cólera, mas pela razão, diz Séneca: «é necessário separar o bom do que não serve para nada») ou ainda as crianças de uma filha que se tivesse «portado mal».
Mas acima de tudo, o abandono de filhos legítimos tinha por causas a miséria de uns e a política patrimonial de outros. Os pobres abandonavam as crianças que não podiam alimentar; outros «pobres» (no sentido antigo desta palavra, que traduziríamos por «classe média») expunham as suas «para não as verem corrompidas por uma educação medíocre que as tornaria inaptas para a dignidade e para a qualidade», escreve Plutarco; a classe média, os simples notáveis, preferiam, por ambição familiar, concentrar os seus esforços e os seus recursos num pequeno número de descendentes.
Nas províncias orientais, os camponeses partilhavam os seus filhos amigavelmente; uma certa família com quatro filhos, já não podia alimentar mais bocas; nasceram-lhe ainda três rapazes; foram dados a amigos, que acolheram de boa vontade esses futuros trabalhadores e os consideraram «com seus filhos».
Os juristas, quanto a eles, não conseguiam decidir se essas crianças «tomadas a cargo» eram livres ou se se tornavam escravos dos que as educavam. Mas mesmo os mais ricos poderiam não querer um descendente não desejado se o seu nascimento viesse perturbar disposições testamentárias já tomadas para as partilhas da sucessão. Uma regra de direito dizia: «O nascimento de um filho (ou de uma filha) desfaz o testamento» selado anteriormente, a menos que o pai se resignasse a deserdar antecipadamente o filho que viesse a nascer; talvez preferissem não voltar a ouvir falar da criança do que a deserdá-la.
Que acontecia às crianças expostas? Era raro sobreviverem, escreve Paulo-Quintiliano, que faz uma distinção: os mais ricos desejam que a criança nunca mais reapareça, enquanto que os miseráveis, constrangidos apenas pela pobreza, fazem tudo o que podem para que o bebé tenha hipóteses de ser recolhido.
Às vezes a exposição é apenas um simulacro; a mãe, sem o conhecimento do marido, confia a criança a vizinhos ou a subordinados que a educam secretamente, tornando-se um escravo que será eventualmente libertado pelos seus educadores. Em raríssimos casos, a criança podia, um dia, fazer reconhecer o seu nascimento como homem livre; tal foi a história da esposa do imperador Vespasiano.
Decisão legitima e refletida, a exposição podia assumir o caráter de uma manifestação de princípio. O marido que suspeite da infidelidade da sua mulher exporá o filho que pensa adulterino; a filhinha de uma princesa foi assim abandonada, mesmo à porta do palácio imperial «completamente nua». Também podia ser uma manifestação político-religiosa: por altura da morte de um príncipe muito amado, Germânico, a plebe, manifestando-se contra o governo dos deuses, lapidou os seus templos e alguns pais expuseram ostensivamente os seus filhos em sinal de protesto; depois do assassinato de Agripina pelo seu filho Nero um desconhecido «expôs o seu bebé em pleno fórum com um letreiro onde tinha escrito: “não vou educar-te com medo que degoles a tua mãe”».
Já que a exposição era uma decisão privada, porque razão não deveria de ser pública, nesses casos? Um dia, um falso rumor correu pela plebe: o Senado, sabendo pelos adivinhos que nesse ano iria nascer um rei, queria obrigar o povo a abandonar todos os bebés que viessem a nascer ao longo do referido ano. Como é possível aqui não pensar no Massacre dos Inocentes (que, diga-se de passagem, é provavelmente um facto autêntico e não uma lenda)?
A voz do sangue significava muito pouco em Roma; mais importante era a voz do nome de família. Ora os bastardos ficavam com o nome da mãe, e a legitimação ou o reconhecimento da paternidade não existiam; esquecidos pelo pai, os bastardos não desempenharam praticamente nenhum papel social ou político na aristocracia romana.
O mesmo não acontecia com os libertos, frequentemente ricos, poderosos e que conseguiam, por vezes, levar os seus próprios filhos até à ordem dos cavaleiros e mesmo ao Senado: a oligarquia dirigente reproduzia-se através dos filhos legítimos e dos filhos dos seus antigos escravos… Porque os libertos ficavam com o nome de família do amo que os tinha libertado da escravatura; continuavam o seu nome. Assim se explica a frequência das adoções: a criança adotada ficava com o nome de família do seu novo pai.
As adoções e a ascensão social de certos libertos compensavam a fraca reprodução natural, dado que a mentalidade romana era muito pouco naturalista. Aborto e contraceção eram práticas usuais, mas o que falseia o quadro que deles fazem os historiadores é o facto de os romanos confundirem, sob o nome de aborto, métodos cirúrgicos que ainda hoje se designam com outros métodos a que, hoje, chamamos de contraceção …
Porque em Roma é pouco importante o momento biológico em que uma mãe se desembaraça de um futuro filho não desejado. Os moralistas mais severos podiam atribuir à mãe o dever de guardar o seu fruto: nunca sonharam reconhecer ao feto o direito de viver.
O recurso a um método de contraceção existia em todas as classes da população; quando Santo Agostinho fala de «uniões em que se evita a conceção» não o faz como se tratasse de uma coisa rara e condena-as mesmo com a esposa legítima; distingue contraceção, esterilização por meio de drogas e aborto, para os condenar por igual.
Alfred Sauvy deixou bem claro: «Do que hoje se sabe sobre o poder multiplicador da espécie humana, a população do Império deveria ter-se multiplicado muito mais e ultrapassado os seus limites».
Qual era o processo utilizado? Plauto, Cícero, Ovídio fazem alusão ao costume pagão da lavagem depois do amor, e num vaso com relevos encontrado em Lyon aparece um portador de um cântaro aproximando-se de um casal muito ocupado na cama, este costume, além de purificador, podia ser contracetivo.
Tertuliano, polemista cristão, considera que o esperma, após a ejaculação, é já uma criança (associa a fellatio à antropofagia); ora no Véu das Virgens faz uma alusão obscura, por excesso de truculência obscena, a essas falsas virgens para quem o parto vale o nascimento; paradoxalmente, elas abandonam ao mundo crianças exatamente iguais ao pai, matando-as, alusão a um pessário.
São Jerónimo, na carta XVII, fala das raparigas «que antecipadamente se regozijam com a sua esterilidade e matam o ser humano mesmo antes de ser semeado», alusão a uma droga espermicida. Quanto ao ciclo menstrual, o médico soriano, partindo de uma perspetiva teórica, defendia que as mulheres concebiam imediatamente antes ou imediatamente depois das regras, doutrina felizmente exotérica. Todos estes processos estão a cargo da mulher; nenhuma referência ao coitus interruptus.”
Olhares sobre a história, olhares da história.