(421) O homem novo
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No fim do nosso progresso encontramo-nos tal como Adão e Eva estiveram: estamos todos perante a questão moral, Max Frisch.
O nosso tempo pensa em termos de ‘saber como fazer’, mesmo quando não houver nada para ser feito, Karl Jaspers.
A cultura transformou-se numa espécie de “casino cósmico” onde tudo é calculado “para ter o máximo impacto e obsolescência instantânea”, George Steiner.
Vivemos hoje num mundo muito mais fragmentado, descontínuo e inconsequente. A única regra certa com que se pode contar é que as regras mudarão muitas vezes até ao fim do jogo, Z. Bauman.
Partindo do princípio que têm existido grandes transformações nos seres humanos e nas culturas e civilizações que foram construindo ou onde foram vivendo, os estudiosos foram-se atarefando na busca dos marcos que poderiam confirmar e definir essas alterações e seus consequentes momentos de rutura.
Por outro lado, muitos desses estudos permitiram identifica melhor essas balizas, quer aumentando-lhes a área quer retirando-lhes a importância. É assim que vimos o modelo de organização do mundo helénico-romano (o Cosmo), que se supunha único e incompatível com outros congéneres, ser absorvido pelo Cristianismo.
Era o modelo de um mundo ordenado, finito, disposto em círculos concêntricos dependentes do valor ou da perfeição, começando com o de mais baixo valor, progredindo para o de maior perfeição, onde se encontrava estabelecida uma hierarquia em que os próprios lugares dos seres correspondiam aos graus da sua perfeição, numa escala que ia da matéria para Deus.
Neste Cosmo, todas as coisas tinham o seu lugar determinado pelo grau do seu valor, daí a tendência para procurarem o seu lugar para nele repousarem (à ciência caberia revelar essas tendências). Nesse Cosmo, a Terra ocuparia o centro.
Esta cosmologia antiga vai ser totalmente estilhaçada, e como a Igreja se apegara a ela para defender posições que nada tinham que ver com a religião (a idade da Terra, a sua situação relativamente ao Sol, a data de nascimento do homem, etc.), vai também ser fortemente questionada.
Quando Copérnico, na sua astronomia em 1543, De Revolutionibus Orbium Coelestium (As Revoluções dos Orbes Celestes), retira a Terra do centro do mundo, para a colocar no céu entre os outros planetas, vai minar os alicerces da ordem cósmica tradicional. Seguiram-se-lhe as teses de Galileu em 1632, o Dialogo sopra i due massimi systemi del mondo (Diálogo sobre os Dois Maiores Sistemas do Mundo), os Principia Philosophiae (Princípios de Filosofia) de Descartes em 1644, e os Principia Mathematica de Newton em 1687.
Quando Galileu consegue com o seu telescópio ver que a Lua tinha montanhas (o que o levou a concluir que a Lua seria feita de idêntico material ao da Terra), que Júpiter tinha satélites, que Vénus tinha fases, e que o Sol produzia manchas solares (o que significava que a sua matéria era alterável), vai desacreditar toda a astrologia Aristotélica, provocando, ao que dizem, uma enorme perturbação nos espíritos por pôr em causa a imutabilidade celeste, um dos dogmas que presidia ao mundo de então: a de que a perfeição absoluta do cosmos vinha do facto de ele ser eterno e imutável, em que nada poderia ser alterado.
Eram essas “antigas conceções que davam ao homem a certeza do saber” que foram destruídas.
As próprias ciências são vãs, incertas: Não se sabe nada, nada se pode conhecer, nem o mundo nem a nós próprios. O que leva um desses espíritos perturbados, Michel de Montaigne (1533 – 92) a concluir que se nada era seguro, só o erro será certo!
E faz o balanço:” O homem nada sabe, porque o homem não é nada”. Para além da dúvida, instalava-se o pessimismo.
Eis como Alexandre Koyré nos resume esse estado de espírito da época:
“O universo infinito da nova cosmologia, infinito na duração e na extensão, no qual a matéria eterna, de acordo com leis eternas e necessárias, se move sem fim e sem objetivo no espaço eterno, havia herdado todos os atributos ontológicos da divindade. Mas somente estes: quanto aos outros, Deus, ao partir do mundo, levou-os com Ele”.
A primeira Globalização dos descobrimentos e comércio, o Iluminismo, os grandes avanços científicos, a industrialização, tudo isso foi mascarando e substituindo essa partida de Deus. Passara-se a viver num mundo que se tornara incerto, onde nada era seguro, mas em que ao mesmo tempo onde tudo era possível.
Só finalmente a partir de Einstein, é que o universo passou de novo a ser considerado curvo e finito, não só sobre o ponto de vista espacial,mas também sobre o ponto de vista temporal, calculando-se a sua duração em quinhentos mil milhões de anos!
Poderíamos ter descansado, mas as guerras, as bombas atómicas, a segunda Globalização e outros, vêm alterar de novo as balizas do possível a que cada um de nós já se tinha agarrado. Vivemos hoje num mundo muito mais fragmentado, descontínuo e inconsequente.
O “emprego”, antes visto como sendo para a vida, é agora, na melhor das hipóteses, temporário, podendo desaparecer virtualmente sem qualquer aviso, o mesmo acontecendo com as empresas, escritórios, e bancos que o forneciam.
As “habilitações” requeridas pelos empregos, envelhecem rapidamente, tornando-se até de um dia para o outro num empecilho.
Ser-se “prudente” e “previdente”, pensando no futuro, torna-se cada vez mais difícil pois não se sabe quais as qualificações em que investir por poderem mais tarde virem a ser consideradas desnecessárias, o mesmo se passando com as poupanças de dinheiro que podem vir a ser reduzidas a zero.
Ou seja, vive-se hoje num mundo em que os jovens não conseguem saber quais serão as regras que os nortearão num futuro, mesmo no mais próximo. A única regra certa com que podem contar é que as regras mudarão muitas vezes até ao fim do jogo.
Num mundo assim é sábio e prudente não fazer planos a longo prazo, nem investir num futuro distante, nem se amarrar firmemente a qualquer lugar, grupo de pessoas, causas, nem mesmo à imagem que se tenha de si próprio, porque pode vir a encontrar-se desancorado e à deriva sem nada a que se agarrar.
Ou seja, ser-se “previdente” hoje em dia é evitar o “comprometimento”, para que quando a oportunidade chegar se encontrar livre para zarpar.
O mundo é hoje apresentado como uma coleção de fragmentos e episódios, onde uma imagem se segue a outra imagem que a substitui, ela própria a ser substituída momentos depois.
As celebridades surgem e desaparecem diariamente, muito poucas deixando qualquer impressão. A toda a hora surgem problemas que despertam a nossa atenção, para logo de seguida mal tenham aparecido, desapareçam. A atenção tornou-se um mais escasso dos recursos.
Como escreveu George Steiner, a nossa cultura transformou-se numa espécie de “casino cósmico” onde tudo é calculado “para ter o máximo impacto e obsolescência instantânea”: máximo impacto, dado que a imaginação ao ser constantemente chocada tornou-se blasé; e obsolescência instantânea, uma vez que a atenção tem capacidade limitada pelo que tem de se fazer espaço para absorver as novas celebridades, modas e ‘problemas’.
Quando Marshall McLuhan nos vem dizer que “o médium é a mensagem” querendo com isso significar que qualquer que seja o conteúdo da mensagem, as qualidades do médium que a transporta são elas mesmo a mensagem (ainda que escondida e sub-reptícia), leva-nos a concluir que ao alterarmos o meio que transporta a mensagem, o conteúdo da mesma é alterado.
Aplicando à alteração da nossa sociedade, fixemo-nos no exemplo entre a utilização do papel fotográfico (médium de antes) e a gravação de vídeo (médium de agora).
O papel fotográfico só pode ser usado uma vez. Mas, uma vez usado, conserva o assunto (foto, traço) por muito tempo, praticamente para sempre. Pense-se no que significava o álbum de fotografias da família, de cada um de nós, das nossas férias, etc.
O vídeo atual é feito para ser apagado, voltar a ser usado e reusado de novo, para fixar algo que no momento pareceu interessante ou divertido, mas não mais do que isso: é feito para desaparecer.
Ou seja, enquanto o papel fotográfico carreia a mensagem de que as coisas têm importância, tendem a durar e a terem consequências, tendem a manterem-se juntas e afetam umas às outras, o vídeo transporta a mensagem de que todas as coisas existem por elas próprias e só contam até serem substituídas por outras, que cada episódio é em si estanque e sejam quais forem as suas consequências estão destinadas a serem apagadas.
A diferença entre estas duas mensagens, é que uma delas pode ser definida pela palavra “criação” e a outra pela palavra “reciclagem”.
Da mesma forma que o material de construção de antes era o aço e o concreto, o de hoje é o plástico biodegradável. Da mesma forma que para o homem peregrino do antes o seu espaço temporal era o da “peregrinação-através-do-tempo”, o do homem atual é o do “turista-através-do-tempo”.
No primeiro caso, o itinerário dos peregrinos é traçado com antecedência tendo em conta o destino que se pretende alcançar e tudo aquilo que fizerem é calculado por forma a se aproximarem cada vez mais do objetivo. O peregrino é consistente na escolha dos passos a dar, consciente que cada passo importa e que a sua sequência não pode ser revertida.
Os homens de hoje, mesmo que quisessem, não poderiam encarar as suas vidas como uma peregrinação. Só é possível planear a vida como jornada para um destino, apenas num mundo em que se possa, com uma certeza mínima, acreditar que o mundo pouco mudará durante a vida, o que não é o caso do mundo atual.
Daí que a vida dos homens de hoje seja mais a dos turistas-através-do-tempo, que não podem decidir com antecedência quais os lugares a visitar e com que sequência ou se se vão continuar a deslocar, nunca sabendo se o sítio a que chegaram constitui o seu destino final. Daí que nunca desenvolvam raízes profundas com os lugares nem criem ligações sólidas com os habitantes locais. Tratarão cada lugar como uma estadia temporária, dependente da satisfação que o lugar lhes ofereça, mas estando sempre prontos para partirem de novo assim que a satisfação diminuir ou novas pastagens se lhes apresentarem.
Esta necessidade que lhes é imposta (e aceite) de apetência contante por novo espaço temporal, ao impedir a responsabilização e ao afastar maiores inter-relações humanas, neutralizando assim parte da existência humana, é contrária a qualquer postura moral.
E esta não é uma situação que possa ser corrigida pelo recurso a pregadores de moral, porquanto ela tem raízes profundas no contexto da vida dos homens contemporâneos, constituindo como que uma “adaptação racional” para as novas condições na qual a vida é vivida. É como se esta vida se emancipasse dos constrangimentos morais.
Pelo que a sociedade contemporânea coloca de novo o homem só.
Como escreveu Max Frisch:
“Podemos agora fazer o que quisermos e a única questão é saber o que afinal queremos? No fim do nosso progresso encontramo-nos tal como Adão e Eva estiveram: estamos todos perante a questão moral.”
Toda esta observação sobre a sociedade contemporânea encontra-se num ensaio de Zygmunt Bauman, escrito em 1996, Alone Again, Ethics After Certainty.