(420) A cultura do esforço
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Você tem que trabalhar, isso é bom. Não trabalhar, é mau.
O problema da juventude é que lhe falta a cultura do esforço, Dias Ayuso.
A cruzada pela ética do trabalho é a batalha para impor o controle e a subordinação, Zigmunt Bauman.
O proselitismo associado à cultura do esforço é agora feita a partir de palestras motivacionais, livros de autoajuda empresarial e sermões políticos.
Quando um respeitado meio de comunicação social publica um artigo sobre matérias que normalmente têm vindo a serem tratadas em meios mais restritos, tal pode significar que esses assuntos são entendidos como tendo já uma aceitação pelo grande público.
É o caso deste artigo de Sergio C. Fanjul, licenciado em Astrofísica e mestre em Jornalismo, publicado no El País, “Por qué lo llaman cultura del esfuerzo cuando quieren decir injusticia y precariedade”, que aborda, de um modo muito sintético, simples, mais vivido e conjuntural, algumas das matérias que tenho vindo a desenvolver neste blog. (1)
“Se nos seus inícios a ética do trabalho era utilizada para domesticar o proletariado que se formava vindo do campo, hoje continua a ser utilizada para justificar um sistema falido e injusto. E, se antes se defendia desde os sermões da igreja, agora a homilia assume a forma de palestras motivacionais, livros de autoajuda empresarial e discursos políticos.
Não sei se devo acreditar na cultura do esforço. Veja: Amancio Ortega tem 5.300.000 vezes mais dinheiro do que eu. Eu sei que ele se esforçou muito mais, mas com as mesmas 24 horas que o dia tem para nós dois, duvido que ele tenha tentado 5.300.000 vezes mais. É muito esforço: Amancio teria explodido (ele mesmo, quero dizer).
Isto é brincadeira, já me explicaram que essa não é uma lei exata ou linear e que, às vezes, se mistura com a fé, com a fé em si mesmo, de facto. Mas também é verdade que a chamada cultura do esforço tem sido frequentemente usada para fins obscuros. Outro dia, a pornográfica e pouco trabalhadora Isabel Díaz Ayuso, presidente da Comunidade de Madrid, disse que o problema da juventude é que lhe faltava cultura do esforço. E que os profissionais de saúde de Madrid eram preguiçosos.
O termo lembra a ética do trabalho, que também tem a sua história, como explica Zigmunt Bauman em seu livro Trabalho, Consumismo e os Novos Pobres (Gedisa). Tudo começa na Inglaterra da Revolução Industrial quando, fechando as terras comuns, os camponeses acabam por ser convertidos em mão de obra para as fábricas incipientes das cidades enfumaçadas da época. Foi uma mudança radical: de um trabalho que se fazia ao seu ritmo, em benefício próprio, em ambiente familiar; os novos proletários tiveram que ir trabalhar para fábricas insalubres, durante turnos quilométricos e pré-fixados, trabalhando para outros por salários de miséria. Não parecia um bom plano, por isso muitos camponeses, que não entendiam nada do que se estava a passar, ignoravam o assunto e resistiam. Mas o capitalismo tinha que ser posto de pé de alguma forma.
A ética do trabalho tornou-se um lubrificante para a proletarização da população. Tem duas premissas, segundo Bauman: a primeira, de que para viver e ser feliz é preciso fazer algo que os outros considerem valioso e digno de remuneração, ou seja, trabalhar. A segunda é que é tolice e moralmente condenável contentar-se com o que já foi conquistado e é preciso esforçar-se para conseguir sempre mais. Segundo isto, “o trabalho é um fim em si mesmo, uma atividade nobre e hierarquizadora”, nas palavras do sociólogo polonês. Você tem que trabalhar, isso é bom. Não trabalhar, isso é mau.
Sob a ética do trabalho, já não importava o gosto que se tinha pelo que se fazia, o orgulho do ofício ou o fim que se perseguia com o trabalho: era preciso trabalhar pelo trabalho, ideia muito útil nas fábricas onde os trabalhadores da rotina mecânica não entendiam muito bem o que faziam, para quê ou para quem.
“A cruzada pela ética do trabalho era a batalha para impor o controle e a subordinação”, escreve Bauman, “foi uma luta pelo poder em tudo menos no nome; uma batalha para obrigar os trabalhadores a aceitar, em homenagem à ética e à nobreza do trabalho, uma vida que não fosse nem nobre nem conforme aos seus próprios princípios morais”, continua o autor. Para promover a ética do trabalho, multiplicaram-se os sermões nas igrejas, as histórias moralizadoras e as escolas dominicais para os jovens.
A atual cultura de esforço não é diferente, apenas agora o proselitismo associado é feito a partir de palestras motivacionais, livros de autoajuda empresarial e sermões políticos, para fazê-los comungar com as rodas do moinho da precariedade. Se nos seus primórdios a ética do trabalho, tão semelhante à cultura do esforço, servia para domesticar o proletariado que se formava no campo, hoje continua a ser utilizada para justificar um sistema falido e injusto, como se a culpa do seu declínio fosse de suas vítimas. Em tempos difíceis, em vez de se procurarem soluções entre todos para construir um mundo melhor, há quem continue a apelar à luta individual contra uma inércia invencível, à competição de todos contra todos.”
Nota 1:
Alguns assuntos afins versados neste meu blog
“As Mónicas e os Mónicos de, que cuidam de nós”, 13 de agosto de 2015.
“Fazer ou não fazer é sempre fazer”, 29 de setembro de 2015.
“O Estado social dos ricos”, 14 de junho de 2015.
“Cristianismo como barreira à barbárie”, 28 de junho de 2015.
“A economia está bem, o País é que está mal”, 10 de julho de 2015.
“Quem corre por gosto…”, 10 de fevereiro de 2016.
“Autoridade: o pilar da sociedade”, 30 de março de 2016.
“Do ‘biopoder’ ao ‘psicopoder’”, 5 de outubro de 2016.
“Elogio dos preguiçosos”, 26 de setembro de 2018.
“Vestir a camisola”, 12 de dezembro de 2018.
“O elogio da preguiça”, 24 de agosto de 2022.