(414) A ecologia apocalítica dos balões
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A política molda as perguntas que os cientistas fazem e as metáforas que buscam.
A guerra termonuclear pode ser planeada do mesmo modo que os tornados, inundações e acidentes de trânsito, Joseph Masco.
A maior parte dos analistas pensa não ser provável que Putin use armas nucleares, Nicholas Kristof.
Estamos safos!
Tudo o que se tem de fazer é dizer-lhes que estamos a ser atacados e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo, Hermann Göring.
Com a introdução de bombas atómicas nos seus arsenais, as cliques dirigentes (políticas, económicas, militares) dos países que as possuíam, iniciaram uma série de experimentações (a que eufemisticamente chamaram de “ensaios” para lhes dar um cunho de seriedade científica, o que acabou por contribuir para o descrédito da Ciência, mas isso é outra história) para obterem os conhecimentos até aí inexistentes sobre as utilizações, efeitos e armazenamento das referidas bombas.
As experiências iniciais constituíram na detonação real de variadas bombas atómicas de diferentes potências, no ar, no solo, e debaixo do solo, a que se seguiram experiências com irradiação de material fortemente radioativo em ambientes naturais (florestas, plantações, animais, etc.).
Nos EUA, esses programas experimentais realizados entre 1945 e 1962, conduziram à detonação de aproximadamente 300 bombas atómicas que provocaram transformações nos ambientes físicos e biológicos do sudoeste dos Estados Unidos e das colonizadas Ilhas Marshall.
Foi a partir daí que os cientistas e o público passaram a reconhecer a precipitação radioativa como uma ameaça regional e possivelmente global à saúde humana.
A essa crescente preocupação com a precipitação nuclear vai juntar-se uma outra: o medo proveniente da aniquilação nuclear.
À medida que os EUA e a União Soviética aumentavam o número e o alcance de seus arsenais nucleares, começou a ser plausível imaginar a eclosão de uma guerra catastrófica à escala global. Recorde-se que em 1950, só os EUA tinham 299 armas nucleares. Em 1960, tinham 18.638. E em 1965, já tinham 31.139.
Estudos da RAND Corporation, (R de research, AN de and, e D de devellopment) uma instituição de promoção de pensamento com raízes no Departamento de Guerra dos Estados Unidos, estimavam que um primeiro ataque soviético teria como alvo 50 cidades dos Estados Unidos e resultaria em 90 milhões de mortos. Com esses números em mente, a Comissão de Energia Atómica dos Estados Unidos (AEC) começou a querer prever quais seriam as consequências económicas e sociais de uma terceira guerra mundial.
Construíram cidades inteiras e povoaram-nas com moradores-manequins em cenas do seu dia-a-dia suburbano: a família nuclear, cercada por carros novos, móveis e eletrodomésticos doados pelos fabricantes. Montaram também modelos de frotas navais. Tudo era depois bombardeado com bombas atómicas reais.
O governo distribuía depois fotografias e documentários filmados a fim de tentarem convencer o público de que era possível sobreviver a uma guerra nuclear, e que a principal responsabilidade por essa sobrevivência recaía sobre as famílias e a preparação que deveriam fazer.
Como disse o antropólogo Joseph Masco em “’Survival Is Your Business’: Enginnering Ruins and Affect in Nuclear America”, por meio dessas simulações, o governo “procurou fazer da morte em massa uma experiência psicológica íntima, ao mesmo tempo que afirmava que a guerra termonuclear poderia ser planeada do mesmo modo que os tornados, inundações e acidentes de trânsito”.
Entre 1946 e 1958, os EUA detonaram o equivalente a 7.000 bombas de Hiroxima nas Ilhas Marshall. Em 2022, os refugiados dos atóis de Bikini e Rongelap continuavam a não serem autorizados a voltarem para as suas casas.
Em 1950, o governo federal estabeleceu o Nevada Proving Grounds nos territórios índios de Western Shoshone e Southern Paiute, e subsequentemente realizou aí 100 testes nucleares atmosféricos e 921 subterrâneos. Os testes libertaram aproximadamente 12 biliões de curies de radiação, provocando com isso câncer e morte durante décadas (para se ter uma ideia, o desastre de Chernobyl libertou cerca de 81 milhões de curies de radiação).
Estabelecido que poderia haver um juízo final, o governo dos EUA encarregou então militares, sociólogos e até escritores de ficção científica para efetuarem pesquisas sobre o dia desse apocalipse.
A partir de 1943, contratou também ecologistas para estudarem o que acontecia com as plantas e os animais colocados nos locais da detonação.
Inicialmente, os cientistas esperavam que o oceano e a atmosfera diluíssem rapidamente a precipitação radioativa. Em vez disso, descobriram que os organismos acumulavam os elementos radioativos e que os organismos mais elevados na cadeia alimentar eram os que ficavam mais radioativos. Perceberam ainda que uma ampla gama de produtos químicos, incluindo poluentes como metais pesados e o inseticida DDT, ampliavam também essa radioatividade.
Em 1961, o governo deu instruções para se começar a investigar mais a fundo a “recuperação pós-guerra de ambientes bióticos devastados”. Começaram então a serem financiados estudos nos quais os ecossistemas eram propositadamente danificados pelos ecologistas para entenderem se eles se recuperariam e, em caso afirmativo, como.
Essas experiências não eram marginais, basta recordar que o AEC foi o principal financiador da pesquisa ecológica desde o início da Segunda Guerra Mundial até meados da década de 1970, quando a National Science Foundation o eclipsou. A ciência do ecossistema era à época considerada a ciência do juízo final.
As primeiras simulações ecológicas do pós-guerra aconteceram no Brookhaven National Laboratory em Long Island, Nova Iorque. Em 1962, ecologistas expuseram um antigo campo agrícola e uma floresta de carvalhos a radiação gama contínua de fontes pontuais de césio-137 e cobalto-60 durante cinco meses. O Gabinete de Defesa Civil da AEC apoiou o projeto. O objetivo principal era avaliar a recuperação biótica da exposição à radiação numa escala que poderia resultar de uma guerra nuclear.
Os ecologistas justificaram o experimento, que ocorreu de forma intermitente até 1978, argumentando que era importante antecipar os efeitos da guerra nuclear nas florestas recidivas orientais próximas aos centros urbanos, porque os locais em que até aí se tinham efetuado testes de bombardeamento tinham sido restritos a desertos e atóis tropicais com flora limitada.
Os cervos radioativos que ainda hoje vagueiam por Long Island, não são o único legado desse experimento. Por meio desse trabalho de campo atómico, os ecologistas desenvolveram a ideia de "radiossensibilidade comparativa". Cientistas de Brookhaven descobriram que os membros da família das margaridas sobreviveram a altos níveis de radiação, enquanto as espécies de pinheiros eram as mais “sensíveis” à radiação.
Esta foi uma nova forma de categorizar as espécies – não por taxonomia ou por quem comeu o quê, mas pela capacidade de resistir à perturbação. Hoje, muitos de nós estamos familiarizados em pensar nas espécies desta maneira: quais são as espécies mais tolerantes à seca, ou capazes de resistir a furacões, ou com maior probabilidade de sobreviver à crise climática. Mas, numa perspetiva histórica, essa é uma maneira muito nova de pensar sobre as qualidades de uma espécie.
Outras experiências de irradiação realizadas nas florestas de Luquillo, Porto Rico, tinham o objetivo de ajudarem o continente a preparar-se para uma guerra nuclear. Pretendia-se também com essa irradiação, contribuir para outro projeto, o projeto Plowshare Pan-Atomic Canal, um plano para 'melhorar' o Canal do Panamá detonando uma série de bombas H, para acabar com a necessidade de construção de eclusas no canal. Também aí se testou o Agente Laranja e outros “herbicidas táticos” para uso na Guerra do Vietname.
Em 1970, seguindo a recomendação da RAND Corporation para que os “estudos de radiossensibilidade comparativa fossem grandemente aumentados”, os ecologistas colocaram fontes de radiação numa floresta tropical em Luquillo e em campos agrícolas e florestas de recidivas em Nova York, Nevada, Carolina do Sul e Tennessee. Embora realizadas em locais particulares, as simulações dos chamados “ecologistas da Terceira Guerra Mundial” foram sempre orientadas para o desenvolvimento de estratégias generalizadas e transponíveis para a sobrevivência dos cidadãos americanos – exceto aqueles que vivessem em Porto Rico, nas Ilhas Marshall ou em Nevada.
Os ecologistas acreditavam que esses experimentos apocalípticos lançariam luz sobre como o mundo biótico estava naturalmente estruturado. Por exemplo, no seu livro Ecological Effects of Nuclear War (1963), o ecologista George Woodwell explicou que as experiências apocalípticas pretendiam simultaneamente antecipar "os complexos problemas ecológicos envolvidos num holocausto nuclear" e definir os "padrões normais de estrutura, função, e desenvolvimento característicos dos ecossistemas naturais'. Os ecologistas queriam saber como o mundo se recomporia após o desastre.
Em busca desse conhecimento, a destruição tornou-se um método padrão de estudo dos ecossistemas. Num exemplo particularmente dramático em 1966, Edward O. Wilson, entomologista de Harvard, e um de seus alunos de pós-graduação, Daniel Simberloff, escolheram seis ilhas na baía da Flórida para matar todos os animais vivos.
Primeiro, fizeram o censo dos insetos em cada ilha, depois encerraram em tendas ilhas inteiras e fumigaram com brometo de metilo. Após esta “defaunação”, Simberloff recenseou as comunidades de insetos. Para garantir que os insetos recolonizadores chegassem por meios "naturais" e não do próprio Simberloff, ele encharcava-se entre as visitas num repelente de insetos chamado Off! Na redação dos seus resultados experimentais, Simberloff e Wilson ressaltaram o pioneirismo das suas experiências com a introdução de várias “perturbações” induzidas, como inseticidas e fogo. O projeto foi parcialmente financiado pelo Departamento de Defesa.
Antes da década de 1960, a maioria dos ecologistas acreditava que, dado tempo e espaço, a natureza acabar-se-ia por regenerar. Chegaram a essa conclusão por meio da “teoria da sucessão ecológica” – a crença de que as comunidades ecológicas se desenvolveram de conjuntos instáveis de espécies para uma “comunidade clímax” estável que se adaptou ao seu ambiente físico. Os teóricos da sucessão ecológica sustentavam que os danos ecológicos causados pelo homem eram reversíveis, com a importante exceção das extinções de espécies.
Emblemático dessa visão é o livro Man and Nature (1864) de George Perkins Marsh. Segundo ele, os “arranjos naturais, uma vez perturbados pelo homem” seriam “restaurados” quando o homem “se retirasse do campo e deixasse espaço livre para energias de recuperação espontâneas”.
Uma visão semelhante prevaleceu durante a década de 1950, reforçada por estudos de terras agrícolas abandonadas na Nova Inglaterra, que pareciam reverter rapidamente para uma floresta densa. No influente simpósio “O Papel do Homem na Mudança da Face da Terra” em 1955, o ecologista Edward Graham observou que a natureza recuperou facilmente do cultivo intensivo, pastagem, caça e extração de madeira quando as pessoas desistiram da ação prejudicial. As comunidades ecológicas, observou ele, tinham o “poder de se recriar” para “se reconstituirem quando a causa da perturbação desaparece”.
No entanto, alguns experimentos apocalípticos abalaram a fé dos ecologistas numa natureza perpetuamente autorregeneradora. Devido a experimentações em que se danificavam os ecossistemas, começou-se a verificar que a recuperação ecológica não era inevitável e que os ecossistemas poderiam parar de funcionar totalmente se suficientemente danificados pelos seres humanos.
Essa “teoria da sucessão ecológica” tem muito que ver com a ideia de “destino manifesto”, a crença dos colonizadores de que a sucessão da propriedade dos nativos americanos para propriedade dos brancos era natural e inevitável.
A política molda as perguntas que os cientistas fazem e as metáforas que eles buscam. A teoria do ecossistema, por sua vez, surgiu quando os EUA perceberam estar sob ameaça perpétua. Os ecologistas começaram a perguntar como é que os ecossistemas se mantinham quando constantemente bombardeados por elementos exteriores stressantes.
No contexto do planeamento para o dia do juízo final, os ecologistas começaram a interrogar-se sobre se haveria um limiar de dano a partir do qual os ecossistemas perderiam a capacidade de se restaurar. Um relatório do Departamento de Defesa de 1965 observou que os ecologistas apocalípticos descobriram que os ecossistemas podem ficar tão danificados “que a restauração nunca possa ser mais do que parcial e incompleta”.
Uma vez que o “equilíbrio ecológico é seriamente perturbado”, continuou o relatório, “[algumas] espécies, não mais controladas pelos seus inimigos naturais, podem-se multiplicar enormemente; outras, privadas das suas fontes normais de alimento ou afetadas pela mudança total no sistema, podem desaparecer.'
Mais de uma década depois, um estudo do Office of Technology Assessment para o Comité de Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos concluiu que, após um ataque soviético, seria difícil ou impossível restaurar um ecossistema à sua condição pré-ataque devido à "possibilidade de mudanças ecológicas irreversíveis'.
Mas o que continuou a assombrar a disciplina da ecologia mesmo após o fim da Guerra Fria não foi a possibilidade de aniquilação global, mas o espectro mais subtil da mudança ecológica irreversível.
Os esforços atuais de planeamento de cenários, seja esse cenário de mudança climática ou uma nova variante do COVID, compartilham raízes do planeamento apocalíptico da década de 1960. O objetivo não é mais a prevenção ou contenção, mas a mitigação de danos inevitáveis. A resiliência, a palavra-chave do nosso presente de mudança climática, é comprovada apenas por meio da adversidade. Judith Rodin, ex-presidente da Fundação Rockefeller, descreve a resiliência como “a capacidade de indivíduos, comunidades, instituições, empresas e sistemas dentro de uma cidade de sobreviver, adaptar-se e crescer, independentemente dos tipos de stress crónico e choques agudos que vivenciam .'
Mas divulgar a resiliência como um valor ou um ativo torna-se perigoso, uma vez que isso equivale a aceitar o ônus de resiliência nas comunidades, ou seja, aceitar o status quo.
Celebrar a resiliência é imaginar um futuro de dano perpétuo.
Quase tudo o acima exposto pode-se encontrar no livro Wild by Design: The Rise of Ecological Restoration (2022), de Laura J Martin.
Como resultado destas experimentações, duas tendências apareceram: uma que reconhece que os mísseis balísticos intercontinentais com armas nucleares são as armas mais perigosas no mundo e que podem inclusivamente dar lugar acidentalmente a uma guerra nuclear em que cerca de 99% da população pereceria.
Eis o que Daniel Ellsberg nos elucida:
[a guerra nuclear] "levaria para a estratosfera muitos milhões de toneladas de fuligem e fumaça negra das cidades em chamas. Rapidamente se espalharia à volta do globo reduzindo a luz do Sol em 70%, dando lugar a temperaturas tão baixas como as da Pequena Idade do Gelo, matando as colheitas em todo o mundo e levando à morte por fome quase todos na Terra. Provavelmente não causaria a extinção. Somos tão adaptáveis. Talvez 1% de nossa população atual de 7,4 bilhões pudesse sobreviver, mas 98 ou 99 por cento não."
O mesmo se pode ler no Bulletin of the Atomic Scientists, com o título de “Nowhere to Hide”, como uma guerra nuclear te matará a ti e a quase todos os outros.
A outra tendência, interpreta os resultados dos ensaios como demonstrativos de que é possível sobreviver-se a uma guerra nuclear se estivermos preparados, podendo perfeitamente ser encarada como mais uma opção militar a ter em conta.
No caso da atual guerra na Ucrânia, Timothy Snyder, no seu artigo “Why the world needs Ukrainian victory”, defende a opção militar até às últimas consequências porque a Rússia não utilizará armamento nuclear.
A mesma linha segue Nicholas Kristof no seu artigo no The New York Times, “Biden Should Give Ukraine What It Needs to Win”, onde embora reconheça “preocupações legítimas de que se Putin for colocado num canto, ele poderá atingir o território da NATO ou usar armas atómicas táticas”, logo descarta tais possibilidades porque “a maior parte dos analistas pensa não ser provável que Putin as use”. Estamos safos!
Atente-se nas expressões “a maior parte” e “não ser provável”. Como não estarmos preocupados com a possibilidade de uma guerra nuclear quando as decisões dependerem destes jogos de dados de pessoas bem-pensantes-informadas e conotadas com a parte mais aguerrida do sistema?
Atente-se nas recentes decisões igualmente baseadas no “achismo” dos que nos governam em mandar abater com mísseis 3 ou 4 balões dos quais apenas um se sabia a proveniência, aventando mesmo alguns generais a hipótese de serem extraterrestres, e de que mais ninguém voltou a falar ou em preocupar recuperar (só um). “Shoot Them Down”, gritava-se no Congresso americano, único organismo com poder para declarar guerra. Brincadeiras de crianças grandes de que dependemos para sobreviver?
Ou talvez não: serviu pelo menos para manter viva a desconfiança relativamente ao inimigo de olhos em bico.
Como disse o general nazi Hermann Göring numa entrevista após ser preso:
“As pessoas não querem guerra, seja na Rússia, na Inglaterra ou na América, nem na Alemanha. Percebe-se isso […] são os leaders do país quem determina a política. Tudo o que se tem de fazer é dizer-lhes que estamos a ser atacados e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo”.
Nota:
A China tem 68 satélites militares em órbita capazes de lerem os números da placa de licença de um carro a circular, os EUA têm 122 satélites militares capazes de fazerem o mesmo ou melhor, a Rússia tem 74 satélites militares a sobrevoarem os EUA a cada poucos minutos.