(412) Entre o Velho do Restelo e a destruição criativa
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Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros. São iguais a nós. Platão, República, Livro VII, epígrafe de Saramago, A Caverna.
A razão porque as pessoas leem hoje tão mal é porque há uma quantidade enorme de textos impressos, Zhu Xi.
Uma das grandes causas das desordens nervosas e de perigo para o “espírito feminino” é a leitura de novelas.
A quantificação do real na busca de dados expulsa o espírito do conhecimento.
É n’Os Lusíadas, canto IV, que Camões introduz a figura do Velho do Restelo:
94 Mas um velho, de aspecto venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, C'um saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito: 95 — "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C'uma aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas! |
96 — "Dura inquietação d'alma e da vida, Fonte de desamparos e adultérios, Sagaz consumidora conhecida De fazendas, de reinos e de impérios: Chamam-te ilustre, chamam-te subida, Sendo digna de infames vitupérios; Chamam-te Fama e Glória soberana, Nomes com quem se o povo néscio engana! 97 — "A que novos desastres determinas De levar estes reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhe destinas Debaixo dalgum nome preminente? Que promessas de reinos, e de minas D'ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? que histórias? Que triunfos, que palmas, que vitórias? |
Como sabemos (e Camões também o sabia) o Velho do Restelo não é caraterístico nem dos velhos nem dos jovens que vivem no Restelo, nem dos que vivem noutros locais específicos, nem só dos que vivem numa determinada época, estando até muito bem representado nos tempos em que vivemos.
Por exemplo, somos hoje diariamente confrontados com afirmações de que as Googles nos estão a tornar estúpidos, que os telemóveis ‘espertos’ estão a destruir as novas gerações, que o constante acesso à internet degrada a memória e a capacidade para se conseguir manter uma atenção sustentada, etc.
Como provas ‘concludentes’ são apresentadas as distrações provocadas pelo uso do telemóvel enquanto conduzimos, daí concluindo que a quantidade de informação que os meios tecnológicos proporcionam são os culpados dessas distrações, não esquecendo ainda de acrescentar sentimentos de ansiedade e nostalgia induzidos.
Acontece, contudo, que todos estas preocupações e sentimentos se têm verificado ao longo do tempo em todas as sociedades, especialmente nas épocas em que se verificam grandes transições técnicas e tecnológicas.
É assim que Platão, num de seus diálogos, “Fedro”, nos conta como o inventor da escrita, o deus egípcio chamado Theuth, dá a conhecer a sua obra ao rei dos deuses, Thamus. ‘Esta invenção, ó rei’, diz Theuth, ‘tornará os egípcios mais sábios e com melhor memória; é um elixir de memória e sabedoria.'
Contudo, o rei dos deuses, Thamus, via a invenção de forma contrária:
“Essa invenção produzirá esquecimento na mente daqueles que aprenderem a usá-la, porque não exercitarão a sua memória. A confiança na escrita, produzida por personagens externos que não fazem parte deles próprios, desencorajará o uso da sua própria memória dentro deles. Tu inventaste um elixir não de memória, mas de lembrança; e ofereces aos teus alunos a aparência da sabedoria, não a verdadeira sabedoria, pois eles lerão muitas coisas sem instrução e, portanto, parecerão saber muitas coisas, quando na maioria das vezes são ignorantes e difíceis de lidar, uma vez que não são sábios, mas apenas aparentam serem sábios.”
Séneca, vem depois dizer-nos que “a existência de muitos livros é uma distração”.
O mesmo se passa com a impressão e a consequente proliferação de livros, que leva o filósofo chinês Zhu Xi do século 12, constatar que se vivia numa época de pessoas dispersas, distraídas, e que tal se devia ao aparecimento da tipografia:
“A razão porque as pessoas leem hoje tão mal é porque há uma quantidade enorme de textos impressos.”
Nos finais do século 14, Petrarca escrevia contra a mania de se acumularem livros sem os ler:
“Creia-me, isso não é alimentar a mente com literatura, mas matá-la e enterrá-la com o peso das coisas ou, talvez, atormentá-la até que, enlouquecida por tantos assuntos, essa mente não pode mais saborear nada, mas olha tudo com saudade, como Tântalo sedento no meio da água.”
Renascentistas como Erasmo e Calvino atribuíam a esse vaguear e saltar incessante pela “confusa floresta” de livros, a dificuldade em se encontrar um verdadeiro pensamento sério.
Mas também algumas pequenas transições técnicas foram encaradas com o mesmo espírito de desconfiança. Por exemplo, para conviver com os cada vez mais variados textos manuscritos, desenvolveu-se todo um processo de sistematização (linhas de pensamento) que permitiam uma organização do conhecimento do mundo de acordo com um sistema de pensamento. “Adulterar o pensamento”, era a crítica associada.
O próprio aparecimento dos simples índices, ferramenta essencial de pesquisa para estudantes e professores, foi também bastante criticado por tornar os leitores preguiçosos: “liam apenas títulos e índices”, e que isso acabaria por levar os escritores a colocarem o seu material mais controverso nos índices.
À medida que a crescente classe média e mais mulheres começaram a ler intensamente novelas e romances (século 18), também isso foi apontado como uma das grandes causas das desordens nervosas, sendo especialmente um perigo para o “espírito feminino” (a chamada “leitura patológica” que provocava a sobre estimulação dos nervos, conforme estudos científicos da época demonstravam).
Já Andy Clark e David Chalmers, vão antes tentar compreender o porquê destes comportamentos (como o pensamento interior lida, responde, perante o mundo que lhe é exterior), o que os levou a publicar em 1998 o estudo “The Extended Mind” no qual preconizam que a nossa capacidade para pensar pode ser alterada e expandida através de tecnologias como a escrita.
É a tese segundo a qual o pensamento não reside apenas no cérebro ou no corpo, mas que compreende também o mundo físico, ou seja, que certos objetos que nos são exteriores (tábuas de cálculo, computadores, diários, e demais objetos que sirvam para guardar informação), fazem parte do processo cognitivo funcionando como extensões do pensamento.
Leiamos o que mais esclarecidamente nos deixou Saramago, em A Caverna:
“Horas atrás de horas […] o oleiro fez, desfez e refez bonecos com figuras de enfermeiras e de mandarins […] Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a falangeta. Aquele outro órgão a que chamamos de cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, gerais, difusas e, sobretudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer […] Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo do que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaria ídolo.”
Parece, pois, que perante as inovações técnicas que foram sendo feitas, e para além das resistências que sempre apareceram, foram também sempre surgindo meios para conviver com elas.
Contudo, acontece que hoje as grandes empresas tecnológicas conseguem aperceber-se dos modelos coletivos de comportamento, mesmo daqueles comportamentos que nem sequer aparecem como conscientes para os próprios indivíduos. Têm assim acesso a um chamado inconsciente coletivo digital.
Através deste acesso, estas empresas, para além de vigiar e controlar as massas, conseguem ainda regular o seu futuro comportamento social. Não se trata já só de conhecer os modelos de conduta no presente, mas também de conhecer os seus possíveis prognósticos. Trata-se não só de controlar os “apetites” das massas no presente, mas também de induzir “apetites” no futuro.
Mas como conseguem estas empresas analisar e tirar conclusões de tal quantidade de dados? Se seguissem o método científico tradicional, primeiro os cientistas teriam de aventar uma hipótese, um modelo visualizável nas suas cabeças, e depois testá-lo. Teriam de encontrar uma causalidade que lhes permitisse ligar os dados ao modelo e á realidade. Construir uma teoria. Evidentemente, devido à enormidade de dados, tal método seria extremamente lento, e mesmo que chegasse a alguma conclusão, já teria passado o tempo de intervir.
Num artigo muito interessante de Chris Anderson, “The end of theory: the data deluge makes the scientific method obsolete”, que começa com uma citação do matemático George E. P. Box: “Todos os modelos estão errados, há é alguns que são úteis”, ele vai explicar-nos que a teoria aparece como uma construção, um meio auxiliar para compensar a falta de dados.
Se dispusermos de dados suficientes, a teoria passa a ser supérflua. Em vez da criação de modelos de teorias hipotéticas, podemos passar diretamente à análise matemática sem o estabelecimento de hipóteses sobre o que poderão significar, deixando para depois o estabelecimento do contexto. Podemos lançar números para as maiores constelações de computadores existentes e deixar que sejam os algoritmos estatísticos a encontrar os padrões que a ciência não consegue. A correlação substitui assim a causalidade. O “é assim” substitui o “porque”.
Transcrevendo Anderson:
“Empresas como a Google, que cresceram numa época de massas de dados enormemente grandes, hoje em dia não têm que decidir-se por modelos errados. Aliás, não têm mesmo que decidir-se em geral por nenhum modelo […] Quem pode dizer porque é que os homens fazem o que fazem? Fazem-no simplesmente, e podemos constatá-lo e medi-lo com uma exatidão sem precedentes. Se dispusermos de suficiente data, os números falam por si mesmos.”
Foi assim que a Google conquistou o mundo dos anunciantes, sem saber nada sobre a cultura e convenções de anúncios. Assumiu que tendo melhores dados e melhores ferramentas de análise, tal seria suficiente para ganhar. E foi.
Ela não sabe porque é que uma página é melhor do que outra: é-lhe suficiente que as estatísticas que lhes chegam dos enlaces digam que é. Não é necessária qualquer análise semântica ou causal. É por isto que a Google pode traduzir linguagens sem as ‘conhecer’, e é por isso que pode adicionar anúncios a conteúdos sem conhecer nem os anúncios nem os conteúdos.
Deparámo-nos aqui com duas das mais importantes linhas de força que podem definir a presente e futura sociedade:
a da vigilância digital, que permitindo o acesso ao inconsciente coletivo pode vir a influenciar o futuro comportamento social das massas, com o consequente controle por parte de grandes grupos, sejam eles empresas ou complexos militares-industriais, resultando numa crescente apatia ou militarização da sociedade;
o desaparecimento da teoria que nos permitia pensar o mundo ou como o compreender de forma a poder-nos situar nele, quer fosse através da ontologia, da linguística, da sociologia ou de qualquer outra teoria sobre comportamento humano, e sua substituição por matemática aplicada à massificação de dados (“A quantificação do real na busca de dados expulsa o espírito do conhecimento”).
E é com isto que atualmente nos confrontamos e a que prosaicamente ao nível da economia, Joseph Schumpeter chama de “destruição criativa” (como o capitalismo se reinventa periodicamente).
Já passámos por fases em que o pensamento mitológico funcionava por correlação, por racionalidades em que o Sol andava à volta da Terra, pelo que a agora correlação racional das máquinas governadas pela Inteligência Artificial não nos deve afastar daquilo que é importante: saber quem as controla e com que finalidade. Não perder o foco.
Exemplo recente foi o acontecido com a entrevista que o conceituado jornalista independente Seymour Hersh deu no Democracy Now! sobre o seu artigo “How America Took Out the Nord Stream Pipeline”, e que o You Tube censurou por a considerar ofensiva, o que levou o jornalista Patrick Lawrence a escrever a 20 de fevereiro de 2023 o artigo, “Totalized Censorship”, do qual extraio os parágrafos:
“As tecnologias não são neutras em termos de valor. Jacques Ellul, o anarquista cristão e intelectual multifacetado, defendeu isso em The Technological Society. Segundo a sua tese, as tecnologias não são vazias de conteúdo além do que constam nelas. Implícita em qualquer tecnologia está sempre uma afirmação da economia política e das circunstâncias materiais que a produziram.
Por outras palavras, as tecnologias disponíveis para jornalistas independentes são produtos corporativos. Eles são vitais para praticantes independentes como meio de entrega, mas, como aprendemos a cada dia, o acesso a eles pode ser interrompido a qualquer momento. Muitos de nós parecem ter perdido essa contradição. Agora somos pressionados a reconhecê-lo.”
O foco não foi perdido.
Notas:
A descrição até à atualidade de alguns comportamentos relacionados com adaptações sociais relativas à introdução de novas técnicas, pode ser encontrada no livro de Johann Hari, Stolen Focus.
Há um interessante estudo, “The iPhone Effect: The Quality of in-Person Social interactions in the presence of Mobile Devices”, onde os autores concluem que as interações que temos com as outras pessoas são mais formais e menos empáticas quando feitas ao telemóvel, mesmo que ele se encontre apenas só pousado na mesa de trabalho. Ou seja, o caráter das conversações que temos é alterado.
Este blog contém parte do artigo de 13 de janeiro de 2016, “Big Data, big shit!”.
De interesse ainda o blog de 13 de julho de 2016, “O perigo dos equívocos da técnica moderna”.