(410) O legado da ‘guerra justa’
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A teoria da guerra justa parte do princípio que a guerra, apesar de ser terrível, será sempre menos terrível se travada com a conduta certa, nem sempre sendo a pior opção.
Guerra justa, diz o nosso Isidoro, é a que se faz para reaver o que é nosso, ou para repelir os inimigos, bispo do Porto em 1147.
Guerra reacionária, é aquela na qual os oprimidos efetivamente lutam para proteger os seus próprios opressores, V. Lenine.
E no mundo em que vivemos até pode acontecer que a “guerra justa” nos conduza para uma “guerra nuclear”, mas que será certamente “justa”, na qual todos acabaremos por morrer cheios de razão.
O problema da sobrevivência, quer no aspeto da subsistência quer no aspeto da defesa, foi um problema que se deve ter posto aos primeiros grupos de humanos que se formaram. As justificações sobre quando e como se defenderem ou quando e como atacarem, seriam das decisões mais importantes, uma vez que diziam respeito à vida ou morte de pessoas ou de comunidades inteiras, pelo que quem as tomava teria de contar com o apoio implícito ou explícito do grupo e da anuência sempre presente dos deuses da época.
Mas à medida que a guerra se foi transformando em tradição, chefes militares, sacerdotes, chefes políticos, filósofos, teólogos, começaram a interessar-se por ela, sistematizando argumentos para melhor a entenderem. Para justificar as condições em que uma guerra pudesse vir a ser declarada e para que pudesse vir a ser travada com retidão, começaram por estabelecer critérios. É assim que aparece a “teoria da guerra justa” que acredita que a guerra, apesar de ser terrível, será sempre menos terrível se travada com a conduta certa, nem sempre sendo a pior opção.
Vão ser dois os grandes grupos a que estes critérios se dedicam: o primeiro trata do “direito de se ir para a guerra” (a moralidade de se decidir pela guerra), e o segundo com o “direito de conduzir a guerra” (como deverá ser moralmente conduzida, ou seja, quais as regras da guerra).
Com pequenas variações, todas as civilizações acabam por ter critérios quase idênticos para a declaração e condução da guerra.
No Antigo Egito, o faraó era quem tinha a legitimidade para declarar a guerra, em nome da vontade dos deuses. Normalmente antes de declararem guerra dirigiam-se aos templos para receberem inspiração divina ou auscultarem os sacerdotes.
Na China confuciana, a guerra era admitida como justa apenas como último recurso e se declarada pelo imperador. A justeza da decisão era medida pelo resultado da campanha.
Na Índia dos marajás, a guerra para ser justa estabelecia critérios de proporcionalidade dos meios, justeza dos meios (nada de setas envenenadas) e justeza de ânimo (não se atacar com raiva).
Na Grécia Antiga, a existência de uma força militar era tida como necessária para a autodefesa, mas não para a conquista: “A finalidade de se praticar o treino militar não tem que ver com vir a tornar escravos quem o não merece, mas para evitar que eles próprios venham a ser tornados escravos por outros”.
Na Roma Antiga, também a guerra era considerada como sendo potencialmente errada, proibida, e não do agrado dos deuses. Uma guerra justa necessitava de uma declaração ritual feita pelos sacerdotes disso encarregados, e a sua condução implicava o seguimento de deveres morais para com os seres humanos.
Com o Cristianismo, sujeito ao “Não matarás”, ao oferecimento da outra face para ser esbofeteada e à sua moral universalista segundo a qual todos os homens são irmãos, o problema da guerra foi particularmente estudado para evitar que a contradição se instalasse.
Os ensinamentos de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino vão conduzir à formulação do conceito de “guerra justa” ainda hoje utilizado pelos cristãos, salvo algumas pequenas correções.
No nosso caso, nação católica, a necessidade de se ter que dar uma justificação religiosa para a guerra pode ser apreciada, por exemplo, a quando da conquista de Lisboa aos mouros em 1147. D. Afonso Henriques, querendo obter a colaboração dos cruzados nórdicos que se dirigiam para a Palestina, encarregou o bispo do Porto de lhes mostrar que essa empresa era justa:
“A piedade em favor de Deus não é crueldade. Fazei a guerra por zelo de justiça e não por impulso violento da ira. Ora a guerra justa, diz o nosso Isidoro, é a que se faz por reaver o que é nosso, ou para repelir os inimigos. E porque é uma coisa justa punir os homicidas e os sacrílegos e os envenenadores, a efusão do seu sangue não é um homicídio, como não é cruel quem destrói os cruéis. Quem mata os maus só no que eles são maus e o faz com justo motivo, é ministro do Senhor”.
Só quase duzentos anos depois é que em Portugal aparecem as primeiras obras dedicadas ao problema da guerra justa, com Fr. Álvaro Pais, Estado e Pranto da Igreja (1332-35) e Espelho dos Reis (1341-44), seguindo evidentemente a tradição escolástica e as ideias expressas por Santo Agostinho e Tomás de Aquino.
Onde explicava que a guerra para ser justa, devia obedecer a cinco requisitos: persona (quem podia combater – excluía os eclesiásticos a quem só lhes era permitido exortar o príncipe e o povo), res (será ou não a guerra inevitável?), causa (é de facto a guerra o único meio para obter a paz?), animus (o que a dita? Deverá ser sempre a caridade e nunca o ódio, a ambição ou a vingança) e a auctoritas (quem a declara deve estar legitimamente investido no poder).
Contudo, D. João I, ou porque desconhecesse a obra de Álvaro Pais ou porque ela tivesse sido dedicada “ao ilustre e vitoriosíssimo” Afonso XI rei de Castela, ou porque não considerasse suficientes as razões aduzidas, antes da expedição a Ceuta quis saber se aquela guerra seria “serviço de Deus”, reunindo para isso pareceres de alguns príncipes letrados e doutores na Igreja.
Recordemos que D. João I era bastardo, iniciara uma nova dinastia, e devia desejar afirmar-se aos outros monarcas como de igual valimento, pelo que, entre outras coisas, resolvera armar os seus filhos cavaleiros em combate real numa luta contra os infiéis, algo que já há muito não se via nem se praticava naquela Europa, pelo que a expedição a Ceuta era particularmente importante e todos os cuidados tinham de ser acautelados.
A resposta que lhe chegou, depois de assinalarem que Justiniano e os seus jurisconsultos aconselhavam a guerra contra os infiéis e que o Santo Padre dava absolvição perpétua a quem “dereitamente morresse guerreando os infiéis”, foi a seguinte:
“Saiba vossa mercê que o estado militar não he por outra coisa tão louvado entre os cristãos, como por guerrearem os infiéis, ca não he necessário nem há hi mandamento de nosso Senhor Deus que façamos guerra a nenhuns cristãos, antes nos encomenda que nos amemos uns aos outros como irmãos que devemos ser em ele que he nosso Senhor, segundo he escrito por São Paulo em muitos lugares das suas epístolas”.
Em seguida afirmam que os reis devem evitar que os seus senhorios recebam queda, utilizando imaginação e conselho, e, se for preciso, devem combater contra os infiéis e até contra os cristãos. Porém, logo que a ofensa tenha sido reparada, “devem de deixar as armas e buscar a paz por quantas maneiras poderem”.
E concluíam:
“Ora senhor, nem havemos de acrescentar mais soma de palavras, basta que nós aqui somos presentes por autoridade da santa escritura […] determinamos que vossa mercê pode mover guerra contra quaisquer infiéis assim mouros como gentios, ou qualquer outro que por algum dos artigos da santa fé católica, por cujo trabalho mereceres grande galardão do nosso Senhor Deus para a vossa alma”.
E assim se fez.
No reinado de D. Manuel, a nação continua fiel à doutrina tradicional sobre a guerra justa vinda de 1147. Como se pode ler no Regimento da viagem de Pedro Álvares Cabral para a Índia, só se devia fazer guerra contra os povos indígenas se estes, não querendo aceitar a evangelização, “negassem a lei de paz que se deve ter entre os homens para conservação da espécie humana, e defendessem o comércio e comutação, que é o meio por que se concilia e trata a paz e amor entre todo os homens, por este comércio ser o fundamento de toda a humana polícia”.
Vai ser no reinado de D. João III, que surge a teorização mais completa da doutrina portuguesa da guerra justa, no chamado Tratado da Guerra Que Será Justa. Preocupado com a guerra que estava a ser feita no Brasil contra os Índios, o monarca vai consultar (“provavelmente um teólogo ou jurisconsulto”, sugere Costa Brochado) o autor até hoje anónimo.
Segundo o autor, para uma guerra ser justa são necessárias três causas: “autoridade no que a move, causa justa e boa tenção”.
As causas só são justas se forem para reaver o que foi nosso ou para punir uma ofensa. No primeiro caso estavam as guerras empreendidas contra os Mouros de África e os turcos da Ásia, pois haviam ocupado terras pertencentes aos cristãos. Porém, a guerra feita contra os povos que habitassem terras nunca possuídas por cristãos era injusta, a não ser que tivesse como origem a segunda causa indicada.
E sobre a evangelização desses povos afirma que aqueles que forem cumprir essa missão devem ser bem recebidos e, só se não o forem, aos reis católicos será justo mover guerra contra os gentios ofensores. Neste caso, esta guerra tem como fim, não obrigar os gentios a aceitar a Fé cristã, mas sim a punir a ofensa.
Assim, quanto aos Mouros, como se sabia de antemão que não aceitavam a evangelização, qualquer guerra movida contra eles seria justa. Quanto aos Gentios, só depois de saber que eles não querem receber os pregadores. Sugere ainda não ser conveniente enviar tropas com os missionários, sendo preferível que sejam acompanhados por “homens de bem com modo de honesto comércio e pacífica comunicação”.
E no respeitante aos ocupantes de terras que nunca houvessem sido de Cristãos ou que nunca tivessem causado dano aos mesmos?
O autor não considera justa a guerra contra os pecadores e contra a natureza, pois que pecado tão grave como esse é para os cristãos o pecado mortal e não perdiam estes o domínio do que tinham pelo facto de o cometerem: não há “lei divina que prive os infiéis bárbaros do que eles por justo título positivo possuem, ainda que idólatras e infiéis”.
Refuta assim a ideia que seja justa a guerra contra os Infiéis apenas porque com ela estes poderiam alcançar os bens da civilização.
Vejamos a prática:
Quando os grandes capitães das expedições de navios das nações europeias dos séculos XV e seguintes desembarcavam em terras povoadas e com riquezas à vista, o padrão de conquista que se lhe seguia era normalmente sempre o mesmo: a leitura de medidas legais inventadas que serviam de justificação para a invasão, a declaração de posse do território, e a fundação de uma cidade para legitimar e institucionalizar a conquista.
Escreviam depois aos reis para lhes assegurar que tudo fora feito de acordo com os desejos expressos pelos monarcas, e que os povos conquistados se encontravam à disposição para serem comandados e para trabalharem, plantarem, e fazerem tudo o que fosse necessário, para construírem uma cidade, e para serem ensinados a vestirem-se e a adotarem os costumes cristãos.
Para que tudo fosse feito de acordo com as “normas”, antes de entrarem em combate com os indígenas, os soldados liam-lhes os Éditos Monárquicos (Requerimento), onde se declarava que os conquistadores estavam investidos com a autoridade de Deus, do papa, e do rei, e que os povos nativos seriam seus vassalos subordinados à sua autoridade.
Desses éditos constava também a enumeração das penas que os indígenas sofreriam se não o cumprissem (tipos de tortura, incêndio das vilas, enforcamento de mulheres na praça pública, e outros). Tudo isto “explicado” numa língua e linguagem que os indígenas não entendiam.
Normalmente, estes éditos acabavam dizendo:
“Vou fazer-lhes todo o mal e causar-lhes todos os prejuízos que um Senhor faria a um vassalo que não lhe obedecesse ou recebesse. E declaro-vos solenemente que todas essas mortes e estragos resultantes serão sempre culpa vossa devido às vossas falhas e não de Sua Majestade, nem minha, nem dos homens que comigo vieram”.
Citando o missionário dominicano espanhol Frei Bartolomeu de las Casas (1474? -1566), em O paraíso destruído: a sangrenta história da conquista da América Espanhola:
“Após os europeus se terem libertado do dever de os informar, o campo ficava aberto para a pilhagem e escravatura”.
Atravessemos vários séculos e numerosas guerras e ainda hoje o Compendio da Doutrina Social da Igreja de 2004, desenvolve assim a doutrina da guerra justa no capítulo 11, parágrafos 500 a 501:
“Se esta responsabilidade [de manter a paz, fazer a guerra] justifica a posse de meios suficientes para exercer este direito de defesa, os Estados têm ainda a obrigação de fazer todo o possível "para garantir que existam condições de paz, não apenas no seu próprio território, mas em todo o mundo". É importante lembrar que “uma coisa é travar uma guerra de autodefesa; outra é tentar impor a dominação a outra nação. A posse de potencial de guerra não justifica o uso da força para prosseguir objetivos políticos ou militares."
Estas são as doutrinas que continuam em vigor e nas quais todos se baseiam para justificar as suas guerras justas quando ganham.
Para tentar fugir a esse espartilho, Vladimir Lenin vai começar por dizer que as guerras justas compartilham todas a característica de serem de caráter revolucionário:
"Aos trabalhadores russos coube a honra e a sorte de serem os primeiros a iniciar a revolução - a grande e única guerra legítima e justa, a guerra dos oprimidos contra os opressores".
Ao definir estas duas categorias opostas em termos de classe, Lenin evitou a interpretação mais comum de considerar uma guerra defensiva como justa ("quem deu o primeiro tiro?"). Pelo que o lado que iniciasse as agressões ou o que tivesse uma razão de queixa ou qualquer outro fator comumente considerado como causa de guerra, não importava.
Para ele era claro que se um lado estivesse a ser oprimido pelo outro, a guerra contra o opressor seria sempre, por definição, uma guerra defensiva.
Qualquer guerra em que não se verificasse essa dualidade de oprimido e opressor seria sempre uma guerra reacionária, injusta, na qual os oprimidos efetivamente lutam para proteger os seus próprios opressores:
" Imaginem uma guerra entre um senhor de 100 escravos contra um senhor de 200 escravos por uma distribuição mais "justa" de escravos. Claramente, a aplicação do termo guerra "defensiva", ou guerra "para defesa da pátria" seria historicamente falso, e na prática seria um puro engano do povo, dos filisteus, dos ignorantes, pelos astutos senhores de escravos. É desta forma que a burguesia imperialista de hoje engana os povos por meio da "ideologia nacional" e do termo "defesa da pátria" na atual guerra entre senhores de escravos para fortalecer a escravidão."
A cortina foi entreaberta, mas a peça continua a mesma. Recordemos, por exemplo, a recente guerra entre dois países ditos comunistas, a China e o Vietname: quem é o opressor e quem é o oprimido?
A teoria da guerra justa não apareceu para evitar a guerra, mas sim para que a guerra se efetuasse segundo as condições estabelecidas pelos potenciais vencedores.
Pelo que no mundo em que vivemos até pode acontecer que a “guerra justa” acabe por nos conduzir a uma “guerra nuclear”, mas que será certamente “justa”, na qual todos acabaremos por morrer cheios de razão.