Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(409) Crimes de guerra e guerra sem crimes

O TEMPO EM QUE VIVEMOS 438 Crimes de guerra e guerra sem crimes

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Não devemos esquecer que os padrões com que hoje julgamos os acusados serão os padrões com que viremos a ser julgados amanhã, Robert H. Jackson, procurador dos EUA no 1º Tribunal de Nuremberga.

 

As entidades em conflito devem sempre em qualquer caso distinguir entre civis e combatentes. Os ataques só podem ser dirigidos contra combatentes. Os ataques não podem ser dirigidos contra civis.

 

As tropas russas têm-no feito nesta guerra na Ucrânia. E isto porque não poderão ser julgadas, porque, tal como os americanos, não ratificaram o tratado do TPI sobre crimes de guerra.

 

Um estado de guerra permanente cria burocracias complexas, sustentadas por políticos complacentes, jornalistas, cientistas, tecnocratas e académicos, que servem obsequiosamente a máquina de guerra.

 

 

 

 

Na História da Guerra do Peloponeso, começada a escrever já lá vão 2.400 anos (431 a. C.), Tucídides pôs os poderosos Atenienses a explicar aos derrotados e impotentes Melitanos, a razão para o genocídio que se lhe seguiu:

 

 “o direito, de acordo com o que se passa no mundo, apenas se discute entre os que são igualmente poderosos, porquanto os mais fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que têm de sofrer”, (capítulo XVII, Décimo sexto Ano da Guerra, A Conferência Melitana, O Destino de Melos).

 

Com o aproximar do fim da 2ª Guerra Mundial, começou a pôr-se o problema de como responsabilizar os criminosos de guerra pelas ações cometidas. A constituição de um Tribunal Internacional para os julgar seria a solução mais evidente, só que o problema era muito complicado não só pela não existência de uma legislação internacionalmente aceite sobre crimes de guerra, investigação e verificação a serem conduzidas, procedimentos a serem seguidos, esferas de influência, etc.

Como o tempo (e as espectativas e as intenções) urgia, foi decidido constituírem-se dois Tribunais Militares Internacionais, um para julgar os crimes dos nazis alemães e outro para os nazis japoneses.

 

As acusações apresentadas eram quatro: (1) crimes contra a paz (isto é, planeamento, iniciação e condução de guerras de agressão em violação de tratados e acordos internacionais), (2) crimes contra a humanidade (isto é, extermínios, deportações e genocídio), (3) crimes de guerra (ou seja, violações das leis de guerra) e (4) “um plano comum ou conspiração para cometer” os atos criminosos contidos nas três primeiras acusações.

 

A autoridade do Tribunal Militar Internacional para conduzir esses julgamentos decorreu do Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945. Nessa data, representantes dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética e do governo provisório da França, assinaram um acordo que incluía uma autorização para que um Tribunal Militar Internacional pudesse conduzir julgamentos dos principais criminosos de guerra do Eixo cujos crimes não necessitassem de ter localização geográfica específica. Mais tarde, outras 19 nações aceitaram as disposições deste acordo, sendo admitidas como observadoras.

 

A primeira sessão, sob a presidência do representante soviético, Gen. I.T. Nikitchenko, realizou-se a 18 de outubro de 1945, em Berlim. Foram acusados 24 ex-líderes nazis ​​por perpetuarem crimes de guerra, e ainda vários grupos (como a Gestapo, a polícia secreta nazi) acusados ​​por terem caráter criminoso. A partir de 20 de novembro de 1945, todas as sessões do tribunal passaram a ser realizadas no Palácio da Justiça em Nuremberga.

Após 216 sessões, a 1 de outubro de 1946, foi proferido o veredicto de 22 dos 24 réus originais (Robert Ley cometeu suicídio enquanto estava na prisão, e as condições físicas e mentais de Gustav Krupp von Bohlen und Halbach impediram que ele fosse julgado). Três dos réus foram absolvidos: Hjalmar Schacht, Franz von Papen e Hans Fritzsche. Quatro foram condenados a penas de prisão que variaram de 10 a 20 anos: Karl Dönitz, Baldur von Schirach, Albert Speer e Konstantin von Neurath. Três foram condenados à prisão perpétua: Rudolf Hess, Walther Funk e Erich Raeder. Doze dos réus foram condenados à morte por enforcamento. Dez deles - Hans Frank, Wilhelm Frick, Julius Streicher, Alfred Rosenberg, Ernst Kaltenbrunner, Joachim von Ribbentrop, Fritz Sauckel, Alfred Jodl, Wilhelm Keitel e Arthur Seyss-Inquart - foram enforcados a 16 de outubro de 1946. Martin Bormann foi julgado e condenado à morte à revelia, e Hermann Göring suicidou-se antes de poder ser executado.

 

Para além deste tribunal, foram ainda constituídos logo de seguida, entre dezembro de 1946 e abril de 1949, outros 12 subsequentes tribunais militares para julgar crimes de guerra cometidos por chefias do partido nazi, médicos, industriais, juízes, ministros e outros elementos de organizações nazis. Dos 3.887 casos, 3.400 foram abandonados, tendo sido presentes a tribunal 489, com 1.672 acusados, dos quais 1.416 foram condenados (200 foram executados, 279 condenados a prisão perpétua – embora em 1950 quase todos acabassem por serem soltos ao abrigo de uma amnistia).

 

Particular interesse tem também o caso do tribunal para julgar os crimes dos nazis japoneses (Tribunal de Tóquio) instaurado pelo General Douglas MacArthur, onde, devido ao encobrimento feito pelo próprio governo americano, os principais responsáveis pelos crimes horrendos da Unidade 731 (experiências com armas biológicas e químicas em humanos) não foram presentes à justiça, e onde devido aos então recentes bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui se invocou que os pilotos japoneses não podiam ser punidos por bombardearem cidades dado os pilotos americanos terem feito o mesmo (“É horrível que aqui venhamos fazer valer as leis da guerra e, contudo, vejamos a cada dia como os Aliados a tenham vindo a violar”, juiz Rölling).

 

Premonitório o que disse o procurador-chefe americano do julgamento de Nuremberga, Robert H. Jackson:

 

Não devemos esquecer que os padrões com que hoje julgamos os acusados serão os padrões com que viremos a ser julgados amanhã.”

 

 

Os representantes dos Estados Unidos, da União Soviética, do Reino Unido e da França, que foram os arquitetos destes julgamentos, tinham como intenção a criação de um tribunal que viesse a servir de modelo para a responsabilização de guerras futuras. Ou seja, que as Nações Unidas viessem a estabelecer um tribunal permanente onde os criminosos de guerra que não pudessem ser julgados nos seus próprios países pudessem ser trazidos à justiça.

Este bem-intencionado desejo levou mais de meio século a ser concretizado, pois só em 1998 foi estabelecido o Tribunal Penal Internacional (TPI) quando 120 nações votaram a favor do Tratado de Roma, com 7 votos contra e 21 abstenções. Os sete votos contra foram da China, Estados Unidos, Iémen, Iraque, Israel, Líbia e Qatar.

 

Só em julho de 2002 é que se obtiveram as 60 ratificações necessárias para que o Tribunal pudesse formalmente funcionar. As primeiras ordens de prisão foram emitidas em 2005, tendo o primeiro julgamento tido início em 2012, sendo arguido o chefe rebelde congolês Thomas Lubanga Dyilo, acusado de crimes de guerra pela utilização de crianças soldados.

Até hoje, o Tribunal investigou casos no Afeganistão, República Centro-Africana, Costa do Marfim, Darfur, Sudão, República Democrática do Congo, Quénia, Líbia, Uganda, Bangladesh/Mianmar, Palestina e Venezuela. Além disso, a Procuradoria realizou investigações preliminares de algumas situações na Bolívia, Colômbia, Guiné, Iraque/Reino Unido, Nigéria, Geórgia, Honduras, Coreia do Sul, Ucrânia e Venezuela.

Das poucas condenações produzidas pode-se extrair algo que lhes é comum: incidem sempre sobre quem ratificou o Tratado, quem se deixou aprisionar, quem perdeu a guerra, ou seja, os perdedores.

 

Em 2005, o Comité Internacional da Cruz Vermelha (IRCC) sumarizou as regras às violações à lei que seriam consideradas crimes de guerra. A primeira regra especifica que “as entidades em conflito devem sempre em qualquer caso distinguir entre civis e combatentes. Os ataques só podem ser dirigidos contra combatentes. Os ataques não podem ser dirigidos contra civis.”

A segunda regra diz que “atos ou ameaças de violência cujas principais finalidades sejam o de espalhar terror entre a população civil, são proibidos.

 

Ou seja, bombardear alvos civis como mercados, prédios de apartamentos, ataques às instalações elétricas, assassinar residentes nas cidades ocupadas, tudo isso é proibido. E, no entanto, as tropas russas têm-no feito nesta guerra na Ucrânia. E fazem-no porque não poderão ser julgados, porque, tal como os americanos, não ratificaram o tratado do TPI sobre crimes de guerra.

 

Veja-se o caso dos EUA: em 2000, Bill Clinton assina o Tratado de Roma, mas o Senado nunca o ratificou. Em 2002, quando a administração Bush se preparava para a “guerra global ao terrorismo” (o que incluía a ocupação do Afeganistão e o programa global de tortura da CIA ), os EUA retiraram definitivamente a sua assinatura. Eis a explicação do então Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld:

 

“…[As] disposições do TPI reivindicam a autoridade para deter e julgar cidadãos americanos - soldados, marinheiros, aviadores e fuzileiros navais dos EUA, bem como funcionários atuais e futuros - mesmo que os Estados Unidos não tenham dado o seu consentimento para serem vinculados ao tratado. Quando o tratado do TPI entrar em vigor neste verão, os cidadãos dos EUA estarão expostos ao risco de serem processados ​​por um tribunal que não presta contas ao povo americano e que não tem obrigação de respeitar os direitos constitucionais de nossos cidadãos”.

 

Mas para clarificar, em agosto desse ano o Congresso passou, e o Presidente Bush assinou, o American Servicemembers Protection Act, segundo a qual era “autorizado o uso da força militar para libertar qualquer cidadão americano ou de um país aliado que estivesse retido no TPI, localizado em Haia”, permitindo também que os EUA retirassem suporte militar a qualquer nação que participasse do TPI.

Aparentemente, os “direitos constitucionais” incluíam o direito a cometer com impunidade crimes de guerra. Mesmo que o cidadão viesse depois a ser julgado por esse crime num tribunal americano, ele tinha sempre muitas hipóteses de vir a contar com um perdão presidencial.

 

Na prática, eis um exemplo de como as coisas funcionam: em 2018, o procurador-chefe do TPI pediu formalmente que fosse aberto um inquérito sobre os crimes de guerra que estavam a serem cometidos no Afeganistão. Como os EUA não são membros do TPI, mas o Afeganistão é, o inquérito focou-se nos crimes cometidos contra os civis apenas por parte da forças talibans e do governo afegão.

Mas mesmo assim o procurador pretendeu investigar as participações sobre as alegadas intervenções da CIA e das forças militares americanas nos centros de detenção do Afeganistão em 2003/2004, pelo que planeou uma viagem aos EUA. O seu visto foi revogado (abril, 2019), impedindo-o de entrevistar quaisquer testemunhas, a que se seguiram sanções financeiras.

 

Como mais claramente explicou John Bolton, o Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, (https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/protecting-american-constitutionalism-sovereignty-international-criminal-court/):

 

Os Estados Unidos usarão todos os meios necessários para protegerem os nossos cidadãos e os dos nossos aliados das perseguições injustas desse tribunal ilegítimo.

Nós não cooperaremos com o ICC. Nós não daremos qualquer assistência ao ICC. Não nos juntaremos ao ICC. Deixaremos que o ICC morra por ele próprio. Em qualquer dos casos, o ICC é já um morto para nós.

 

E mais, avisou que os Estados Unidos considerariam proceder à utilização de sanções contra os juízes, procuradores e todos os que cooperassem com a averiguação de tais provas, podendo inclusive chegarem a proibir a sua entrada nos EUA, congelarem as suas contas, e julgá-los em tribunais americanos.

 

Imagino que o mesmo farão os russos, os israelitas, os chineses, todos aqueles que se sentem poderosos perante os derrotados e impotentes (como já Tucídides explicara). Como já antes o fizeram ingleses (que quando eram donos do mundo, sempre que um qualquer seu cidadão era preso em qualquer parte do mundo, enviavam um barco de guerra para ameaçar os outros governos), franceses, espanhóis, portugueses, etc.

 

Eis o que o historiador inglês Edward Gibbon nos diz sobre o desejo do Império Romano por guerra sem fim:

 

“[O] declínio de Roma foi o efeito natural e inevitável da grandeza imoderada. A prosperidade amadureceu o princípio da decadência; a causa da destruição multiplicou-se com a extensão da conquista; e, assim que o tempo ou o acidente removeu os suportes artificiais, o estupendo tecido cedeu à pressão do seu próprio peso. A história da ruína é simples e óbvia; e, em vez de indagar porque foi destruído o Império Romano, deveríamos surpreender-nos por ele ter subsistido por tanto tempo.”

 

Um estado de guerra permanente como o que temos vivido quase sempre, cria burocracias complexas, sustentadas por políticos complacentes, jornalistas, cientistas, tecnocratas e académicos, que servem obsequiosamente a máquina de guerra.

Por exemplo, no caso dos EUA, no início deste mês, os Comités dos Serviços das Forças Armadas do Congresso e do Senado, nomearam oito comissários para rever a Estratégia de Defesa Nacional (NDS) de Biden, para “examinar as suposições, objetivos, investimentos em defesa, postura e estrutura da força, conceitos operacionais e riscos militares do NDS.”

A comissão, como Eli Clifton escreve no Quincy Institute for Responsible Statecraft, é “em grande parte composta por pessoas com ligações financeiras à indústria de armamentos e a empresas que têm contratos com o governo dos EUA, levantando questões sobre se a comissão poderá ter um olhar crítico para contratos que recebem US$ 400 bilhões dum orçamento de defesa de US$ 858 bilhões para o ano fiscal de 2023”.

É que a presidente da comissão, observa Clifton, é a ex-deputada Jane Harman (D-CA), que “faz parte do conselho de administração da Iridium Communications, uma empresa de comunicações via satélite que recebeu em 2019 um contrato de US$ 738,5 milhões por sete anos com o Ministério de Defesa.”

Chama-se a isto pôr a raposa no galinheiro para tomar conta das galinhas. Aparentemente não faltam raposas, galinhas e galinheiros. De todas as raças, credos, lugares e tempos.

 

Entretanto, ”a Ucrânia teve quase 18.000 baixas civis (6.919 mortos e 11.075 feridos). Também viu cerca de 8% das suas habitações destruídas ou danificadas e 50% da sua infraestrutura de energia diretamente impactada por frequentes cortes de energia. A Ucrânia necessita pelo menos US$ 3 bilhões por mês em apoio estrangeiro para manter a sua economia à tona, disse recentemente o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional. Quase 14 milhões de ucranianos encontram-se deslocados - 8 milhões na Europa e 6 milhões internamente - e até 18 milhões de pessoas, ou 40% da população da Ucrânia, precisarão em breve de assistência humanitária. A economia da Ucrânia contraiu 35% em 2022, e 60% dos ucranianos estão agora condenados a viver com menos de US$ 5,5 por dia, segundo estimativas do Banco Mundial. Nove milhões de ucranianos estão sem eletricidade e água, com temperaturas abaixo de zero, diz o presidente ucraniano. De acordo com estimativas do Estado-Maior Conjunto dos EUA, 100.000 soldados ucranianos e 100.000 russos foram mortos na guerra em novembro passado.”

 

 

 

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub