(408) “Que será, será!”
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Segundo o Banco Mundial, os fundos atribuídos para a educação diminuíram, perto de 13,5 por cento.
Apesar de frequentarem a escola, 119,6 milhões de crianças não conseguem obter proficiência mínima em leitura e matemática nos graus elementares do ensino.
Pelo que talvez valha mais a pena investir na educação das novas gerações de crianças, deixando as outras para trás. Opção que os mercados entendem. “Surplus population”.
Até 1959 não existia nenhuma escola secundária na Guiné, isto apesar de Portugal a administrar desde 1588.
O exemplo da Educação Política para a Libertação na Guiné-Bissau entre 1963 e 1974, segundo a historiadora Sónia Vaz-Borges.
As Nações Unidas (NU) calcularam que em 2018 existiam 258 milhões de crianças em idade escolar que não frequentavam a escola (ou seja, uma em cada seis). Num estudo de junho de 2022, as NU verificaram que o número de crianças com dificuldades de educação triplicara desde 2016, passando de 75 milhões para os atuais 222 milhões:
“Estes 222 milhões de crianças são apenas uma amostra das necessidades ao nível da educação: cerca de 78,2 milhões (54 por cento mulheres, 17 por cento com dificuldades funcionais, 16 por cento por deslocação forçada) não frequentam qualquer escola, e 119,6 milhões não conseguem obter proficiência mínima em leitura e matemática nos graus elementares do ensino, apesar de frequentarem a escola.”
Este é o panorama geral com que nos defrontamos. E, no entanto, os fundos atribuídos para a educação diminuíram, segundo o Banco Mundial, perto de 13,5 por cento. Apesar de nos países ricos os fundos atribuídos à educação terem já atingido os níveis de pré-pandemia, nos países mais pobres não só não alcançaram esse nível, como se interrogam se esse enorme esforço financeiro possa não compensar, na medida em que esses biliões de pessoas em causa ficarão sempre para trás (não recuperarão) e não conseguirão virem a ser contratados para empregados das empresas que se firmam no mercado.
Pelo que talvez valha mais a pena investir na educação das novas gerações de crianças, deixando as outras para trás. Opção que os mercados entendem. “Surplus population”: aquilo que os outros são, e que nós acabaremos por ser.
Nem sempre foi assim. Olhemos, por exemplo, para o que nos diz a historiadora Sónia Vaz-Borges no seu estudo sobre a Educação Política para a Libertação na Guiné-Bissau entre 1963 e 1974.
Devo dizer que o foco posto na Guiné-Bissau deve-se a alguns fatores, nomeadamente o de os países colonizadores não encararem os povos desses territórios como seres com história e com necessidades educacionais idênticas às suas (exemplos: até 1959 não existia nenhuma escola secundária na Guiné, isto apesar de Portugal a administrar desde 1588; a história e experiências dos povos africanos não serem tidos em conta, nem ensinados) e à exemplaridade exportável do seu processo.
Passando agora ao estudo de Vaz-Borges que começa com uma citação de Amílcar Cabral:
“[…] Hoje a educação visa o objectivo da realização plena do Homem, sem distinção de raças ou de origens, como um consciente e inteligente, útil e progressivo, integrado ao mundo e seu meio (geográfico, econômico e social), sem qualquer tipo de sujeição. Para isso e por isso, a questão da educação não pode ser tratada separadamente da questão econômica-social […] – Amílcar Cabral, 1951.
Num discurso proferido em uma assembleia em Londres, em outubro de 1971, Amílcar Cabral explicou a triste situação em que se encontrava a maioria da população (grandes níveis de empobrecimento e subdesenvolvimento, manifestados em altas taxas de mortalidade infantil, fomes cíclicas, altos percentuais de analfabetismo, falta de infraestruturas e serviços públicos, setores industriais subdesenvolvidos ou inexistentes):
“a falta de proteínas e de muitos alimentos básicos impede o desenvolvimento do nosso povo. Em algumas regiões, houve uma taxa de mortalidade infantil de 80%. Ao longo da época áurea do colonialismo português tínhamos apenas dois hospitais com um total de 300 camas em todo o país e apenas 18 médicos, 12 deles em Bissau.
Quanto às escolas, eram apenas 45, e eram escolas missionárias católicas, ensinando apenas o catecismo. Havia 11 escolas oficiais para crianças assimiladas. Não havia escolas secundárias na [Guiné-Bissau] até 1959; agora existe uma. […] Havia apenas 2 mil crianças nas escolas em todo o país. E você pode imaginar o tipo de ensino. Foi uma decisão deliberada para impedir o desenvolvimento do nosso povo, tal como fizeram em Angola, Moçambique e outras colônias.”
O primeiro Congresso do PAIGC, conhecido como Congresso de Cassacá, ocorreu entre 13 e 17 de fevereiro de 1964 na área liberada do sul das florestas guineenses. As “áreas libertadas” ou “zonas libertadas” (termos frequentemente usados nos escritos do Partido) eram os principais territórios sob controle da organização; aqui, o acesso ou influência portuguesa era muito limitado e praticamente inexistente. Em 1971, dois terços do país eram governados pelo PAIGC.
[…] Nas diretrizes que Cabral redigiu para o Congresso, ficou destacado como, para “continuar o desenvolvimento vitorioso de nossa luta”, o PAIGC precisaria:
“Criar escolas e desenvolver a instrução em todas as áreas libertadas. […] Melhorar o trabalho nas escolas existentes, evitar um número muito elevado de alunos que pode prejudicar o aproveitamento de todos. Criar escolas, mas ter em conta as possibilidades reais para evitar que depois tenhamos que fechar algumas escolas por falta de meios. […] Criar cursos especiais para formação e aperfeiçoamento de professores […] Criar cursos para ensinar a ler e a escrever aos adultos, sejam eles combatentes ou elementos da população. […] Criar, a pouco e pouco, bibliotecas simples nas zonas e regiões libertadas, emprestar aos outros os livros a que dispomos, ajudar outros a aprender a ler um livro, o jornal e a compreender aquilo que se lê.”
[…] Em janeiro de 1969, durante uma entrevista gravada na Conferência Internacional de Apoio aos Povos das Colônias Portuguesas e da África Austral, em Cartum, Cabral partilhou o conteúdo dessas conversas e os objetivos que pretendiam atingir:
“Não podíamos mobilizar as pessoas dizendo-lhes “a terra deve pertencer a quem trabalha” porque aqui a terra não falta. Há toda terra a que se precisa. Era, pois, necessário encontrar formas apropriadas para mobilizar nossos camponeses, em vez de usar termos que nossa gente não podia ainda compreender. Nunca mobilizamos as pessoas com base na luta contra o colonialismo. Isso não dava nada. Falar da luta contra o imperialismo não dava nada entre nós.
Em vez disso, falamos uma linguagem direta e acessível a todos: ‘Por que lutamos nós? Quem és tu? Quem é teu pai? O que é que lhe aconteceu ao teu pai, até agora? O que é que se passa? Qual é a situação? Já pagaste os teus impostos? O teu pai já pagou os seus impostos? O que é que já viste desses impostos? Quanto ganhas com o teu cânhamo? Já pensaste no que lucras com teu cânhamo? E o trabalho que ele custou à tua família? Quem é que já esteve preso? Tu já estiveste preso?
É com esta base que se faz a mobilização.
Vais trabalhar na estrada. Quem te dá a ferramenta para trabalhar? És tu que a das. Quem te dá a comida? És tu que a dás. Mas quem anda pela estrada? Quem tem um carro? E a tua filha que foi violada por fulano – achas isso bem?”
[…] Sob a palavra de ordem “todos os que sabem devem ensinar aos que não sabem”, o PAIGC desenvolveu dois projetos educativos simultâneos, um para adultos e outro para jovens. Os objetivos subjacentes do desenvolvimento de sistemas educacionais nas áreas libertadas eram “destruir na nossa resistência, tudo quanto faça da nossa gente cachorros – homens ou mulheres – para deixarmos avançar, crescer, levantar, como as flores na nossa terra tudo quanto possa fazer da nossa gente seres humanos de valor”.
Entre 1963 e 1972, o PAIGC desenvolveu instalações educacionais para três grupos: jovens, adultos e guerrilheiros. Iniciativas educativas para adultos e guerrilheiros vinham sendo realizadas desde o trabalho de mobilização dos primeiros anos, mas foram fortalecidas e institucionalizadas nesse período com a criação de infraestrutura escolar e educacional. Escolas de Tabanca (em vilarejos) e internatos foram construídos em áreas libertadas, com exceção de dois internatos localizados em países vizinhos: a Escola Piloto, na República da Guiné, e a Escola Teranga, na República do Senegal.
As escolas do PAIGC no exterior eram coordenadas pelo Instituto Amizade, criado pelo Partido em 1965, com representações permanentes em Conacri e Dacar. Os estatutos do instituto descrevem a organização como não política e com “fins humanitários”, trabalhando em estreita colaboração com o departamento de educação das áreas libertadas da Guiné-Bissau. Funcionava, portanto, como uma “espécie de esboço de um Ministério da Educação” dentro da estrutura do Partido. O instituto coordenou todos os aspectos decorrentes das diretrizes do Partido, desde a gestão das escolas até o desenvolvimento de currículos e materiais, passando pela gestão e distribuição de bolsas no exterior.
Durante a luta de libertação, o PAIGC recebeu bolsas de estudo de países como Bulgária, Checoslováquia, Cuba, Hungria, Iugoslávia, República Democrática Alemã, Romênia, Estados Unidos e União Soviética. O instituto também era responsável por organizar e coordenar seminários para adultos, treinar quadros, educar trabalhadores do serviço social, como professores, e acompanhar o “rápido crescimento da vida escolar durante a luta de libertação”.
As estruturas educativas centrais do PAIGC foram desenvolvidas por meio de campanhas de mobilização mais amplas e processos educativos para crianças e jovens coordenados pelo Instituto Amizade. Havia também um grupo de instalações para adultos: Lar Sami em Ziguinchor e Lar de Dakar na República do Senegal, bem como o Lar do Bonfim (também conhecido como Lar de Conacri) na República da Guiné.
Eram centros multifuncionais que serviam como escritórios de representação do Partido para funções administrativas e políticas, pequenos hospitais e centros de recuperação para os feridos na luta armada e espaços educativos que ofereciam programas de alfabetização e cursos de educação política para aqueles que estavam se recuperando de ferimentos.
Em 1966, o Partido criou dois outros espaços para a população adulta e militar: o Centro de Reciclagem e Aperfeiçoamento de Professores e o Centro de Instrução Política e Militar de Madina do Boé. Em 1964-65, o sistema educacional do PAIGC tinha 50 escolas com 4 mil alunos no total nas áreas libertadas; isso aumentou para 127 escolas com 13.361 alunos e 191 professores em 1965-66, e para 159 escolas com 14.386 alunos e 220 professores em 1966-67.
Num relatório de 1973 sobre o desenvolvimento do sistema educacional do PAIGC entre 1963-1973, o número total de quadros e estudantes treinados do Partido nas zonas libertadas foi registrado da seguinte forma:
“Hoje, o Partido dispõe de 164 escolas primárias em suas regiões libertadas, onde o ensino é ministrado por 258 professores, servindo um total de 14531 alunos, dos quais cerca de um terço são raparigas […] Hoje, em menos de dez anos, o PAIGC formou 36 quadros universitários, temos 46 quadros de educação técnica superior; 241 quadros de ensino profissional e especializado; 174 quadros políticos e sindicais; e 410 quadros na assistência sanitária. Além destes já formados, temos neste momento, a receberem no estrangeiro uma formação média e superior, 422 alunos, aos quais se juntarão mais 100 este ano.”
Uma abordagem militante para a educação
“Muitos países africanos declararam sua independência na segunda metade do século XX, liderados por seus movimentos de libertação e em interação com as lutas anticoloniais e anti-imperialistas em todo o mundo. O PAIGC, juntamente com a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), e outros, foi profundamente influenciado pelas ideologias comunistas e socialistas. A adoção do termo militante, por exemplo, para identificar membros particulares do Partido foi extraída das estruturas revolucionárias dos contemporâneos internacionais do PAIGC.”
“[…] Até à publicação do primeiro manual escolar em 1966, os professores do PAIGC tinham que lecionar utilizando manuais e materiais coloniais. Por exemplo, os professores tinham uma dupla tarefa ao usar o manual de ortografia do português: além de fundamentos como o ensino do alfabeto, também cabia a eles interpretar criticamente a mensagem que os livros em português transmitiam e reformulá-la de forma mais relevante para o universo dos alunos.
No entanto, para que isso acontecesse, os próprios professores tiveram que passar por um processo próprio de descolonização para desconstruir e desmantelar o saber colonial que lhes foi imposto pelo governo português. Embora o Partido tenha desenvolvido cursos de formação de professores que abordassem temas como a pedagogia e a aquisição de competências pedagógicas, o processo de tornar-se professor militante caracterizou-se, em grande medida, pelo reinvestimento e reavaliação por parte dos professores da sua própria formação e conhecimento. Muitas vezes, isso acontecia por meio de aprendizados precoces em sala de aula junto com seus alunos.”
“[…] Os currículos desenvolvidos para a formação do aluno militante compreendiam diversas disciplinas, da matemática ao aprendizado da língua portuguesa, ginástica, artes, geografia, ciências, teatro e música. Entre 1966 e 1974, o PAIGC desenvolveu quatro manuais escolares para o 1º até o 4º ano e quatro manuais para o 5º e 6º anos. Os materiais incluíam um manual sobre a história geral da África, um sobre a história da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, outro sobre lições políticas e, finalmente, uma tradução de Uma Breve História da Sociedade Pré-Capitalista (o primeiro volume de um estudo de dois volumes escrito por D. Mitropolsky, Y. Zubritsky, V. Kerov e outros, em 1965, na Patrice Lumumba Friendship University, em Moscou, URSS). Os manuais escolares do PAIGC foram criados coletivamente por professores e outros militantes e impressos em Uppsala, na Suécia, pela tipografia Wretmans Boktryckeri.
O Partido também desenvolveu uma série de meios de comunicação, incluindo jornais como o Jornal Libertação e o PAIGC Actualités internacional, em língua francesa. Além disso, desenvolveram uma revista para jovens, Blufo – Órgão dos Pioneiros do PAIGC que também foi amplamente lida por adultos. Os discursos transcritos e escritos de Cabral também foram utilizados como material didático. Outra iniciativa do Partido foi a Rádio Libertação, que transmitia diariamente notícias sobre a luta e contribuía para o programa de educação de adultos do PAIGC.”
“[…] Ao contrário dos materiais do passado, que representavam cenas longínquas do Portugal colonial, esses novos materiais e processos de aprendizagem incorporaram a geografia, vida social e organização dos territórios onde a luta pela libertação estava ocorrendo. Já se encontravam textos com títulos como Vida na Tabanca e As Profissões, este último revelando a estrutura e a organização social local. Houve também um foco em explicações científicas do mundo natural. As aulas abordavam as maravilhas da natureza, como os oceanos e a riqueza da vida botânica. O objetivo era desmistificar os fenômenos naturais, tendo o cuidado de não colocar em questão as crenças religiosas dos alunos. Outro tema importante explorado foi como utilizar os recursos naturais para o desenvolvimento do país de forma sustentável.”
“[…] No início da luta, o Partido e seus militantes compreenderam o papel crucial e o poder da educação para cumprir os objetivos da luta de libertação. Isso os levou a colocar em prática ideias e iniciativas revolucionárias como:
- Criar escolas nas zonas libertadas para jovens, adultos e combatentes. Além de ensinar a ler e escrever, e outras aprendizagens, as escolas enfatizavam o desenvolvimento de currículos de educação baseados nas realidades do povo e de sua luta.
- Realizar campanhas de mobilização para educar e aumentar a consciência política da população.
- Estabelecer a educação política como central no processo de libertação nacional e fundamentar a educação nas práticas anticoloniais e descoloniais.
- Desenvolver currículos e materiais escolares que refletissem a realidade da África em relação a outras lutas internacionais com o objetivo de cumprir os objetivos da libertação total.
- Valorizar a importância do trabalho dos professores, seu papel na vanguarda da luta e sua responsabilidade com o avanço do país.
- Estabelecer redes internacionais de apoio educacional. Isso incluiu países como Cuba, Hungria, Iugoslávia, URSS, Romênia, República Democrática Alemã, Checoslováquia e Bulgária, onde os alunos podiam continuar seus estudos técnicos e superiores, bem como treinamento de quadros.
- Produzir e publicar mídias por meio de suas próprias plataformas e canais de comunicação (jornais, revistas e rádios), que funcionaram como material educativo adicional ao longo da luta de libertação.”
Tudo isto, e o muito mais que o estudo contém, permite que Vaz-Borges conclua que:
“[…] A experiência do PAIGC de construir escolas na floresta, sua forma pioneira de educação política, o desenvolvimento de currículos emancipatórios específicos para seu contexto e o estabelecimento de redes internacionais de apoio a esse processo de educação são nosso legado e inspiração. São processos com os quais devemos aprender e avançar à medida que visualizamos e encenamos nossas lutas hoje.”
Para uma tentativa mais alargada de entendimento sobre o que se passou, se passa, e como se passou e se passa, convém recordar que a 20 de janeiro de 1973, Amílcar Cabral foi assassinado “com três tiros da PIDE (Polícia Internacional e Defesa do Estado Português)” junto à sua residência em Conacri.
Que a 18 de janeiro de 1995, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a pedido do governo da Guiné-Bissau, introduziu o seu tão conhecido plano de austeridade para salvar a economia. O analfabetismo subiu para perto 50 por cento, segundo a UNESCO.
Para aqueles que veem a história como um movimento inexorável que, mais tarde ou mais cedo, acabará por conduzir a um destino certo, convém notar que, por vezes, o efeito da ação de um indivíduo pode mudar completamente essa inevitabilidade.
Recordemos por exemplo, para além dos casos atrás citados, a influência que teve para o processo de democratização que se lhe seguiu, o assassinato do almirante e Presidente todo poderoso do governo do já adoentado Franco em Espanha, Luis Carrero Blanco, por um atentado à bomba colocada pelo grupo separatista basco (ETA) à passagem da sua viatura no dia 20 de dezembro de 1973 (Operación Ogro, filme de Gillo Pontecorvo).
Dir-me-ão que mais tarde ou mais cedo tudo acabaria por conduzir à democratização em Espanha. Teoria que Doris Day certamente compartilharia: “Que será, será”.