(407) Os mediadores na Arte ou a Arte como mediadora
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Todo o belo é difícil, Sócrates.
Os eleitos, os escolhidos, aqueles que decidem sobre o que é o belo, são escolhidos não pelo conhecimento que tenham do que é belo, mas pelo fato de dizerem que ‘isto é bonito’, Oscar Wilde.
Arte é tudo aquilo de que se pode dizer que é arte, Daniel Boorstin.
A Beleza não tem qualquer serventia, nem há qualquer necessidade cultural dela. Contudo, a civilização não passa sem ela, S. Freud.
Trabalhar é arte, fazer dinheiro é arte, fazer um bom negócio é a melhor arte.
Kant, os juízos sobre o gosto, o sublime e a antinomia do gosto.
Para Hannah Arendt, existia uma diferença fundamental entre trabalho (work) e labor (labour). Labor que era a forma “natural” que permitia ao homem prover às meras necessidades da sua sobrevivência ao extrair da Natureza produtos prontos a consumir, e trabalho era a atividade resultante da forma “artificial” com que o homem se relacionava com a Natureza através da fabricação.
O trabalho surgia assim como a atividade que iria permitir construir um Mundo durável (o Mundo como lugar artificial, construído pelas mãos humanas, por oposição à Terra como ambiente natural colocado à nossa disposição). Esta transformação que o trabalho aplica sobre o meio natural tem em vista o uso (ex.: cadeiras, mesas) e não o consumo (ex.: alimentos), o que faz com que do trabalho resultem objetos e não produtos para consumo.
Arendt considera que, no entanto, há alguns objetos do mundo que são fruto do trabalho, mas que não são destinados ao uso: as obras de arte, que são para serem contempladas. Há aqui uma relação de não uso, de conservação.
Talvez por isso sejam as obras de arte os objetos mais duráveis do mundo, os mais mundanos (feitos para o mundo). Não são, portanto, para serem usados e consumidos de imediato. Daí considerar que um objeto é cultural dependendo da duração da sua permanência, e isto para além do seu aparecimento se dever sempre a um ato de criação artística.
Conceitos como os de Hanna Arendt foram relativamente pacíficos, até à altura em que entraram na mediação os novos agentes do mercado.
Dizia A. Warhol que “o artista é alguém que faz coisas que não são necessárias”, acrescentando que “ser bom a negociar é a arte mais fascinante”.
Estas duas afirmações deixaram de ser contraditórias no atual mercado de arte, porquanto trabalhar é arte, fazer dinheiro é arte, fazer um bom negócio é a melhor arte. Os novos patrões fazem e asseguram que as pessoas sintam a necessidade de possuir (e pagar) precisamente o que os artistas “querem” criar, pelo que a arte se transforma num bom negócio.
Descodificando: passam a ser os novos patrões os mediadores a ditarem quais serão as criações artísticas que terão mais procura, e qual o tipo de criação artística que será melhor para o negócio.
E o que estes novos agentes do mercado pretendem é que os seus produtos sejam consumidos o mais rapidamente possível para assim obterem um lucro imediato. O destino dos produtos culturais são hoje, conscientemente ou não, decididos pelas contas bancárias e possibilidades de crédito do número de clientes potenciais.
A linha divisória entre a “arte com sucesso”, ou seja, a arte que desperte a atenção do público, e a “arte sem sucesso”, pobre ou ineficaz, que não consegue ser exposta nas galerias conhecidas e com clientela certa, é traçada tendo em conta as estatísticas das vendas, a frequência das exposições e os lucros obtidos.
Atualmente, os preços pagos pelas obras dependem da popularidade do artista (como diz Boorstin: “célebres são pessoas que são famosas por serem famosas”, “um bom livro é um livro que se vende bem, porque é muito vendável”), dos órgãos de informação (tv, jornais e agências responsáveis por promover o artista, levá-lo aos olhos do público), e dos nomes das galerias que as passam.
Mas não são só estas instituições que adicionam mais valor às obras. A instituição mais vocacionada para acrescentar valor é a da “vernissage”, que promove “events” de curta duração, mas fortemente badalados, uma superprodução nos multimédia.
Estes “events” envolvem muito menos riscos do que aqueles que as galerias correm, pois ao serem de curta duração não necessitam da lealdade dos clientes, ao que se acresce o facto dos produtos expostos serem logo para serem vendidos na ocasião, o que lhes diminui as despesas.
Segundo Boorstin, os events “atraem as atenções das massas porque as massas lhes prestam atenção, da mesma forma que vendem um enorme número de bilhetes porque há longas filas para esses bilhetes”.
Cabe, contudo a G. Steiner a melhor definição dos events ao dizer que eles são feitos para “terem o máximo impacto e obsolescência instantânea”.
Este “consumo imediato” está em contradição com a natureza da criação artística e com a finalidade da arte. Um mercado de consumo para satisfazer as necessidades de longo prazo é uma contradição!
Citando Kundera: “A missão da arte é ser uma segurança que temos para evitar que nos esqueçamos de ser”.
Acontece que a cultura atual não tem população para ser “iluminada” e para enobrecer (como nas Luzes). Tem clientes para seduzir. A sua função não é a de satisfazer as necessidades existentes, mas sim a de criar novas necessidades, tendo, contudo, o cuidado de as manterem sem serem preenchidas, evitando assim que se obtenha a satisfação total. É que um cliente totalmente satisfeito pode não vir a ter espaço para novas necessidades.
A cultura hoje foca-se na resolução das necessidades individuais de acordo com a liberdade de escolha individual; não está interessada em estabelecer normas ou regulamentações, e sim em dedicar-se a aplanar o caminho para as tentações e atrações, para a sedução; preocupa-se com a produção de novas necessidades e desejos e não com o dever.
Não esquecer que a atual economia orientada para o consumo baseia-se num excesso da oferta, na sua rápida obsolescência e na manutenção do poder de sedução.
Tornam-se hoje bastante claros os mecanismos em que a Arte se envolveu, pelo que a compreensão da arte contemporânea talvez seja a porta para o entendimento do seu percurso e importância na sociedade.
Mas nem sempre foi assim. Houve quem se preocupasse, quem elaborasse, quem pensasse.
Um dos problemas que desde o início se pôs relativamente à arte, era o de saber se se gostava de uma coisa por ela ser bela, ou se era ela bela em si independentemente de se gostar dela. Ou seja, o que era o belo.
Vai ser no Hípias Maior que se relata que Sócrates resumira o diálogo sobre o belo citando um provérbio grego segundo o qual “todo o belo é difícil”. A principal dificuldade vinha de como se conseguir conciliar o belo como ideia objetiva, com o prazer subjetivo que extraíamos das coisas belas.
Para o mundo das Formas de Platão, a beleza nas coisas é um resíduo/aparência da perfeição, residindo a perfeição da beleza no belo, supremo inteligível. Se a rosa é bela, é porque o seu “ser” belo subsiste pelo ideal do belo, de que o belo sensível da rosa se aproxima.
E no Banquete, vai dizer-nos que a reconciliação do belo como ideia objetiva, com o prazer subjetivo que extraímos das coisas belas, é tornado possível apenas através de Eros, caindo sobre ele a enfase da experiência e do prazer que se tira do belo.
Contudo, este alinhamento platónico do belo e de Eros, vai ser contrariado por Aristóteles que, na Metafísica, opta antes por definir mais objetivamente o belo, sustentando que “as principais formas do belo são a ordem e a simetria”.
É esta diferença de abordagem que leva a uma distinção entre subjetividade e objetividade na interpretação do belo, e que ainda hoje continua viva.
Na filosofia medieval, mesmo apesar de o belo ser classificado como fazendo parte de um dos transcendentes, prevaleceu o critério da objetividade quando lhe concedem atributos como o Bom e o Verdadeiro, que se unificavam na Perfeição Absoluta. São Tomás de Aquino resume as três condições do belo como sendo a “Integritas ou perfeição…devido à proporção ou harmonia [consonatia]; e finalmente, luminosidade ou claridade [claritas] …”. Estas eram as condições que permitiam “converter” o belo nos outros transcendentes: Integritas com o Único, consonatia com o Bom e a claritas com o Verdadeiro.
Leibniz vai depois combinar esta visão do belo como transcendente com a experiência do prazer, ao insinuar que é esta visão objetiva do belo percebida de forma obscura que está na base subjetiva do prazer. Uma substituição do Eros de Platão por uma obscuridade enigmática que apesar de tudo nos encanta. Caminho aberto para os seus sucessores não resistirem à tentação de exagerarem, quer os aspetos objetivos quer os aspetos subjetivos do belo.
Kant, que nasceu para pôr ordem nas coisas, que já tinha deixado Deus fora do seu sistema de entendimento por não se integrar em nenhuma das suas categorias, ao debruçar-se sobre o problema do belo, vai seguir na sua Crítica da Faculdade do Juízo uma linha em que o juízo sobre o belo, os chamados juízos sobre o gosto, passam a ser rigorosamente definidos de acordo com uma tabela de categorias, a saber:
. (qualidade) segundo a qual o belo “é o objecto de um prazer sem interesse” (§5), querendo com isto dizer que o prazer que retiramos da contemplação de um objeto deve ser desinteressado, não ligado a qualquer interesse útil, económico, moral e dos sentidos. Assim, se um quadro representar uma pintura de um fruto, se dissermos que ele é belo porque nos estimula o apetite para o saborearmos, então ele não é esteticamente belo: tem de nos dar satisfação sem referência a desejo. O sentimento estético não deve estar interessado pela posse do objeto, mas somente pela sua contemplação.
. (quantidade) segundo o qual o belo “agrada universalmente sem conceito” (§9), querendo com isto dizer que, apesar do belo ser um sentimento subjetivo sem hipótese de demonstração objetiva, não tendo por isso um valor universal, pelo facto de o livre jogo de faculdades que se encontram em mim como em todos os outros meus semelhantes (a imaginação e o entendimento), o sentimento do belo pode aspirar à universalidade.
. (relação) segundo o qual o belo é “forma da finalidade de um objecto…percepcionada por ela própria, independente da finalidade que possa ter”, em que é belo o que dá a impressão de ter sido realizado segundo uma intenção, se bem que tal intenção não se possa provar. É o caso de uma flor: nós sentimos sem conceitos, que existe uma finalidade na flor, mas não sabemos qual é essa finalidade. O belo aparece-nos como uma espécie de fenómeno absoluto, sem outro fim que não seja o puro esplendor da sua própria manifestação, fim em si mesmo.
. (modalidade) segundo o qual o belo é “o objecto de um comprazimento necessário…independente do conceito” (§22), postulando assim o assentimento de qualquer um. Como os juízos estéticos não podem ser comunicados por conceitos ou por apelarem por uma regra lógica universal, a sua comunicabilidade só poderá ser feita pelo “senso comum”, única forma de poder levar qualquer um a aprovar também o objeto que eu declarei como sendo belo.
Pelo que a natureza do belo é apresentada por Kant quer em termos de negação da sensibilidade ou de conceito, quer em termos paradoxais como o de finalidade sem fim. Ao separar o belo de qualquer conceito, quer racional quer sensível, vai limitá-lo: ao retirar o conceito de sensibilidade, então o objeto não poderá ser belo mas apenas agradável; a existir um conceito, então o belo seria convertível em algo de racional.
A influência desta teoria de Kant sobre o belo tem sido enorme, curiosamente porque contem sempre pelo menos um qualquer significado para qualquer um, desde a sua tentativa de servir de ponte entre a natureza e a liberdade, até à justificação para a arte abstrata (o belo livre que vai libertar o artista do espartilho da simetria).
A teoria de Kant sobre o belo continua, pois, ainda hoje, a servir como referência para qualquer reflexão filosófica sobre arte, e curiosamente, não apesar das suas inconsistências e reservas, mas exatamente por causa delas.
Mas Kant também se deve ter apercebido destas inconsistências (por mais que se queira ser objetivo, a subjetividade encontra-se sempre pronta para reaparecer) e reservas (será possível por fim trazer Deus para um sistema de entendimento?), porquanto vai de seguida debruçar-se sobre os temas do sublime e da antinomia do gosto.
Começa por notar que o belo e o sublime, têm na sua base o juízo de gosto, “ambos aprazem a si próprios” e que o comprazimento no sublime, tal como no belo,” não se prende a uma sensação como a sensação do agradável, nem a um conceito determinado como o comprazimento no bem”. Anunciando-se como juízos “universalmente válidos com respeito a cada sujeito, se bem que na verdade reivindiquem o sentimento de prazer e não o conhecimento do objeto”.
Quanto ás diferenças entre eles, Kant nota que o belo diz respeito à forma do objeto, que se carateriza pela “limitação”, enquanto o sublime diz respeito ao que é “informe”, indeterminado, ilimitado, e como tal origina em nós o sentimento do infinito. “O belo parece ser considerado como apresentação de um conceito indeterminado do entendimento, enquanto o sublime como apresentação de um conceito semelhante da razão. Portanto, o comprazimento é ligado ali à representação da qualidade, aqui, porém à da quantidade.”
Ao contrário do belo, o sublime não tem objeto e desorbita da ordem das coisas, nunca se encontrando nas formas sensíveis, mas unicamente dizendo respeito às ideias da razão.
O sublime tem que ver com o “absolutamente grande”, “o que é grande acima de toda a comparação”, que se pode ainda diferenciar entre o imensamente grande (ao imaginarmos o infinito das galáxias, o infinito das vagas dos oceanos) e o imensamente potente (quando deparamos com terramotos, maremotos, vulcões). Perante o imensamente grande e o imensamente potente, o homem sente o contraste da sua pequenez e fragilidade.
Kant admite que é apenas na experiência estética da natureza que o homem apreende as suas limitações ônticas quanto a possibilidade de as transcender. Não constituindo uma via para o conhecimento, a experiência estética faz-nos, todavia, imaginar e pensar uma ordem transcendente para o mundo que torna possível, pelo livre jogo das nossas faculdades, a perceção de uma harmonia como se fosse existente na natureza.
Aquilo a que Kant chama o prazer pelo belo tem a sua fonte no agir livre da nossa imaginação, pelo qual experienciamos, em primeiro lugar as relações de harmonia das nossas faculdades e, em segundo lugar, a harmonia que projetamos para o exterior e colhemos na natureza. Ou seja, “o objeto que contemplamos é o fruto da atividade projetiva da subjetividade que o constitui.”
Contemplá-lo é ver nele a unidade formal que descobrimos em nós, o resultado do jogo harmonioso livre das nossas faculdades. Está aqui a origem do nosso prazer estético e o fundamento do nosso sentimento comum do belo, sentimento que Kant defende existir e sem o qual seríamos incapazes de formular quaisquer juízos de gosto.
E sobre este senso comum, escreve:
“O primeiro lugar-comum do gosto está contido na proposição com a qual cada pessoa sem gosto pensa precaver-se contra a censura: cada um tem o seu próprio gosto. Isto equivale a dizer que o princípio determinante deste juízo é simplesmente subjetivo (deleite ou dor) e que o juízo não tem nenhum direito ao necessário assentimento de outros.”
Um segundo lugar-comum a expurgar, o de alguns considerarem que “não se pode disputar sobre o gosto”, o que significa “que nada pode ser decidido sobre o próprio juízo através de provas, conquanto se possa perfeitamente e com direito discutir a esse respeito”.
A conclusão que Kant tira sobre estes lugares-comuns é que lhes falta a seguinte proposição:
“Pode-se discutir sobre o gosto (embora não disputar)”, pelo que teremos sempre que contar “com fundamentos do juízo que não tenham validade simplesmente privada e, portanto, não sejam simplesmente subjetivos; ao que se contrapõe precisamente aquela proposição fundamental: cada um tem o seu próprio gosto”.
Para a solução deste problema, Kant vai apresentar o que ficou conhecido como a antinomia do gosto:
Tese: “o juízo do gosto não se funda sobre conceitos, pois de contrário poder-se-ia disputar sobre ele (decidir mediante demonstrações)”.
Antítese: “o juízo do gosto funda-se sobre conceitos, pois de contrário não se poderia, não obstante a diversidade do mesmo, discutir sequer uma vez sobre ele (pretender a necessária concordância de outros com este juízo)”.
Não há outra maneira para resolver a antinomia a não ser demonstrar que o conceito não tem o mesmo significado na tese e na antítese.
Para Kant é verdadeiro não ter o gosto qualquer apoio num conceito determinado; enquanto na antítese o apoio depende de um conceito indeterminado, pois contém um elemento a priori sem o qual o conceito não teria qualquer valor universal e necessário. Pelo que em síntese, é graças a um conceito indeterminado que o juízo d gosto pode pretender a universalidade, sem sacrificar a sua singularidade.
Diz Kant que “a contradição desaparece quando formulo que o juízo de gosto se funda sobre um conceito (de um fundamento em geral da conformidade a fina subjetiva da natureza para a faculdade do juízo), a partir do qual porém nada pode ser conhecido e provado acerca do objeto, porque esse conceito é em si indeterminável e inapropriado para o conhecimento, mas o juízo ao mesmo tempo alcança justamente por esse conceito validade para qualquer um (em cada um na validade como juízo singular que acompanhe imediatamente a intuição), porque o seu princípio determinante talvez se situe no conceito daquilo que pode ser considerado como o substrato suprassensível da humanidade”-
Pelo que o conflito desapareceria se escrevêssemos as proposições da seguinte forma:
Tese: o juízo de gosto não se fundamenta sobre conceitos determinados
Antítese: o juízo de gosto, contudo funda-se sobre um conceito conquanto indeterminado (nomeadamente do substrato suprassensível dos fenómenos).
É o recurso a esta ideia indeterminada do suprassensível que permite o encontro da ideia correta de gosto, “enquanto uma faculdade de juízo estética simplesmente reflexiva”.
Vai ser através deste ponto de vista da faculdade de juízo estética que Kant abordará a criação artística.
Recomendações:
Blog de 21 de outubro de 2020, com o discurso de aceitação de Harold Pinter à atribuição do Nobel de literatura de 2005, “Arte, Verdade e Política”.
Blog de 05 de junho de 2015, sobre crítica da arte, “Pintar a ternura”.
Blog de 29 de junho de 2016, sobre “A originalidade da cópia”.
Blog de 27 de maio de 2020, “Das categorias do Belo ao roubo como Arte”.
Blog de 10 de junho de 2020, “Arte e Poder. Arte na Igreja”.
Blog de 15 de junho de 2023, sobre as esculturas invisíveis, “Grau zero da arte”.
Da Lusosofia, “Os amores de Eros: a participação" de Américo Pereira.