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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(406) Lista de procedimentos para a eternidade

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Ser feliz, é ser sábio. Ser sábio, é ser feliz.

 

Apatia: indiferença ao prazer e á dor como ideal de vida.

 

Devo aos deuses terem-me dado bons avós, bons pais, uma boa irmã, bons mestres, bons aliados e amigos. Tudo, ou quase tudo, me foi favorável, Marco Aurélio.

 

O meu primeiro conselho seria o de escolherem os seus antepassados com cuidado, Bertrand Russell.

 

 

 

 

Quando o Cristianismo apareceu, não se constituiu logo como filosofia, mas como religião. O que significa que a filosofia cristã só aparece depois, como necessidade de os primeiros cristãos se explicarem aos membros cultos das sociedades em que pregavam, em particular aos que possuíam formação filosófica.

Caminhos, nem sempre iguais, que todas as sociedades vão percorrendo. É assim que, por exemplo, vimos a filosofia grega passar o seu centro que era a metafísica (Platão, Aristóteles) para a ética inicialmente aplicada à comunidade em que o homem se inseria, acabando depois por deslisar para a ética aplicada à vivência do homem singular.

Pelo que aos poucos, o tema central da filosofia vai passar a ser o da felicidade: ser feliz, é ser sábio. Ser sábio, é ser feliz. O verdadeiro sábio é aquele que contempla a verdade das coisas e, de mente tranquila, age de acordo com essa mesma verdade.

Neoplatonismo, ceticismo, epicurismo, estoicismo, são tudo escolas de pensamento que buscam responder, cada uma à sua maneira, ao que consideram ser necessário para se ser feliz. Concorrendo também à sua maneira com todas as outras, podemos mesmo incluir o cristianismo.

 

Fixemo-nos no caso do estoicismo (porque a sua ética foi largamente adotada pelo cristianismo), filosofia de vida seguida por grande parte da classe alta dominante, e que partia da existência de uma identidade total entre deus e o cosmos, em que deus aparecia identificado com a natureza (deus em minúscula como era referido nos seus textos).

Cícero, Da natureza dos deuses:

 

“[Zenão de Cítio provou que] o mundo é sábio, feliz e eterno; […] nada é superior ao mundo. Disto se conclui que o mundo é deus”.

“[…] assim, o milho  as frutas produzidas pela terra foram criados para bem dos animais e os animais foram criados para bem do homem […] o homem veio à existência com a finalidade de contemplar e imitar o mundo; ele não é perfeito de modo algum, mas é uma pequena partícula daquilo que é perfeito”.

 

Ora se o mundo é deus, então o mundo é perfeito, e tudo o que acontece nele tem um sentido. Isto conduz a um otimismo inabalável.

Se não nos integrarmos no todo, se nos situarmos antes no particular, podemos não compreender esse sentido que necessariamente existe. É esta compreensão que irá condicionar a ética estoica: a felicidade provém do cumprimento do dever que se tem para com o cosmos e não do gozo de qualquer natureza.

Daí que o seu ideal de vida seja a apatia, que significa indiferença ao prazer e á dor.

A vida boa, a que nos torna felizes, resulta, pois, de uma vida justa e honesta. A prática da virtude origina felicidade.

Séneca, Da vida feliz:

 

“[…] o homem feliz […] pratica aquilo que é honesto e contenta-se com a virtude; os acidentes da sorte não podem nem exaltá-lo nem quebrá-lo, não conhece bem maior do que aquele que se pode dar a si próprio; o seu verdadeiro prazer está no desprezo dos prazeres.”

 

Sendo todos os homens feitos da mesma massa (deus), a fraternidade entre os homens aparece como corolário. Todos somos cidadãos do mundo, desprezando quaisquer diferenças sociais.

Séneca, Da vida feliz:

 

A natureza ordena-nos que sejamos úteis aos homens: quer sejam escravos, ou homens livres, de bons nascimentos ou libertados, livres através do direito ou em virtude da amizade, que importa isso?

 

E a vida humana justa guia-se pela razão, que é no homem o que há de mais divino.

Séneca, Cartas a Lucílio:

 

As virtudes humanas […] medem-se por um único critério, e esse critério é a razão, que em si mesma é perfeita e livre de contingências […] A razão não é outra coisa senão uma parcela do espírito divino, inserido no corpo do homem. Se a razão é divina, e se todo o bem é inseparável da razão, então todo o bem é divino.”

 

Desta breve exposição se pode entender que o estoicismo era como que um manual possível para a felicidade que o homem podia encontrar em si mesmo: o homem bastava-se a si próprio.

Esta foi uma das razões porque o cristianismo não adotou totalmente a ética estoica: como Agostinho explicou mais tarde, um dos paradoxos dos humanos consistia no facto de embora serem finitos terem sede de infinito. Mas isto é outro tema.

 

Considerado como um dos últimos filósofos estoicos, Marco Aurélio (121 – 180), o imperador filósofo, teve uma infância e juventude privilegiada, conforme nos relata nos seus Pensamentos (1):

 

Devo aos deuses terem-me dado bons avós, bons pais, uma boa irmã, bons mestres, bons aliados e amigos. Tudo, ou quase tudo, me foi favorável”.

 

Mestres, teve dezassete: quatro gramáticos, quatro retóricos, um jurista e oito filósofos. Levou tão a sério as lições deles que aos doze anos, vestindo o grosseiro manto dos estoicos, exercitava-se a dormir na terra, sobre palha, e diz de si mesmo:

 

Conservei a flor da minha mocidade. Não procurei ser homem antes do tempo; pelo contrário, retardei essa data por mais tempo do que o necessário. […] E, mais tarde, quando fui tentado por um excesso de amor, depressa me curei.”

 

Faustina, a sua mulher, sabia-o muito bem pois herdara os gostos da mãe (a outra Faustina, mas de Antonino): ninguém hesitava em apontar os seus amantes. Marco Aurélio não queria saber disso, e, para desencorajar os falatórios ou por um conceito alargado de família, distribuía importantes funções aos presumíveis amantes.

Sobre o seu governo, comentava:

 

Nunca esperes realizar a República de Platão. Contenta-te em obter, em certa medida, uma melhoria da humanidade, e não julgues que isso seja pequena obra. Quem pode mudar a opinião dos homens? E sem uma mudança de sentimentos, que pode conseguir-se senão escravos que trabalham contra vontade e hipócritas?

 

E para realizar este equilíbrio aboliu os banhos mistos, proibiu que se pagasse exageradamente às vedetas da plebe – atores, condutores de coches, gladiadores – e exigiu que as armas do circo tivessem as pontas embotadas.

Quanto aos cristãos, continuaram a serem perseguidos (2), particularmente no resto do Império fora de Roma. Não se andava já à procura deles, mas se denunciados, eram julgados.

Um dos mais atrozes julgamentos ocorre durante o seu mandato, em Lião, por os cristãos se terem recusado a participar nas festas pagãs do solstício. Como não abjuraram, perto de cinquenta são condenados ao martírio, com feras, esquartejamento, e o mais. O célebre episódio da morte de Blandina é disso exemplo.

Não esqueçamos que a burocracia estatal romana não tinha como missão seguir os códigos morais do imperador: toda a máquina estava montada para a recolha de impostos.

Além do mais, por mais cultos que fossem o imperador e grande parte dos romanos influentes, tinham grande dificuldade em submeter a sua razão à autoridade de vinte e sete textos que nesse tempo a Igreja declarava constituírem o cânone. Como aderir a esse resumo de dogmas que era o símbolo dos Apóstolos? Como admitir que Jesus tivesse nascido de uma virgem? Que tivesse ressuscitado e que os fiéis, comungando, absorvessem o corpo de Cristo? Que num juízo final todos regressariam à Terra?

Posto perante o desempenho das suas funções na defesa do império e as suas convicções morais e religiosas, Marco Aurélio optou por relegar estas últimas para o seu diário de pensamentos. Um homem culto perfeitamente moderno.

 

Pertencendo também à classe culta bem-pensante e com linhagem constituída, Bertrand Russell, publicou em 1956, com 84 anos, o ensaio “Como Envelhecer” (How to Grow Old), na sua obra Retratos de Memória e Outros Ensaios (Potraits From Memory And Other Essays), que aqui traduzo:

 

 

“Apesar do título, este artigo será mesmo sobre como não envelhecer, que, na minha idade, é um assunto muito mais importante. O meu primeiro conselho seria escolher os seus antepassados com cuidado. Embora os meus pais tenham morrido jovens, relativamente aos meus outros antepassados, nesse aspeto saí-me bem. O meu avô materno, é verdade, foi ceifado ainda na flor da juventude, aos sessenta e sete anos, mas os outros meus três avôs viveram todos mais de oitenta anos. Dos antepassados mais remotos, só descobri um que não viveu até uma idade avançada e que morreu de uma doença que agora é rara, a saber, ter a cabeça cortada. Uma bisavó minha, que era amiga de Gibbon, viveu até aos noventa e dois anos, e até ao seu último dia permaneceu um terror para todos os seus descendentes. A minha avó materna, depois de ter nove filhos que sobreviveram, um que morreu na infância, e muitos abortos, logo que ficou viúva dedicou-se ao ensino superior feminino. Foi uma das fundadoras do Girton College e trabalhou duro para conseguir abrir a profissão médica ás mulheres. Costumava contar como conheceu na Itália um senhor idoso que parecia muito triste. Perguntou-lhe por que estava tão melancólico e ele disse-lhe que acabara de se separar dos seus dois netos. “Meu Deus”, exclamou ela, “tenho setenta e dois netos, e se eu ficasse triste cada vez que me separasse de um deles, teria uma existência miserável!” “Madre snaturale!”, respondeu ele. Mas falando como um dos setenta e dois, prefiro a receita dela. Depois dos oitenta anos, ela descobriu que tinha alguma dificuldade para dormir, pelo que costumava passar as horas da meia-noite às 3 da manhã lendo ciência popular. Não acredito que tenha tido tempo de perceber que estava a envelhecer. Esta, penso eu, é a receita adequada para permanecer jovem. Se você tem verdadeiros interesses e muitas atividades nas quais ainda pode ser eficaz, não terá motivos para pensar no facto meramente estatístico do número de anos que já viveu, muito menos na provável brevidade do seu futuro.

 

No que diz respeito à saúde, não tenho nada de útil a dizer, pois tenho pouca experiência com doenças. Como e bebo tudo o que gosto e durmo quando não consigo ficar acordado. Nunca faço nada com base no facto de que é bom para a saúde, embora, na verdade, as coisas que gosto de fazer sejam, na maioria das vezes, saudáveis.

 

Psicologicamente, há dois perigos contra os quais na velhice nos devemos precaver. Um deles é a dependência indevida no passado. Não vale a pena viver de memórias, com remorsos pelos bons velhos tempos ou com a tristeza por amigos que já morreram. Os pensamentos de alguém devem ser direcionados para o futuro e para coisas sobre as quais há algo a ser feito. Isso não é sempre fácil; o próprio passado é um peso que aumenta gradualmente. É fácil pensar consigo mesmo que as emoções costumavam ser mais vívidas do que são e a mente mais aguçada. Se isso for verdade, deve ser esquecido e, se for esquecido, provavelmente não será verdade.

 

A outra coisa a ser evitada é o apego à juventude na esperança de sugar o vigor da sua vitalidade. Quando os filhos crescerem, eles querem viver as suas próprias vidas, e se você continuar a interessar-se por eles como quando eles eram pequenos, é provável que se torne para eles um fardo, a menos que sejam extraordinariamente insensíveis. Não quero dizer que não se deva de interessar por eles, mas o interesse de alguém deve ser contemplativo e, se possível, filantrópico, e não indevidamente emocional. Os animais tornam-se indiferentes aos seus filhotes assim que eles podem cuidar de si mesmos, mas os seres humanos, devido à extensão da infância, acham isso difícil.

 

Acho que uma velhice bem-sucedida é mais fácil para aqueles que têm fortes interesses impessoais envolvendo atividades apropriadas. É nesta esfera que a longa experiência é realmente frutífera, e é nesta esfera que a sabedoria nascida da experiência pode ser exercida sem ser opressiva. Não adianta dizer aos filhos adultos para não cometerem erros, não só porque eles não vão acreditar em você, como porque os erros são uma parte essencial da educação. Mas se você é um daqueles incapazes de interesses impessoais, pode descobrir que a sua vida ficará vazia a menos que se preocupe com os seus filhos e netos. Nesse caso, deve perceber que, embora ainda possa prestar-lhes serviços materiais, como dar-lhes uma mesada ou tricotar suéteres, não deve esperar que eles gostem da sua companhia.

 

Alguns idosos são oprimidos pelo medo da morte. Nos jovens há uma justificação para esse sentimento. Os rapazes que têm motivos para temer serem mortos na guerra podem, com razão, sentir-se amargurados ao pensar que foram enganados quanto às melhores coisas que a vida tem para oferecer. Mas num velho que conheceu as alegrias e tristezas humanas e realizou qualquer trabalho que lhe cabia fazer, o medo da morte é um tanto abjeto e ignóbil. A melhor maneira de superá-lo -pelo menos é o que me parece- é tornar os seus interesses cada vez mais amplos e impessoais, até que pouco a pouco as paredes do ego se afastem e sua vida se funda cada vez mais na vida universal. Uma existência humana individual deve ser como um rio: pequeno a princípio, estreitamente contido nas suas margens e correndo apaixonadamente por rochas e cachoeiras. Gradualmente, o rio alarga-se, as margens recuam, as águas correm mais silenciosamente e, no final, sem nenhuma rutura visível, elas fundem-se no mar e perdem sem dor o seu ser individual. O homem que, na velhice, puder ver a sua vida dessa forma, não sofrerá com o medo da morte, pois as coisas de que cuida continuarão. E se, com a decadência da vitalidade, o cansaço aumenta, o pensamento de descanso não será mal recebido. Eu gostaria de morrer ainda a trabalhar, sabendo que outros continuarão o que eu não posso mais fazer e contente em pensar que o que era possível foi feito.”

 

 

Notas:

  • Escritos em grego, o seu verdadeiro título poder-se-á traduzir por Para mim mesmo, ou mais livremente por Para meu uso pessoal ou Considerações sobre si próprio.
  • Para se reconhecerem entre si, os cristãos usavam vários sinais: o sinal da cruz furtivamente esboçado na testa, nos braços, no peito, e o peixe desenhado nas paredes. O peixe, porque no tempo em que o grego era a língua corrente, a palavra icthus (peixe) dava as iniciais para Iesus Christos, Theou Uios Soter, ou seja, Jesus Cristo de Deus o Filho Salvador.

 

Recomendações:

 

No Youtube, podem ver a “Mensagem para as Gerações Futuras” (1959) de Bertrand Russel, https://www.youtube.com/watch?v=ihaB8AFOhZo.

 

O blog de 2 de junho de 2015, “Passado, presente, futuro: o fator J. C.”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/passado-presente-futuro-o-fator-j-c-1001.

 

O blog de 20 de julho de 2015, “Os intelectuais são sempre de direita”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/os-intelectuais-sao-sempre-de-direita-3138.

 

 

 

 

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