(404) “Às prostitutas do Café Photo de São Paulo”
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“Na realidade isso não aconteceu, mas é verdade”. “Realmente aconteceu, mas não está certo”.
A moralidade é a mais sinistra e ousada das conspirações, G. K. Chesterton.
O casamento é a mais sinistra e ousada das conspirações, Zizek.
O nosso único e verdadeiro paraíso é a sociedade capitalista existente e corrupta.
Vivemos num espaço social que vamos experienciando como um espaço sem mundo.
“Existe uma conhecida história judaica acerca de um miúdo que, depois do rabino lhe ter acabado de contar uma maravilhosa e antiga lenda, lhe perguntou: «Mas, isso aconteceu mesmo? É verdade?» Ao que o rabino lhe responde: «Na realidade isso não aconteceu, mas é verdade.» Esta afirmação da verdade simbólica «mais profunda» em contraste com os acontecimentos deveria complementar-se com o seu oposto: a nossa reação a muitos «sucessos espetaculares» só pode ser «Realmente aconteceu, mas não está certo.»
Por isso deveríamos de estar agradecidíssimos por qualquer sinal de esperança, por pequeno que pareça, como o da existência do ‘Café Photo’ de São Paulo. A publicidade apresenta-o como um «entretenimento com um toque especial», e é – segundo o que disseram – um lugar de encontro de prostitutas da classe alta com os possíveis clientes. Apesar de se tratar de um acontecimento perfeitamente conhecido por todo o mundo, esta informação não se publica nas páginas web: oficialmente, «é um lugar para encontrar a melhor companhia com que passar a noite.» Ali tudo acontece com um toque especial: são as prostitutas – quase todas estudantes de letras – que escolhem os clientes. Os homens (os possíveis clientes) entram, sentam-se a uma mesa, pedem uma bebida e esperam enquanto as mulheres os observam. Se uma delas entender que um deles é aceitável, vai sentar-se à sua mesa, deixa que ele a convida para uma bebida e inicia uma conversa sobre um tema intelectual, geralmente relacionado com a vida cultural, por vezes sobre arte. Se o homem lhe parecer o suficientemente brilhante e atrativo, pergunta-lhe se ele gostaria de se deitar com ela e diz-lhe o preço.
Trata-se de prostituição com um toque feminista, como não se tinha visto anteriormente; mesmo apesar de, como é o caso, o toque feminista ser compensado por uma limitação de classe: tanto as prostitutas como os clientes provêm todos da classe alta ou, no pior dos casos, da classe média alta. Assim que, humildemente, dedico este livro às prostitutas do ‘Café Photo’ de São Paulo.”
É assim que termina a “Introdução” do livro de Slavoj Zizek, Trouble in Paradise. From the End of History to the End of Capitalism (Problemas no Paraíso. Do Fim da História ao Fim do Capitalismo), em que começa por explicar porque escolheu tal título:
Trouble in Paradise (Ladrão de Alcova), é o título do conhecido filme de 1932 de Ernst Lubitsch, que conta a história de um casal de felizes ladrões, Gaston e Lily, que se divertem a roubar os ricos, até que Gaston se enamora de uma das suas vítimas, Mariette. Amando-a verdadeiramente, tal não será suficiente para que Gaston não continue com Lily, conforme se vê pelo companheirismo que demonstram no final mesmo que sirva apenas para encher o vazio da melancolia sentida.
Zizek reconhece poder haver outras interpretações, como a de G. K. Chesterton (o criador do Father Brown):
“O Paraíso, a vida boa, é antes a vida cheia de glamour e riscos, e a tentação pérfida vem da parte de Mariette, cuja riqueza contém a promessa de uma ‘dolce vita’ sem complicações e sem essa autêntica audácia ou subterfugio criminoso: nela só encontramos a radiosa hipocrisia das classes respeitáveis.”
O interessante desta interpretação é o facto de colocar a inocência paradisíaca do lado da vida glamorosa e dinâmica do crime, e de comparar a atração da respeitável alta sociedade com a tentação da serpente.
Assim, quando Gaston deixa Mariette e volta para Lily recuperando a sua condição de ‘fora de lei’, está a ser uma pessoa sensata, regressando à sua ‘classe social’ optando pela vida mundana que conhece. E, no entanto, fá-lo com imenso pesar, como se pode ver pelo prolongado diálogo final com Mariette.
O que leva Chesterton à comparação com o que se passa nas histórias de detetives:
“Em certo sentido impedem-nos de esquecer que a própria civilização é o desvio da norma mais sensacional e a rebelião mais romântica […] Quando, numa aventura policial, o detetive fica sozinho, e de um modo um tanto imprudente se mostra intrépido ante as facas e os punhos dos ladrões, isso serve para nos recordar que o agente da justiça social é a figura poética e original, ao passo que os ladrões e assaltantes de caminhos não são mais do que plácidos e antigos conservadores felizes na respeitabilidade imemorial dos primatas e dos lobos. O romantismo da polícia […] baseia-se no facto de a moralidade ser a mais sinistra e ousada das conspirações”.
Mas Zizek contrapõe, a propósito de Gaston e Lily:
“Acaso não vivem esses dois ladrões no seu paraíso antes da queda na paixão ética? O que aqui resulta fundamental é o paralelismo entre o delito (o roubo) e a promiscuidade sexual: e se no nosso mundo pós-moderno de transgressões programadas, em que o compromisso marital se entende como algo ridículo e de outra época, aqueles que se agarram a ele fossem os autênticos subversivos? E se hoje em dia o matrimónio convencional for ‘a mais sinistra e ousada de todas as transgressões?”
E, socorre-se do filme de 1933, também de Lubitsch, Design for Living (Uma mulher para dois), sobre uma mulher que vive uma vida satisfeita e tranquila com dois homens, até resolver casar-se com um deles. O casamento fracassa, e ela regressa à segurança da relação com os dois homens.
Aproveitando-se do que Chesterton escrevera sobre os detetives, Zizek vai substituir “civilização” por “casamento”, “aventura policial” por “par de enamorados”, o que faz com que o texto fique assim:
“Em certo sentido o casamento é o desvio da norma mais sensacional e a rebelião mais romântica […] Quando um par de enamorados proclama os seus votos matrimoniais, sozinhos, e de um modo um tanto imprudente se mostra intrépido entre as múltiplas tentações dos prazeres promíscuos, isso serve para nos recordar que o casamento é a figura poética e original, ao passo que os adúlteros e os que participam em orgias não são mais do que plácidos e antigos conservadores felizes na respeitabilidade imemorial dos primatas e dos lobos. O voto matrimonial […] baseia-se no facto de o casamento ser a mais sinistra e ousada das conspirações”.
Ambiguidade idêntica vamos encontrar nas opções políticas que hoje se fazem. O conformismo cínico diz-nos que os ideais emancipadores de maior igualdade, democracia e solidariedade são aborrecidos e mesmo perigosos, e conduzem a uma sociedade cinzenta e excessivamente regulamentada, sendo o nosso único e verdadeiro paraíso a sociedade capitalista existente e corrupta.
Contudo, o compromisso radical emancipador surge da premissa de que o que é aborrecido é a dinâmica capitalista, pois oferece mais do mesmo debaixo do disfarce de mudança constante, e que a luta pela emancipação continua a ser o mais audaz de todas os empreendimentos.
Zizek faz-nos notar que o “paraíso” que colocou no título do livro se refere ao paraíso do Fim da História como o pensou Francis Fukuyama (o capitalismo democrático e liberal como a melhor ordem possível) já não corresponde, em absoluto, aos tempos de crise atuais.
Serve-se do exemplo da Coreia do Sul conforme a descrição do teórico social italiano, Franco Berardi:
“A Coreia do Sul tem a mais alta taxa de suicídios do mundo […] Na Coreia do Sul o suicídio é a causa de morte mais comum dos que têm menos de quarenta anos […] Mais interessante ainda é observar que esta taxa de suicídios duplicou ma última década […] No espaço de duas gerações, não há dúvida que desde o ponto de vista de renda, nutrição, liberdade e possibilidade de viajar para o estrangeiro, as condições melhoraram muito. Mas o preço a pagar por esta melhoria foi a desertificação da vida quotidiana, a hiperaceleração do ritmo de trabalho, a extrema individualização pessoal e a precariedade laboral.
O capitalismo de alta tecnologia implica naturalmente uma produtividade continuamente crescente e uma permanente intensificação do ritmo de trabalho, mas também é a condição que tornou possível uma impressionante melhoria das condições de vida, nutrição e consumo […] Mas a atual alienação criou um tipo diferente de inferno. A intensificação do ritmo de trabalho, a desertificação da paisagem e a virtualização da vida emocional convergem para criar um nível de solidão e desespero, que se torna difícil de afastar e combater de maneira consciente.”
É como se vivêssemos num espaço social que vamos experienciando como um espaço sem mundo. Nem o antissemitismo nazi criou um espaço semelhante: apresentou a situação em que se encontrava como obra de um inimigo, uma “conspiração judia”; nomeou um objetivo e os meios para o conseguir alcançar. O nazismo revelou a realidade de uma maneira que permitiu aos seus seguidores adquirirem um “mapa cognitivo” global que incluía um espaço para o cumprimento desse objetivo.
Já este capitalismo, embora sendo global e abarcando todo o mundo, mantém uma constelação ideológica stricto senso sem mundo, privando a grande maioria das pessoas de qualquer tipo de mapa cognitivo significativo.
Condições que são propícias para o ressurgimento do superego que, conforme as sociedades, poderão originar uma permissividade pós-moderna e um novo fundamentalismo. Na Europa, uma vez que esta modernização se estendeu ao longo de séculos, houve tempo para adaptação, através de novos relatos e mitos sociais. Noutras sociedades que não tiveram essa proteção temporal, os seus universos simbólicos viram-se brutalmente perturbados sem tempo para estabelecerem um novo equilíbrio simbólico, de que o “fundamentalismo” (a religião como conhecimento do Real divino) é um dos exemplos ou, como no caso da Coreia, numa aculturação desastrosa.