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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(400) Os murmúrios da Terra

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

O conhecimento é uma coprodução.

 

Os humanos não são os únicos que podem alterar o curso da história.

 

Uma descrição para ser realista tem de comportar uma quantidade heterogénea de atores, ou seja, tem de ser pluralista.

 

É sempre possível reduzir uma coisa a outra, desde que se tenha suficiente suporte ou aliados.

 

Bruno Latour, o filósofo que abraçava muitas verdades, desde que nenhuma delas fosse universal.

 

 

 

 

Eis dois excertos que parecem saídos de um caderno de notas de espionagem industrial farmacêutica:

 

Capítulo 1

 

5 minutos. João entra e vai para o seu local de trabalho. Diz rapidamente qualquer coisa sobre ter feito um erro grave. Ele já enviara uma revisão do estudo … O resto da frase tornou-se inaudível.

5 minutos 30 segundos. Bárbara entra.  Pergunta ao Spencer sobre qual o tipo de solvente para pôr na coluna. Spencer responde-lhe do seu lugar. Bárbara sai e vai sentar-se no seu banco.

5 minutos 35 segundos. Jane entra e pergunta ao Spencer: ‘Quando preparas uma intravenosa com morfina, fazes com solução salina ou água?’ Spencer, que aparentemente está na sua mesa a escrever, responde-lhe de lá. Jane sai.

6 minutos 15 segundos. Wilson entra e olha para os locais de trabalho, para ver se consegue pessoas em quantidade suficiente para uma reunião de trabalho. Recebe apenas vagas promessas. ‘É um problema de 4.000 dólares que precisa de ser resolvido nos próximos dois minutos’. Sai para o lobby.

 

Na página seguinte, continua a descrição do local de trabalho:

 

Todas as manhãs, os trabalhadores chegam ao laboratório trazendo os almoços em sacos de papel pardo. Os técnicos começam imediatamente a preparar ensaios, montando mesas cirúrgicas e pesando produtos químicos. Recolhem dados de contadores que trabalharam durante a noite. As secretárias sentam-se frente à máquina de escrever e começam a rever manuscritos que estão inevitavelmente atrasados ​​para cumprir com os prazos de publicação. Os funcionários, alguns já tinham chegado, entram um a um na área do escritório e trocam brevemente informações sobre o que deve ser feito durante o dia. Depois de um certo tempo, saem e vão para as suas bancadas. Zeladores e outros trabalhadores entregam remessas de animais, produtos químicos frescos e maços de correspondência. Diz-se que o esforço total do trabalho é guiado por um campo invisível, ou mais particularmente, por um quebra-cabeças, cuja natureza já foi antecipadamente decidido e que pode ficar resolvido hoje.

 

Estes excertos foram retirados do livro Laboratory Life: The Construction os Scentific Facts, escrito em 1986 por Bruno Latour e Steve Woolgar, com introdução e edição de Jonas Salk (sim, o tal da vacina contra a poliomielite) tendo por base o trabalho de campo feito por Latour no laboratório Roger Guillemin do Salk Institute.

Uma aproximação antropológica à cultura do cientista em que Latour vai apresentar o conhecimento científico como uma construção deliberada, um produto de várias interações sociais, políticas e económicas, em constante competição.

O seu método implicava seguirmos todos os intervenientes (os atores), humanos e não-humanos, a interagirem e a fazerem coisas uns aos outros, em vez de nos focalizarmos nas oposições artificiais previamente estabelecidas, como por exemplo, as entre sujeito e objeto.

Como esta oposição entre sujeito e objeto está no cerne da ciência positivista, segundo a qual num mundo objetivo os factos estão apenas à espera para serem descobertos, e uma vez descobertos tornam-se permanentes, o escândalo foi enorme: aparentemente, Latour estava a pôr em causa as leis da física considerando-as uma mera construção.

Mas Latour não duvidava das leis da física, ele queria apenas era saber de onde é que elas vinham, o que era bastante mais do que acreditar que elas “estavam à espera para serem descobertas”.

E o que ele verificou no seu trabalho é que aquilo que os cientistas chamavam de “ciência pura”, dependia de um enorme conjunto de uma rede de atividades não-científicas: instrumentos técnicos, fundações, debates, curiosidade, colegialidade, batalhas legais, etc.

A aparente “solidez” dos factos estava dependente de uma rede continuada de suporte do aparelho social, tanto no laboratório como entre os corpos profissionais exteriores.

E da mesma forma que cada ramo da ciência raramente soluciona por si só os problemas – a física necessita da álgebra, a sociologia necessita da geografia ou da estatística -, tal faz com que uma descrição para ser realista tenha de comportar uma quantidade heterogénea de atores, ou seja, tem de ser pluralista.

É este pluralismo de Latour que faz com que para ele tudo seja um trabalho em progresso, uma aliança de coisas negociáveis. Por exemplo: “uma cerimónia religiosa pode alcançar a sua desejada realidade – como modo de existência religiosa – através da aliança de uma congregação, uma representação de Deus, palavras sagradas, artefactos e ícones, música, cheiro do incenso. É um trabalho em progresso. A sua realidade pode ser dada por antecipação ou resumida, reduzindo-a então a dogma.”

 

Mas Latour também sabe que é sempre possível reduzir uma coisa a outra, desde que se tenha suficiente suporte ou aliados. É o caso dos fundamentalistas religiosos, para os quais “tudo” pode ser reduzido ao desejo de Deus. Ou quando se pretendeu demonstrar que a Terra andava à volta do Sol, e foi necessário encontrar-se um forte suporte secular. Ou quando as companhias de tabaco, os conglomerados petroquímicos e outros, resolveram com os seus bem pagos cientistas criarem realidades alternativas para defenderem a sua acumulação de riqueza.

Todos esses inimigos das “verdades inconvenientes”, onde se inclui a ideia de que fumar causa cancro, ou que o queimar combustível fóssil provoca alterações climatéricas, atacarão sempre que pressentirem uma fraqueza.

Latour reconhece os perigos desta “era de pós-verdade” respondendo que os nossos problemas ecológicos não serão resolvidos tratando o clima como um fenómeno objetivo, mas sim focalizando-os nos modos como as alterações climáticas estão ligadas à política e aos interesses dos grandes negócios.

 

Na sua evolução, Latour começa a perceber que ver, ou interpretar, a sociedade apenas como sendo composta por um grupo de atores que verdadeiramente interessa (os humanos) era reducionista, perante a enorme quantidade de atores não-humanos que não controlávamos.

E para ele, o reducionismo era arrogância epistémica. Que se vê quando um físico se ri de alguém que não se apercebe imediatamente que “tudo é feito de átomos”; ou quando um psicólogo social, após um estudo rápido sobre a missa católica, reduz a crença religiosa a “comportamento humano”; ou quando um assistente político especializado diz ao mundo “É a economia, estúpido”.

 

Para tentar resolver de uma forma não-reducionista as relações que ocorriam na sociedade, Latour publica em 1996 um estudo, a teoria do ator-rede (“On actor-network theory: a few clarifications”) onde propõe uma nova maneira de ver um mundo onde se reconhecem como agentes também todos os não-humanos: objetos, máquinas, animais, plantas e a Terra. Só assim se poderá saber “o que se passa” quando um cientista faz uma descoberta.

Dá como um dos exemplos a descoberta da penicilina em 1928, quando ao voltar de um feriado, o doutor Alexander Fleming reparou que uma placa de Petri estava coberta com um bolor que tinha impedido que a bactéria se desenvolvesse. Naquele momento, qual era o agente mais importante, Fleming ou o bolor? Ou a relação de ambos?

Para Latour era-lhe indiferente a atribuição dessa importância. Importante era reconhecer que os humanos não eram os únicos que podiam alterar o curso da história. Tratava-se de uma proposta radical, em que os não-humanos eram incluídos na “sociedade”. Ao ver a ciência desta forma, Latour estava a sugerir que o conhecimento era uma coprodução.

 

O passo para a ecologia política era curto: Latour sugere que aos não-humanos devia ser permitido votar. Passou a lutar para trazer os não-humanos para a sociedade democrática dos humanos, da mesma forma que as mulheres outrora tiveram que lutar para entrar na sociedade dos homens.

Segundo ele, se se deve construir uma barragem, então o salmão que migra rio acima deve ter uma palavra a dizer, mesmo que os seus interesses sejam expressos por meio de descrições detalhadas apresentadas por cientistas especializados.

 No auge da modernização em meados do século 20, as barragens foram construídas sem nada perguntar aos seres afetados, como o salmão. Agora, ao que parece, há uma “lógica” convincente na maneira como o salmão “pensa” sobre os fluxos dos rios. A partir dessa perspetiva, o conceito antes fundacional de sociedade – tão essencial à antropologia, à sociologia e à política – começa a perder o seu poder descritivo ou analítico.

A sociedade não está apenas objetivamente “lá” e não é composta apenas por pessoas. Segundo Latour, a sociedade é uma rede de associações a serem compostas, a serem negociadas entre seres que falam línguas diferentes. Ele sempre quis conhecer como é que estas redes funcionam.

A sua maneira de pensar permite-nos escapar aos círculos das disciplinas que até aqui se têm autovalidado, dando-nos “esperança numa nova civilização, uma na qual se ponha de lado a soberba do senhorio humano e permita a aprendizagem das ‘linguagens’ dos rios, das montanhas, dos gasodutos, dos macacos, das bonecas de voodoo, dos vírus. Dos muitos murmúrios da Terra.

Bruno Latour, falecido em outubro de 2022, apesar de apresentado pelo The New York Times como o “the Post-Truth Philosopher”, gostava bastante mais de ser visto como o filósofo que abraçava muitas verdades, desde que nenhuma delas fosse universal. Tinha razão.

 

 

Notas:

 

No blog de 31 de janeiro de 2018, “O paradigma do paradigma”, pode-se ler que Thomas Kuhn (A Estrutura das Revoluções Científicas) refere “a ciência é obra de comunidades científicas, sendo essa comunidade que define não só o meio de solucionar os problemas, como também os problemas que convém resolver.”

 

Interessante também ver uma exposição de arte (Symbiosia) num bosque que visa mostrar visualmente a relação simbólica com as árvores nesta época de alteração climática.

 

E o estudo “Parasitic infection increases risk-taking in a social, intermediate host carnivore” publicado na Communications Biology de 24 de novembro, pretende provar que a grande maioria dos chefes das alcateias de lobos estão infetados por toxoplasmoses, e que é por isso que assumem condutas mais arriscadas. Ou seja, é “um parasita que elege qual será o lobo chefe”.

 

 

 

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