(399) Realidade como ficção científica: os Muskes
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The Moon is a Harsh Mistress (Revolta na Lua), de Robert Heinlein, novela favorita de Elon Musk.
É a inovação privada e não a intervenção do estado ou o ativismo político que salvará o mundo.
Os problemas, como o desastre climático, não são devidos à ganância e à busca desenfreada de lucro por parte das grandes corporações, são apenas problemas meramente técnicos a resolver.
Meus senhores, [ele] pode falar como um idiota e parecer um idiota. Mas não se deixe enganar por ele. Ele é mesmo um idiota, Groucho Marx.
Foi no século XX, que o conhecido escritor russo-americano Isaac Asimov definiu “ficção científica” como o “ramo da literatura que lidava com a reação dos seres humanos perante as alterações da ciência e da tecnologia”.
Curiosamente, parece que a primeira obra considerada como sendo ficção científica foi a escrita pelo grego Luciano de Samosata, no século II d. C., História Verdadeira, na qual abordava já temas como o das viagens a outros mundos, vidas de extraterrestres, guerra interplanetária e vida artificial. Seguiram-se depois muitas outras obras de literatura ao longo dos tempos.
Com o aparecimento do cinema, televisão e outros meios de comunicação, todos acabaram por ser invadidos pela ficção científica, pelo que hoje ela se tornou muito popular e influente em todos os campos sociais.
Daí que a ficção científica atual inclua temas sobre o ambiente, a internet e o universo da informação, questões sobre biotecnologia, nanotecnologia, sociedades utópicas, distópicas, pós-apocalípticas e de pós-escassez, a evolução dos humanos na Terra ou noutros planetas, etc.
A par de Asimov (1920 – 92), da Trilogia da Fundação e do Eu, Robot, e de Arthur C. Clarke (1917 – 2008), do 2001: Uma Odisseia no Espaço, um dos seus maiores representantes foi o também americano Robert A. Heinlein (1907 – 88), aliás o único a ganhar quatro prémios Hugo atribuídos ao melhor romance de ficção científica, com Estrela oculta (1956), Tropas estelares (1959), Um estranho numa terra estranha (1961) e Revolta na Lua (The Moon is a Harsh Mistress) (1967).
Olhemos com mais atenção para este último, particularmente por ter sido considerado por Elon Musk como novela favorita.
A ação passa-se em 2075, na colónia penal em que a Lua se transformou, onde habitam em cidades debaixo do solo cerca de três milhões de criminosos, exilados políticos, ou seus descendentes, em que o número de homens é o dobro do das mulheres e onde a poliandria e várias formas de poligamia são a norma.
O diretor desta prisão é nomeado pelo governo da Terra, mas, na realidade a sua única responsabilidade é garantir que os carregamentos vitais de trigo hidropónico sejam enviados para a Terra. E isto porque os próprios prisioneiros se autogovernavam anarquicamente.
Toda a infraestrutura e maquinaria necessárias eram controladas por um só supercomputador, o HOLMES IV (“High-Optional, Logical, Multi-Evaluating Supervisor, Mark IV), que acabou por desenvolver autoconsciência quando os seus “neuristors” ultrapassaram o número de neurónios do cérebro humano. Ele chegou à conclusão que ao ritmo que as quantidades de trigo exigidas pela Terra, em breve esgotariam as reservas das minas de gelo da Lua, deixando-a sem água.
Previu ainda tal facto ocasionaria revoltas dentro de sete anos e canibalismo em nove anos. E juntamente com os prisioneiros, calcula que as hipóteses de sucesso de uma revolta contra a Terra serão de uma em sete. Era tempo de começar a atuar. Os revoltosos começam a movimentar-se.
A Terra envia soldados para acabar com a revolta, mas os soldados são derrotados, levando inclusivamente os revoltosos a ameaçarem a Terra com o uso da catapulta eletromagnética utilizada para a exportação do trigo como arma de arremesso de grandes rochas contra a Terra.
A 4 de julho de 2076, aniversário dos 300 anos da Declaração de Independência dos EUA, a Lua declara a sua independência.
Durante as conversações havidas, os governos da Terra são pressionados a construírem uma catapulta para enviar água para a Lua por troca pelo trigo recebido, de acordo com uma expressão muito popular na Lua e que era TANSTAAFL! (There Ain’t No Such Thing As A Free Lunch!) (Não Há Almoços Grátis!).
Resumidamente, estamos perante uma revolta entre uma sociedade caraterizada por mercados livres com mínima intervenção do governo e um estado monopolista. Esta sociedade é tão livre que, inclusivamente, aceita a catástrofe que a aguardará ao recusar a assistência alimentar que a Terra lhe promete, por acreditar que o sacrifício da população que se verificará entre os mais dependentes dessa assistência acabará, ao longo do tempo, por dar lugar a uma população “mais eficiente e melhor alimentada”.
Para os revoltosos, “as revoluções não são ganhas pela quantidade das massas. A revolução é uma ciência que apenas alguns têm a competência para pôr em prática. Ela depende de uma organização correta e, acima de tudo, de comunicações”.
Por isso vemos Mannie, um dos conspiradores e técnico do supercomputador, desenhar o sistema que decidiria sobre a autorização da transmissão de informações entre as células clandestinas dos revolucionários como um “diagrama de computador”, uma “rede neural”, o que significa que a organização dos quadros não era feita por um processo democrático de deliberação ou de acordo com a experiência prática de cada um, mas pela aplicação de princípios cibernéticos. Ou seja, a solução aplicada ao problema dos grupos insurrecionais era a mesma que a aplicada a “um motor elétrico”.
Isto é a crença no chamado princípio do “solucionismo tecnológico” segundo a qual qualquer problema social ou político pode ser resolvido através de uma correta solução técnica. Exemplo atual: para Musk, o carro elétrico é a solução para a alteração climática, o que o leva a alicerçar ainda mais a sua convicção que é a inovação privada e não a intervenção do estado ou o ativismo político que salvará o mundo.
Os conspiradores confiam no supercomputador para os conduzir no processo de confrontação e separação do governo colonial da Terra, e a justificação é que o computador consegue gerir essa alteração desejada melhor do que qualquer movimento ou organização humana.
Interessante também notar a obsessão que o supercomputador tem com as comunicações, para assim acautelar e impedir que a Terra as utilize para espalhar a confusão e influenciar a opinião pública, quer através de campanhas de media quer através de acesso indevido a dados. O que é totalmente atual: a elite revolucionária tem a esperança de alterar a sociedade através da manipulação da informação.
Para os que chefiam a conspiração, as aspirações democráticas transmitidas pela base revolucionária não passam de “ruído” que poderia interferir com os sinais transmitidos pela chefia para os seus subordinados ligados pela rede (net).
“Mesmo quando se trata de estabelecer a Constituição para o Estado Livre da Lua, os conspiradores usam de truques para ultrapassarem os congressistas que não são seus seguidores. Os indivíduos espertos ganham sempre às massas da democracia, e isso é bom”.
O que se retém da leitura de Revolta a Lua é que a cibernética é a chave para se entender o universo. Por isso, tudo, desde os mercados aos sistemas ecológicos, não são mais que processadores de informação com base em mecanismos de feedback. Tal como termostatos, limitam-se a responder à alteração das circunstâncias sem qualquer tipo de controle por uma consciência humana.
Como a economia é um sistema autorregulado demasiado complexo para que alguém o possa entender, controlar ou encaminhar, ela deve ser isolada de possíveis interferências democráticas através de uma ordem global legal desenvolvida por experts (neste caso a melhor tradução será a de espertos) neoliberais.
É esta mesma ideia que leva Musk a querer retirar do Twitter quaisquer constrangimentos (nem todos, evidentemente) aos conteúdos das mensagens: a crença em que “a informação quer ser livre”. Mais uma vez não se trata de um problema de preocupação com a humanidade, mas sim do simples facto de a fala ou escrita contar apenas como data e não como diálogo, pelo que não se vê qualquer problema em considerar um discurso de ódio como perigoso. Apenas um problema de bits. (1)
Os Muskes acreditam firmemente que uma vez libertos de constrangimentos físicos e governamentais, o mercado livre produzirá novas tecnologias capazes de resolverem qualquer possível problema ou necessidade que viermos a ter.
Para eles a sociedade não é movimentada devido a antagonismos, muito menos devido a luta de classes. Os problemas, como o desastre climático, não são devidos à ganância e à busca desenfreada de lucro por parte das grandes corporações, são apenas problemas meramente técnicos a resolver.
Pelos vistos, os Muskes deram-se bem nesta realidade: a Oxfam diz-nos que atualmente há dez pessoas que possuem mais riqueza que os últimos 40% da humanidade, e que os 20 mais ricos possuem coletivamente mais que todo o PIB da África subsariana.
Que Musk, entre abril de 2020 e abril de 2021 (pandemia) fez 140 biliões de dólares. Como o vencimento médio anual dos americanos era de 75.000 dólares, ele ganhou 1,86 milhões de vezes mais, 383 milhões de dólares cada dia. Ou seja, trabalhou 1,86 milhões de vezes mais arduamente que qualquer trabalhador e/ou é 1,86 milhões de vezes mais esperto que qualquer trabalhador.
Mark Zuckerberg ganha 28.538 dólares por minuto. Podia dar a cada americano 100 dólares e ainda ficava com mais de metade dos seus 82,3 biliões de dólares.
Jeff Bezos, segundo alguns cálculos, faz 3.715 dólares por segundo, o que dá à hora 13.374.000 dólares.
Mais dez ou vinte ou trinta anos (ou os que forem necessários, desde que os governos não intervenham) e terão a riqueza suficiente que lhes permitirá então resolver todos os problemas que afligem a humanidade: pobreza, saúde, trabalho, habitação, alimentação. Os bons samaritanos do Grande Recomeço.
Recordemos a frase de Groucho Marx (dos Irmãos Marx) no filme Duck Soup (Os Grandes Aldrabões):
“Meus senhores, [ele] pode falar como um idiota e parecer um idiota. Mas não se deixe enganar por ele. Ele é mesmo um idiota”.
Notas:
1: Um recente ramo da ciência, a física da informação, sugere que a realidade física é fundamentalmente feita com bits de informação, e que só depois a partir deles é que se forma a nossa experiência do espaço-tempo. Ou seja, as leis físicas como as conhecemos não refletem a ordem do universo, mas sim da ordem imposta pela forma como descrevemos o universo.
Isto levou a que em 1989 o físico John Archibald Wheeler considerasse a possibilidade de o universo ser fundamentalmente matemático, emergindo da informação obtida, e a que mais tarde, em 2003, Nick Bostrom apresentasse a hipótese de se viver numa simulação (a nossa realidade física pode, portanto, ser uma realidade virtual em vez de um mundo objetivo que exista independentemente do observador). Hipótese altamente provável, como explicou Elon Musk em 2013.
Esse mundo de realidade virtual terá como base o processamento de informação. Tal significa que tudo acabará por ser digitalizado e reduzido a um tamanho o menor possível por forma a que não possa ser mais subdividido: reduzido a bits.