(398) O envelhecimento desigual das mulheres
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À medida que as mulheres descem na escala da desejabilidade sexual supõe-se que se tornam mais estúpidas, menos interessantes, Jane Campbell.
Isso é assim, é obvio […] Penso que isso faz parte deste negócio, Sean Young.
O problema é que essa mulher não se parece comigo. Ela não é quem eu pensava que era, Ursula Le Guin.
Era como se Alice tivesse sido considerada culpada por viver demasiado tempo, Vivian Gornick.
Numa recente entrevista dada por Sean Young, a famosa Rachael do “Blade Runner” (1982) de Ridley Scott, notava que “os homens envelhecem como montanhas, mas continuam a terem papéis. Mas assim que uma mulher começa a ficar um pouco mais velha, deixa de ter essa segurança. […] Isso é assim, é obvio […] Penso que isso faz parte deste negócio. As pessoas querem ver lindas raparigas mais novas nos papéis.”
Quando a inglesa Jane Campbell (1942 -) publicou pela primeira vez uma obra de ficção, Cat Brushing, tinha oitenta anos (2022). Uma série de 13 contos com diferentes heroínas, todas mulheres idosas com os seus variados problemas, que a crítica não se tem cansado de aclamar.
Numa das suas últimas intervenções públicas, Campbell disse o seguinte:
“Sendo eu própria uma mulher idosa, é fácil ficar zangada com a difamação vulgar com que as mulheres mais velhas são tratadas pelos mídia, por instituições de assistência social, pelo corpo médico e, às vezes, até pelos membros das próprias famílias.
À medida que as mulheres descem na escala da desejabilidade sexual - à medida que desenvolvem uma forma diferente, andam com mais dificuldade e perdem o brilho da juventude -, supõe-se que se tornam mais estúpidas, menos interessantes, menos merecedoras de tudo o que desejavam antes "da queda"; que, em essência, elas se tornam não-mulheres e, mais significativamente, homogéneas.
Tenho vindo a apreciar ao longo do tempo toda aquela literatura que oferece representações maravilhosamente variadas de mulheres idosas. Ela é uma boa companhia. São peças que expõem a crueldade infligida às mulheres mais velhas e que me impressionam pela capacidade de procurar a essência da criatura complexa que ainda existe dentro do corpo desgastado. Dentro de todos eles está a luta pela sua independência.”
Ursula K. Le Guin (1929 – 2018) é uma muito conceituada e apreciada novelista americana com uma extensa e inovadora (ficção científica feminista, The Left Hand of Darkness, - A Mão Esquerda das Trevas) obra. Do seu livro póstumo, Ursula K Le Guin: Conversations on Writing, (Dizer é ouvir. Sobre escrever, ler e imaginação), pode-se ler:
“Isto é um novo sinal ou estou a transformar-ma num dálmata? Até que ponto uma prega pode alargar sem se tornar um joelho? Não quero ver, não quero saber.
E ainda assim eu olho para homens e mulheres da minha idade, ou mais velhos, e as suas cabeças e nós dos dedos e manchas e inchaços, embora variados e interessantes, não afetam o que eu penso deles. Algumas dessas pessoas parecem-me muito bonitas, outras não. […] Tem a ver com os ossos. Tem a ver com quem é essa pessoa. Com clareza crescente, tem a ver com o que os rostos e corpos retorcidos transmitem.
Sei o que mais me preocupa quando me olho ao espelho e vejo uma mulher mais velha sem cintura. Não é o facto de eu ter perdido a beleza: nunca tive o suficiente para ficar obcecada por ela. O problema é que essa mulher não se parece comigo. Ela não é quem eu pensava que era.”
Vivian Gornick (1935 -), outra grande escritora feminista americana, escreveu em 2015, The Odd Woman and the City, (A mulher singular e a cidade):
“Ela necessitava desesperadamente de um interlocutor que soubesse quem ela era, e eu necessitava desesperadamente continuar a prestar tributo a uma autora que um dia significara tanto para mim. [...]
Mas ninguém se importava com a essência humana de Alice. Cada vez que ia visitá-la, via-a muito mais cansada do que da vez anterior. É verdade que ela tinha mais de oitenta e cinco anos e vivia à base de analgésicos; o cansaço, porém, era sobretudo espiritual, não do corpo. Quando já levava alguns meses a viver na residência, sempre que ia visitá-la encontrava-a caída na cadeira, tão exausta que dava medo vê-la. Ainda assim, sentava-me à sua frente e, sem sequer perguntar como é que ela estava, eu começava a falar. Minutos depois de ouvir a minha voz, o seu rosto, o seu corpo, as suas mãos começaram a voltar à vida. De imediato estávamos a conversar sobre livros, das manchetes do dia e de conhecidos mútuos, tão animadamente como sempre, embora sem discutir. Acho que nunca esquecerei a visão dessa transformação milagrosa. Ver como a atividade de uma mente brilhante trazia de volta à vida uma pessoa meio morta era testemunhar uma metamorfose que sempre me pareceu como nenhuma outra. [...]
Não, o que realmente importava era que Alice passara a vida a lutar para se converter num ser humano consciente cuja maior alegria era usar o seu cérebro; e agora estava presa num ambiente criado para ignorar - ou melhor, para descartar - esse esforço constante e valente, quando a única coisa que era devida a um ser humano - sim, do começo ao fim – era que se honrasse esse esforço. [...]
A única coisa que agora importava era que - exceto quando ela estava a ler - a minha amiga tinha sido relegada para um exílio da mente que equivalia a um encarceramento. Era como se Alice tivesse sido considerada culpada por viver demasiado tempo.”
Grandes escritoras como estas sabem perfeitamente que estão a escrever não a realidade, mas sobre a realidade, e também sabem de onde vem essa realidade sobre a qual estão a escrever.
É um facto histórico que se prolonga até hoje que a primeira de todas as divisões da sociedade em classes é a que resultou da divisão de trabalho entre os dois sexos e que se traduz na submissão de um sexo ao outro. É em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884) que se pode ler:
“O casamento conjugal não entra, pois, na história como a reconciliação do homem e da mulher e muito menos ainda como a forma suprema do casamento. Pelo contrário: surge como sujeição de um sexo pelo outro, como a proclamação de um conflito entre os dois sexos, desconhecido até então em toda a pré-história. Num velho manuscrito inédito, composto por Marx e por mim em 1846 [Ideologia Alemã] encontro estas linhas […” a divisão do trabalho não era primitivamente mais do que a divisão do trabalho no ato sexual” …]. Às quais posso agora acrescentar: A primeira oposição de classe que se manifesta na história coincide com o antagonismo entre o homem e a mulher no casamento conjugal, e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino. O casamento conjugal foi um grande progresso histórico, mas ao mesmo tempo abre, ao lado da escravatura e da propriedade privada, essa época que se prolonga até aos nossos dias, em que cada progresso é simultaneamente um relativo passo atrás, pois que o bem-estar e o desenvolvimento de uns são obtidos pelo sofrimento e o recalcamento de outros. O casamento conjugal é a forma-célula da sociedade civilizada, forma a partir da qual já podemos estudar a natureza dos antagonismos e das contradições que aí se desenvolvem plenamente”.
Talvez interesse:
Artigo de 14 de dezembro de 2016, “Blade Runner”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/blade-runner-24547).