(397) Música não só no coração
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Música no Coração. Um clássico intemporal que nos traz de volta o amor em tempo de guerra, título do DN.
O caráter ‘austríaco’ de uma sua respeitável família, a Von Trapp, imortalizada na Música no Coração.
Nem todos, podendo ter a sua cave, habitam castelos.
Hoje, 8 de novembro de 2022, dia em que alguns americanos vão confirmar as suas indicações para alguns lugares reservados no aparelho do Estado, o Diário de Notícias cá do burgo informa que “Música no Coração. Um clássico intemporal que nos traz de volta o amor em tempo de guerra” vai subir ao palco do Super Bock Arena, no Porto, neste sábado, dia 12.
Seguem-se curtas e incisivas entrevistas com os principais intérpretes, encenador e produtor, que me escuso de transcrever, remetendo para a notícia em questão.
Relembro que, sem ser a propósito, escrevi a 8 de março de 2017 um artigo
que aqui vos deixo, julgo que a propósito:
Corações cheios de música
“Se não fosse eu, a Kerstin (filha-neta mais velha com 19 anos) hoje já não estaria viva. Não sou um monstro. Podia tê-los matado a todos. E assim não teriam ficado pistas. Ninguém me teria descoberto”, J. Fritzl.
O importante desta declaração é a premissa de que o pai tinha o poder de usufruir sexualmente dos filhos e até de os matar, e que só não o fizera por ser bondoso. Tal qual um “pai primitivo”.
A Áustria da Música no Coração não é a Áustria dos austríacos, mas a imagem mítica que Hollywood faz da Áustria.
“Penis normalis, duas vezes por dia”.
Em abril de 2008, a Áustria foi sacudida pelo que ficou conhecido como o “caso Fritzl” (https://www.youtube.com/watch?v=SdSgQY7fF9w), quando Elisabeth Fritzl, uma mulher de 42 anos, contou à polícia de Amstetten, que há 24 anos se encontrava cativa na cave da residência do seu pai, Josef Fritzl, onde era abusada física e sexualmente por ele.
Desse relacionamento tinha tido oito filhos e um aborto. Que quatro dos seus filhos viviam também prisioneiros na cave, e que os outros três foram criados na parte de cima da casa pelos pais dela, Josef e Rosemarie Fritzl,
O pai começara a abusar dela aos 11 anos, até que aos 18 anos a aprisionou na cave. Um dos filhos morrera três dias após o parto sem qualquer tipo de assistência médica; o seu corpo foi incinerado por Josef na sua propriedade. Outro tinha já problemas ao andar, pois crescera mais do que a altura do teto da cave.
Na sua defesa, Fritzl disse que o que queria era proteger a filha dos perigos do mundo exterior, pois ela começara a chegar tarde a casa, andava à procura de emprego, possivelmente namoraria com um drogado e já não obedecia às regras da casa.
Resolveu então, construir um local onde a pudesse instalar com todas as comodidades, com frigorífico, televisão. Nunca a violara, fora sempre sexo consentido. Tratara-a sempre bem, a ela e aos filhos, levava-lhes flores, livros, algumas vezes por semana comia com eles.
E acrescentou:
“Se não fosse eu, a Kerstin (filha-neta mais velha com 19 anos) hoje já não estaria viva. Não sou um monstro. Podia tê-los matado a todos. E assim não teriam ficado pistas. Ninguém me teria descoberto”.
O importante desta declaração é a premissa de que o pai tinha o poder de usufruir sexualmente dos filhos e até de os matar, e que só não o fizera por ser bondoso. Tal qual um “pai primitivo”. (1)
Traços de atitudes semelhantes continuam a serem encontrados mesmo nos pais mais ‘normais’: subitamente, um pai amável explode convicto que os seus filhos lhe devem tudo, começando pela sua própria existência, pelo que são seus devedores absolutos, sendo por isso o seu poder sobre eles ilimitado, o que lhe dá o direito de fazer o que quiser a fim de cuidar deles.
Não podemos cometer o erro de acusar de igual forma a autoridade patriarcal pelas monstruosidades dos Fritzles deste mundo, como também não podemos querer a erradicação da Lei do Pai.
A atitude de Fritzl não é nem a componente de uma atitude paternal ‘normal’, na qual a medida do sucesso é a capacidade de deixar o seu filho tornar-se livre, permitir-lhe movimentar-se no mundo exterior, nem sinal do seu fracasso no sentido em que o vazio da autoridade paternal ‘normal’ venha a ser suprimida e preenchida pela figura do “pai primitivo” omnipotente.
Em sua defesa, Fritzl sugeriu também que a disciplina da educação nazi a que fora sujeito o tivesse influenciado sobre o que era decência e bom comportamento.
Evidentemente, surgiram logo interpretações visando incriminar a particularidade do espírito de disciplina e ordem austríacos, numa tentativa de conservar e inocentar a paternidade enquanto tal, recusando-se a ver a potencialidade de atos semelhantes na própria ideia de autoridade paternal.
A violência excessiva do “pai primitivo” assume em cada cultura certos traços específicos, mas daí a culpar a história da Áustria ou o seu gosto vincado de ordem pela monstruosidade do seu comportamento é algo difícil de aceitar como explicação.
Pode-se, contudo, elaborar um pouco sobre este caráter ‘austríaco’, recorrendo a uma sua respeitável família, a Von Trapp, imortalizada na Música no Coração.
Família que igualmente vivia num castelo fechado, sob a benevolente autoridade militar do pai que protegia da maldade do mundo exterior aqueles que tem à sua guarda, e onde conviviam três gerações (o pai, Maria, como Elisabeth, e os filhos).
Mas, atenção: o imaginário que vamos encontrar não é o austríaco, mas o de Hollywood, como representante da cultura ocidental. A Áustria da Música no Coração não é a Áustria dos austríacos, mas a imagem mítica que Hollywood faz da Áustria.
Curiosamente, ao longo dos tempos que se lhe seguiram, os próprios austríacos começaram a ‘fazer de austríacos’, como se se identificassem com a imagem que Hollywood deles sugeria.
Na versão Fritzl, as crianças aterradas reúnem-se à volta da mãe, receando a chegada do pai, enquanto a mãe as acalma com uma canção sobre “algumas das suas coisas preferidas”.
Na versão Trapp, as crianças da cave são convidadas a título excecional para uma receção na parte de cima da casa, onde, quando chega a hora de se irem deitar, cantam, à laia de despedida, a canção Aufwiedersehen Goodbye, saindo uma a uma da sala.
A casa dos Fritzl era uma cave que não dava para as colinas, e o som era o da música do coração.
Há ainda a considerar o importante elemento sagrado sempre presente na Música no Coração, que se verifica logo no tema de abertura do filme com o coro das freiras na procura de uma solução:
“Que fazer com um problema como Maria?”
A solução proposta pela Madre Superiora, perante a inquietação sexual experimentada por Maria é dada pela canção “Escala a Montanha”, ou seja:
Arrisca! Não te deixes tolher por receios mesquinhos!
Do personagem do qual esperaríamos um sermão em defesa da abstinência e da renúncia, vem antes um apelo à fidelidade do sujeito ao seu desejo.
O mesmo argumento poderia ter sido usado pelo pároco de Fritzl após este lhe ter confessado o seu desejo apaixonado em aprisionar e violar a filha:
“Escala a montanha”.
Finalmente, aquele episódio em que o Barão fica furioso por ver os seus filhos pendurados em árvores e todos sujos. Autoritariamente repreende-os.
Quando mais tarde chega a casa e ouve os filhos e Maria a cantarem em coro “As Colinas Estão Vivas” (“The Hills are Alive”) fica todo comovido, acabando também por se juntar ao coro, mostrando afinal que aquelas ordens disciplinares militares não passavam de uma máscara que encobria um homem terno e delicado.
Tal como Fritzl, que embora usasse o seu poder para impor o seu sonho, desejava construir a sua “música no coração” sentado no sofá a ler histórias dos livros que levava para os seus filhos netos. Como disse quando foi preso: “Arruinaram-me a vida”. Nem todos podendo ter a sua cave, habitam castelos.
(1) Ver blog de março de 2017, “O pai primitivo”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/o-pai-primitivo-27165