(396) A economia dos economistas
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A economia é demasiado importante para ser entregue aos economistas, Joan Violet Robinson.
A culpa da inflação, ou do seu agravamento e descontrole, tem que ver como o aumento dos salários, voz dos especialistas que o povo repete.
Os trabalhadores não poderão receber mais do que o “necessário para lhes permitir […] viver e perpetuar a raça, sem aumentar nem diminuir”, David Ricardo.
O lucro, enquanto objetivo económico, é uma condicionante e não um determinante da capacidade de adaptação, inovação e evolução humanas, B. Lonergan.
Por princípio, os filósofos escrevem sempre sobre a realidade, embora muitas vezes o possam fazer de forma hermética e sobre coisas que aparentemente não têm que ver com o que se está a passar, o que os torna ao nosso olhar uns chatos que falam incompreensivelmente sobre coisas que não nos interessam.
Por exemplo, quando Lacan nos vem dizer que “Realidade é a realidade social dos indivíduos efetivos implicados em interações e nos processos produtivos”, e que o “Real é a inexorável e abstrata lógica espetral do capital determinando o que ocorre na realidade social”, o que ele está a fazer é a tentar através de um processo intelectual aceder à generalização de um problema que, embora sendo particular, se põe à sociedade.
Interpretemos exemplificando o que ele nos quer dizer: em Portugal (não só) temos assistido à degradação constante das condições de vida das pessoas, ao alargar da miséria, à incerteza em todas as suas vertentes sobre o indivíduo e sobre o estado social, ao aumento da desigualdade, à culpabilização e ao ataque aos mais desprotegidos. Isto é a Realidade. Por outro lado, temos os relatórios económicos em que todos eles são unânimes a dizerem que a situação económica do país é “financeiramente sólida”. Isto é o Real.
E é isto que permite que alguns economistas e comentadores políticos que pontuam nos meios de comunicação social, quando confrontados sobre o estado da economia face ao aumento constante da desigualdade e do número de pobres, nos digam, com toda a tranquilidade, que “a economia está bem, o país é que está mal”.
O que eles nos estão a dizer é que o que conta não é a Realidade, o que conta é a situação do capital, porque isso é que é o Real. (1)
Não é, pois, de espantar que como resultado, os corolários dessa vulgata amplamente transmitida e repetida venham a ser tranquilamente aceites pela população. Como é o caso de que a culpa da inflação, ou do seu agravamento e descontrole, tem que ver como o aumento dos salários.
Desçamos à realidade. Vejamos alguns exemplos: será que o aumento do preço dos medicamentos tem sido motivado pelo aumento dos salários dos farmacêuticos? O aumento dos preços dos bilhetes do transporte aéreo foi motivado pelos aumentos dos salários das assistentes de bordo? O aumento dos preços das unidades hoteleiras tem sido motivado pelo aumento dos salários das empregadas de limpeza?
Exemplos como estes podem-se repetir pelos diversos setores económicos, particularmente naqueles em que a inflação tem crescido mais, o que curiosamente são os que mais nos afetam: eletricidade, alimentação e habitação.
E as perguntas são sempre as mesmas: que aumentos de custo sofreram as empresas para justificarem os enormes aumentos de preços? Estão os grupos dos donos dos prédios a pagarem muito mais aos porteiros, ou ao pessoal da limpeza, ou da segurança? Etc.
Outro exemplo é o relacionado com aquela voz corrente que nos conta que. as empresas, à medida que os preços sobem, se limitam a passá-los para os consumidores. Se fosse só assim, então não se perceberia porque é que os seus lucros aumentam. O que significa que elas não estão só a passar os aumentos de preços para os consumidores. Os preços estão a subir muito mais depressa que os custos.
Esta diferente perceção sobre o estado das coisas (chamem-lhe ideologia, artimanha, luta de classes, ou o que seja) há muito que vem sendo utilizada particularmente pelos economistas, mormente a partir da Revolução Industrial. Foram eles que nos deram a “conhecer” uma série de leis que entendiam serem tão válidas para a sociedade e para a economia como as leis dos cientistas para o mundo físico. São as chamadas “leis naturais” da Economia. Fixas, eternas. Não discutíveis. Vejamos algumas.
Adam Smith vem ligar o bem-estar da sociedade à liberdade do indivíduo (1776). Se dermos a todos a maior liberdade, se os deixarmos ganharem o mais que puderem, se apelarmos para que cada pessoa procure apenas o seu interesse individual, toda a sociedade melhorará, pois, a oferta de qualquer artigo acabará por se ajustar à procura pelo preço certo.
Mas para que isso aconteça não se deve interferir nesta lei natural, quer seja através da regulamentação dos horários ou da fixação dos salários dos trabalhadores, até porque seria inútil. O monopólio dos capitalistas para elevarem os preços e dos sindicatos dos trabalhadores para elevarem os salários, constituem violações da lei natural. A concorrência a todos os níveis é a ordem natural: mantém os preços baixos e assegura o êxito dos fortes e eficientes, livrando-se ao mesmo tempo dos fracos e ineficientes. O governo, servirá apenas para preservar a paz, proteger a propriedade.
Vai ser em resposta a William Godwin que dizia (1793) que embora todos os governos fossem um mal, o progresso era, no entanto, possível e a humanidade poderia chegar à felicidade pelo uso da razão, que Thomas Malthus aparece a afirmar (1798) que o progresso no destino da humanidade era impossível, e que, portanto, todos deveríamos viver contentes com o que havia (ou seja, não tentássemos fazer uma revolução como a da França).
Para ele, as “causas profundas” da miséria da humanidade não estavam nas instituições, mas no facto de a população aumentar mais depressa que o alimento para a manter viva. A razão pela qual as classes trabalhadoras eram pobres não residia nos lucros excessivos (razão humana) mas no facto da população aumentar mais depressa do que a subsistência (lei natural).
“Nada se pode fazer para melhorar a situação dos pobres. É, sem dúvida, um pensamento muito acabrunhador, o de que o grande obstáculo a qualquer melhoria extraordinária da sociedade seja uma natureza impossível de superar.”
Na segunda edição do seu livro (1803), Malthus propunha uma solução: o “controle moral” para obviar à “miséria e vícios”. Greves, revoluções, caridade, regulamentações governamentais, nada disso poderia ajudar os pobres na sua miséria – eles é que deviam de ser responsabilizados por se reproduzirem tão rapidamente. Impeça-se que se casem tão cedo. Pratiquem o “controle moral” – não tenham famílias grandes – e assim poderão ajudarem-se a si próprios. Em conclusão, os pobres são os únicos culpados pela sua pobreza.
Uma outra “lei natural” era a que ficou conhecida como a “lei férrea dos salários” que os trabalhadores ganhavam. Sabia-se já que o salário não era sempre o mesmo, e que tal dependia não só do trabalhador em questão e do acordo que fizera com o empregador. Que o empregador escolheria os que trabalhavam mais por menos salário. Os trabalhadores eram assim obrigados a reduzirem o seu preço mediante a concorrência de outros trabalhadores.
O economista David Ricardo vai demonstrar (1817) que o “preço do mercado” de trabalho tende a conformar-se com o “preço natural”, uma vez que quando o preço do mercado é alto e os trabalhadores recebem mais do que o suficiente para a manutenção das suas famílias, isso faz com que a tendência seja para o aumento do tamanho das famílias. Ora isso aumentará o número de trabalhadores, que consequentemente levará a uma baixa de salários. Quando o preço do mercado é baixo, os trabalhadores recebem menos do que o necessário para manterem as famílias, o seu número acaba por se reduzir, o que conduzirá a um aumento dos salários.
Segundo esta “lei de salários”, Ricardo conclui que com o tempo, os trabalhadores não poderão receber mais do que o “necessário para lhes permitir […] viver e perpetuar a raça, sem aumentar nem diminuir”.
Posteriormente, a quando da tentativa dos trabalhadores para diminuírem as horas de trabalho, e perante a tremenda oposição dos industriais que previam que se tal viesse a ser aprovado conduziria à ruína, surge o economista Nassau Senior com a doutrina (1844) segundo a qual as horas não podiam ser mais reduzidas, porquanto o lucro obtido pelo empregador vinha da última hora de trabalho, pelo que se se a retirasse, desapareceria o lucro.
“Sob a lei atual, nenhuma fábrica que emprega pessoas com menos de 18 anos pode trabalhar mais de 12 horas por dia nos cinco dias da semana e 9 horas aos sábados. Ora, a análise seguinte mostrará que numa fábrica sob tal regime o lucro líquido é obtido na última hora”.
Esta teoria da “última hora” foi empregada para combater os pedidos a favor de um menor dia de trabalho.
Outra teoria de Nassau, a doutrina do “fundo de salário”, foi utilizada para combater os pedidos de aumento de salário. Segundo ele, era “pura tolice” os sindicatos e os trabalhadores fazerem greve a favor de aumentos de salário, e isto porque o pagamento dos salários era retirado de um certo fundo posto de lado exatamente para isso. Assim, a menos que o fundo de salários aumentasse ou o número de trabalhadores diminuísse, não havia qualquer outra hipótese para as revindicações dos trabalhadores.
Bastava, explicava ele, saber aritmética elementar:
“É uma questão de divisão. Reclama-se que o quociente é muito pequeno. Bem, então, quais são as formas de torná-lo maior? Duas. Aumente-se o dividendo, permanecendo o divisor o mesmo; reduza-se o divisor, permanecendo o dividendo o mesmo, e o quociente será maior.”
Mas Nassau propunha uma solução: o aumento do fundo de salários. Isso seria possível “libertando a indústria da massa de restrições, proibições e tarifas protetoras, com as quais a Legislatura por vezes, numa ignorância bem-intencionada, tem procurado esmagar ou dirigir mal os seus esforços.”
Ou seja, deixem os negócios em paz e o resultado será mais dinheiro no fundo reservado aos salários. Velha aspiração sempre viva.
É também assim que quase um século depois da lei de 1816 ter proibido a contratação de trabalhadores com menos de 9 anos e da celeuma sobre a liberdade de contratação, o Supremo Tribunal dos EUA declarou em 1905 inconstitucional uma lei do estado de Nova Iorque que limitava a 10 horas por dia o trabalho dos padeiros, invocando que tal lei “privava os padeiros da liberdade para poderem trabalhar mais horas se assim quisessem”. A sempre presente, oportuna e nunca esquecida tentativa para fazer o tempo andar para trás, para o mais atrás possível.
Também há quase um século, em 1931, F. A. von Hayek teorizou que para se evitar que os lucros caíssem, se deveria reduzir a assistência social bem como os salários pagos:
“Certos tipos de ação estatal, causando um desvio na procura dos bens do produtor para o consumidor, podem provocar um retraimento na estrutura capitalista da produção, e, portanto, uma estagnação prolongada […] A concessão de crédito aos consumidores, recentemente defendida como cura para a depressão, teria na verdade um efeito contrário; um aumento relativo na procura de bens do consumidor apenas pioraria a situação.”
Ou seja, a restauração do lucro deve ser feita através da redução da capacidade aquisitiva das massas, ou seja, através da redução dos salários. O tal de “empobrecimento”, evidentemente das massas. Hayek, o profeta.
Mas Hayek nota também que “Na moderna economia de troca, o industrial não produz com o objetivo de atender a uma certa procura – mesmo que use essa frase por vezes – mas na base dos cálculos de lucros.”
Sem dúvida a melhor definição do funcionamento do sistema económico em que vivemos. O que faz com que o conhecido e aclamado cronista americano Walter Lippmann, na sua crónica semanal do Herald Tribune de 13 de julho de 1934, nos resuma:
“Não adianta falar de recuperações nas atuais condições, a menos que os capitalistas, grandes e pequenos, comecem a investir em empresas com o objetivo de obter lucro. Não investirão para ganhar medalhas. Não o farão por patriotismo, ou como ato de serviço público. Só o farão se tiverem oportunidade de ganhar dinheiro. O sistema capitalista é assim. É assim que funciona”. (2) (3)
Não é, pois, de admirar que se desconfie cada vez mais dessa Economia Política e dos próceres que a vendem, que por várias vezes parece entrar em contradição com o que se passa na realidade.
Uma das vozes mais lúcidas a tentar opor-se a esta falsa dicotomia existente entre a sociedade como um todo e a economia, foi a do sacerdote católico canadiano, Bernard Lonergan, considerado por muitos como o mais importante filósofo do século XX.
Citando muito brevemente a sua Macroeconomic Dynamics: Na essay in Circulation Analysis:
“A renda excedente pura (equity) deve ser dirigida para elevar o padrão de vida de toda a sociedade. A razão porque assim não sucede, não é a razão simplista segundo os moralistas – ganância – mas a principal causa é a ignorância. A dinâmica da produção básica e da mais-valia, e das expansões básica e de mais-valia não é compreendida, nem formulada, nem ensinada. Quando as pessoas não entendem o que está a acontecer e o porquê, não se pode esperar que atuem com inteligência. Quando a inteligência se torna um espaço em branco, avança a primeira lei da natureza, a autopreservação. Não é principalmente a ganância, mas os esforços frenéticos de autopreservação que transformam a recessão em depressão, e a depressão em crash.”
Eis como Mendo Castro Henriques (Bernad Lonergan Uma Filosofia Para O Século XXI) explica as propostas económicas de Lonergan:
“[…] Sempre questionou a linha tradicional de demarcação entre disciplinas “objetivas” e “científicas”, como a Economia, e disciplinas “subjetivas” ou “nebulosas”, como a Ética. É corrente nas universidades existir um desfasamento entre o que é ensinado nas escolas de Economia e Gestão e nas de Estudos Filosóficos e teológicos. Ora Lonergan chama a atenção que “os teóricos morais sobre a economia são também economistas”; e se não forem “então temos de ter economistas melhores, uma lição repetida há cerca de duzentos anos”.
“[…] Lonergan salienta a necessidade de colaboração interdisciplinar. A teoria económica convencional não consegue ver o agente humano como um ‘sujeito consciente de forma empírica, inteligente e racional, e capaz de desenvolver a inteligência e a razoabilidade, como entidade que, mesmo do ponto de vista do método científico, tem de ser abordada de forma essencialmente diferente do estudo dos átomos, ou das plantes e animais’. Em vez disso, aborda a atividade económica como uma série de eventos previsíveis, da mesma forma que os físicos do século XIX abordavam eventos que são apenas estatisticamente prováveis. O resultado é que ‘[a] relação entre a ciência humana e a sua aplicação não será humana; será sub-humana’.
“[…] negar a possibilidade de uma nova ciência e de novos preceitos é negar a possibilidade de sobrevivência da democracia. Se a ciência e os valores não forem integrados ‘os mais bem educados tornam-se uma classe fechada sobre si própria sem tarefa proporcional à sua formação. O significado e os valores da vida humana empobrecem. A vontade de realizar afrouxa e estreita-se. Onde antes havia alegrias e tristeza, agora há apenas prazeres e dores. A cultura torna-se um buraco’.
Na pática o que Lonergan nos vem dizer é que medir os fluxos de dinheiro numa economia e a contrapartida real é a chave para compreender o que nela ocorre. Conseguir isso é mais crucial que a noção de mercado. Esse modo de medir a riqueza, ao definir uma linha entre o investimento e o seu resultado, medido em bens – satisfação dos consumidores – e não em avaliações de mercado sobre as indústrias, propriedade e tendências.
O lucro, enquanto objetivo económico, é uma condicionante e não um determinante da capacidade de adaptação, inovação e evolução humanas; é um erro excluir do processo económico as atividades que não produzem lucro e considerar exclusivos os pressupostos da microeconomia. O padrão de vida e a capacidade de adaptação humana é que devem de servir de padrão às decisões económicas e não a mensuração monetária da riqueza potencial e efetiva.
O lucro tem de ser compreendido não como critério da atividade económica, mas como envolvente do interesse da comunidade, ou seja, do bem comum.
O problema reside, pois, na ignorância dos mecanismos subjacentes ao processo económico por parte de todos os agentes e não apenas os especialistas.
Atente-se no conselho que a britânica Joan Robinson da Universidade de Cambridge deu aos economistas:
“A economia é demasiado importante para ser entregue aos economistas”.