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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(391) Os novos romanos

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

O ciberespaço não é limitado pelas vossas fronteiras. O nosso é um mundo que está em todos os lugares e em nenhum lugar., J. P. Barlow.

 

If you are a citizen of the world, you are a citizen of nowhere, Theresa May.

 

Sou um cidadão do mundo, Diógenes.

 

A única coisa para a qual não há fronteiras é o capital.

 

 

Parece ter sido o japonês Tsugio Makimoto o primeiro a utilizar o termo “nomadismo digital” (1997), querendo com isso mostrar a forma como o trabalho remoto iria alterar o modo como o mundo do trabalho se iria apresentar no futuro, forçando os Estados a alterarem o contrato social.

Equipados com o seu portátil, ligações wi-fi, os “nómadas digitais” viam-se como cidadãos do mundo percorrendo-o livremente, como se a não existência de fronteiras electro magnéticas se projetasse automaticamente nas fronteiras físicas terrestres abolindo-as, quais migrantes de um passado longínquo que, acreditavam, se deslocavam para onde queriam e onde a vida fosse mais fácil ou possível.

Possuidores da ferramenta tecnológica (o computador portátil e o telemóvel esperto) e do conhecimento para a sua utilização, acreditando na promessa do ‘empreendorismo’, na liberdade dos mercados e do comércio livre propalado e incentivado pelo neoliberalismo, não viam qualquer razão para não os poder usar para melhorarem as suas vidas, escolhendo ir trabalhando nos locais em que as rendas de casa fossem sempre as mais baratas, o clima o mais favorável, a comida a melhor, etc.? Finalmente, filosófica e politicamente, a possibilidade da realização do velho sonho de Diógenes quando proclamava: “Sou um cidadão do mundo”.

 

Mas, surpresa, por mais web siminars, mais conferências e encontros que promovam, essa vida não se tem revelado fácil: desde o conseguir vistos de entrada para permanecer ou trabalhar nos países desejados, o pagamento de impostos, os seguros de saúde que cubram vários países, o encontrar trabalho local compatível com as regulamentações ou encontrar o trabalho internacional através das plataformas de comércio eletrónico como a Amazon, eBay ou Shopify que se mostram cada vez mais exigentes, reguladas e limitadas (“o sistema e os algoritmos da plataforma da Amazon são tão assustadoras quanto as alfândegas estatais e os processos de imigração”), etc.

Um pequeno exemplo:

 

Devido às praias, à internet rápida e ao baixo custo de vida, a Tailândia é um dos locais preferidos. No entanto, as regras de concessão de vistos e de proteção aos trabalhadores são rígidas, embora nem sempre aplicadas com rigor. Em 2018, o estado tailandês tornou-se consciente e desconfiado dos ‘nómadas digitais’. Em resposta à pergunta sobre se os ‘nómadas digitais’ podiam trabalhar na Tailândia sem uma autorização, eis o que um site de advogados tailandês (apresentando-se como 'Embaixada da Tailândia') respondeu:

 “Para trabalhar no reino, um estrangeiro precisa de ter um visto apropriado, obter uma autorização de trabalho e pagar impostos' (Embaixada da Tailândia, 2020).”

 E acrescentou:

“Mas o que é trabalho? Um nómada digital a trabalhar no seu laptop num espaço de trabalho conjunto (coworking), é considerado trabalho? Um empresário sentado no quarto do hotel a preparar-se para um seminário? Quando é que a agência de Autorização de Trabalho considera isso como trabalho? Esta é uma pergunta difícil de responder com um simples sim ou não. (Embaixada da Tailândia).”

Até hoje o problema não está resolvido, sujeito a demoradas e imprevisíveis negociações individuais.

 

Não é, pois, surpresa o que relata um desses nómadas:

 

Sou muito crítico deste novo ‘precariato’, esta nova força de trabalho da atualidade das chamadas plataformas de partilha (sharing platforms) como a Uber e a Lyft como meio de vida […] Não estou convencido que a maior parte das pessoas queira ser nómada. Penso que é uma vida bastante feia, miserável e solitária. O problema é que a tecnologia nos está a empurrar para ela”.

 

Mas há sempre pintores da cor rosa.

 

Declaração da Independência do Ciberespaço:

A 8 de fevereiro de 1996, em Davos, Suíça, o poeta, compositor, ativista do ciberespaço e cofundador da Electronic Frontier Foundation, John Perry Barlow, deu a conhecer “A Declaração da Independência do Ciberespaço” dirigida aos Governos do Mundo Industrial:

 

 “O espaço social global que estamos a construir deve ser independente das tiranias que nos tentam impor. Não têm qualquer direito moral para nos impor regras nem para nos manietarem por quaisquer métodos legalistas que temos razão para temer.”

E isto porque o “ciberespaço não é limitado pelas vossas fronteiras”.

“O nosso mundo é diferente. O ciberespaço consiste em transações, relacionamentos e o próprio pensamento, dispostos como uma onda estacionária na teia das nossas comunicações. O nosso é um mundo que está em todos os lugares e em nenhum lugar, mas não é onde os corpos vivem.

Estamos a criar um mundo em que todos podem entrar sem privilégios ou preconceitos de raça, poder econômico, força militar ou local de nascimento.

Estamos a criar um mundo onde qualquer pessoa, em qualquer lugar, pode expressar as suas crenças, por mais singulares que sejam, sem medo de ser coagida ao silêncio ou à conformidade.

Os vossos conceitos legais de propriedade, expressão, identidade, movimento e contexto não se aplicam a nós. Eles são todos baseados na matéria, e aqui não há matéria.

[…] Vocês têm pavor dos vossos próprios filhos, porque eles são nativos de um mundo no qual vocês serão sempre imigrantes. Porque vocês os receiam, vocês confiam às vossas burocracias as responsabilidades paternas que por cobardia não se ousam confrontar. No nosso mundo, todos os sentimentos e expressões da humanidade, do degradante ao angelical, são partes de um todo sem costura, a conversa global de bits. Não podemos separar o ar que sufoca do ar em que as asas batem.

Na China, Alemanha, França, Rússia, Singapura, Itália e Estados Unidos, vocês estão a tentar afastar o vírus da liberdade erguendo postos de polícia nas fronteiras do Ciberespaço. Eles podem conter o contágio por um curto período de tempo, mas não funcionarão num mundo que em breve será coberto por mídia de bits.

[…] Essas leis declarariam as ideias como outro produto industrial, não mais nobre que o ferro-gusa. No nosso mundo, tudo o que a mente humana fábricas a realizem. pode criar pode ser reproduzido e distribuído infinitamente sem nenhum custo. A transmissão global do pensamento não mais necessita que as vossas

Essas medidas cada vez mais hostis e coloniais colocam-nos na mesma posição daqueles antigos amantes da liberdade e da autodeterminação que tiveram que rejeitar as autoridades de potências distantes e desinformadas. Devemos declarar os nossos eus virtuais imunes à vossa soberania, mesmo que continuemos a consentir o vosso domínio sobre os nossos corpos. Espalhar-nos-emos pelo Planeta para que ninguém possa aprisionar os nossos pensamentos.

Criaremos uma civilização da Mente no Ciberespaço. Que seja mais humana e justa do que o mundo que os vossos governos fizeram antes.”

 

Esta Declaração expressa a convicção da existência efetiva de um espaço de trabalho virtual que, no limite, poderá dar origem ao aparecimento de um novo país “virtual”.

Para ele, a “nação-estado está ultrapassada – tem como base o pensamento do século XIX” que, nesta época em que já se utiliza um espaço de trabalho elétrico sem fronteiras, a cidadania e o imposto são limitações ao livre desenvolvimento humano.

 

Principado de Sealand:

 

Sem a pretensão do trabalho remoto sem fronteiras, mas como tentativa de resolução dos entraves postos pela cidadania e pelos impostos (e outros), o major inglês e radialista Paddy Roy Bates, ocupou em 1967 uma pequena plataforma (Roughs Tower) que fizera parte de uma fortificação no Mar do Norte construída durante a Segunda Guerra Mundial em águas internacionais a 12 quilómetros da costa de Suffolk, e que na altura era utilizada por uma estação de rádio pirata para transmissão de música pop. Passou a chamar a essa micronação, Principality of Sealand (Principado de Marterra), com constituição (monarquia constitucional), bandeira, hino, moeda e passaportes.

Depois de várias peripécias, só em 1987 é que o Reino Unido conseguiu incorporar essa plataforma no território inglês, quando aumentou as suas águas territoriais para 12 milhas náuticas.

 

O que era ser “romano”:

 

Quando a alguns dos habitantes de Roma lhes foi concedido passarem a ser conhecidos por ‘cidadãos de Roma’, ‘romanos’, tal não significava apenas um título honorífico para ostentarem perante os outros muitos habitantes da cidade (no século de Augusto, Roma tinha cerca de um milhão de habitantes, dos quais 320.000 cidadãos, sendo os restantes, libertos e escravos), mas principalmente, a garantia da distribuição mensal gratuita de alimentos a cargo do Estado, bem como a entrada gratuita nos muitos espetáculos. Citando Juvenal: “O povo romano está absorvido principalmente por duas coisas: os abastecimentos e os espectáculos”. Sucintamente: “Pão e circo”.

 

Relembremos que a organização do Estado Romano estava feita para assegurar que o Imperador vivesse dos impostos cobrados, deixando que as elites, senadores e outros, vivessem de rendas da terra.

Pelo que apenas o Exército e a Justiça Superior eram controlados e dirigidos pelo Estado. Quase todas as outras tarefas, nomeadamente a polícia, a manutenção de estradas, as fortificações, e especialmente a coleta de impostos, eram delegadas para a autoridade dos governos locais e municípios. Ou seja, um estado mínimo.

O principal dever dos municípios era serem agentes de extorsão em nome do império. A forma como o faziam, era problema deles. Podiam até serem tiranos.

Nesta sociedade, os grandes senhores viviam de rendas das suas propriedades. A “riqueza” encontrava-se essencialmente ligada à terra; no caso dos ricos, essa riqueza era transformada em dinheiro suficiente para alcançarem privilégios e poder.

Leiamos a descrição feita pela jovem esposa sobre a fortuna do casal oriundo de duas grandes famílias de Roma, Valerius Pinianus e Melania a Jovem, com propriedades em Espanha, Itália, Sicília e África:

 “E mais uma vez arrecadámos uma enorme quantidade de ouro e doámo-la aos pobres e aos santos – 45.000 moedas de ouro. Quando entrei no átrio, pareceu-me que […] toda a casa se tornara resplandecente, como se estivesse em fogo, dado o imenso brilho que emanava da massa das moedas.”

 

Em comparação, os “romanos” na sua grande maioria não passavam de pobres que vivendo à custa da caridade do Estado eram menos miseráveis do que os outros que vivendo em Roma não eram “cidadãos de Roma”.

Em Roma, “em que as massas incluíam 150.000 homens desocupados, que o auxílio da assistência pública dispensava de procurar trabalho, e talvez outros tantos trabalhadores que dum extremo ao outro do ano todos os dias do meio do dia ficavam de braços cruzados e aos quais, todavia era negado o direito de despender na política a sua disponibilidade, os espectáculos ocupavam o tempo a esta multidão, cativavam-lhe as paixões, canalizavam-lhe os instintos, davam derivativo para a sua actividade. Os espectáculos foram a grande diversão para a desocupação dos seus súbditos, e por consequência o seguro instrumento do seu absolutismo. Rodeando-se de solicitude, sumindo neles somas fabulosas, cuidaram de assegurar o seu poder.”

 

Esses eram os tempos em que vivíamos.

 

Nota informativa para os novos romanos:

São já 16 os países europeus que oferecem uma versão de ‘visto de nómada digital’. Cada país tem seu próprio conjunto de condições, mas no geral os candidatos devem ser de fora do Espaço Económico Europeu e serem capazes de demonstrar que trabalham remotamente há pelo menos um ano. Devem ter um contrato de trabalho ou, no caso de serem freelance, comprovar que foram regularmente contratados por uma empresa fora do país.

Devem também demonstrar que ganharão o suficiente para serem autossuficientes. Na Croácia, por exemplo, os candidatos devem demonstrar poder ganhar pelo menos € 2.300 por mês, na Estónia e Grécia € 3.500, na Islândia € 7.100, e em Portugal apenas € 700.

Alguns países exigem que se tenha dinheiro no banco – € 5.500 no caso da República Checa – além da renda. Outros países também podem exigir um seguro de saúde privado.

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