(390) “Os bilionários nazis”
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As dinastias empresariais mais ricas da Alemanha fizeram fortunas auxiliando e incentivando o Terceiro Reich de Adolf Hitler.
São celebradas por transformarem a Alemanha numa potência económica, com prédios, fundações e prémios com os seus nomes.
O problema é que devido à interdependência anteriormente havida, a “desnazificação” foi light, não tocando em muitos quadros importantes, e até exportando-os.
Até 1957, 77% dos funcionários com cargos de responsabilidade no Ministério da Justiça alemão (ou seja, três em cada quatro) eram antigos membros do partido nazi.
Ao que parece, tem sido como normal a tendência de uma vez alcançado o poder, se tentar conservá-lo o mais tempo possível, não só para si (tirania), mas por transmissão para os seus familiares (monarquia), ou para o conjunto de forças (classe) que tenha contribuído e permitido a conquista do poder e consequente perpetuação nele.
As prepotências e desmandos monárquicos no século XIX, a avidez e a gula das classes burguesas, deram origem à Primeira Guerra Mundial que resultou no desaparecimento das monarquias como fonte de poder, na vitória (embora ainda não consolidada) das burguesias e no aparecimento de regimes de substituição, que tendo todos começado por advogar um socialismo (para resolver o problema do controle das massas trabalhadoras), bifurcaram, quando as condições se extremaram, em comunismo e nazi-fascismo.
Na Europa Ocidental, face à falência dos regimes sociais-democratas para conseguirem controlar o sistema económico, os grandes magnatas acordam em permitir a governação por regimes nazis e fascistas.
É importante não esquecer que todos esses regimes funcionavam dentro da grande economia capitalista de então. A interdependência entre eles é quase total, quer ao nível de fornecimentos militares, quer ainda no respeitante aos campos económico, político, científico e cultural.
Pelo que, acabada a Segunda Guerra Mundial, perante os horrores cometidos e ‘encontrados’, teria de ser feita uma ‘deznazificação’ do Estado e da sociedade. O problema é que devido à interdependência anteriormente havida, a ‘desnazificação’ foi light, não tocando em muitos quadros importantes, e até importando-os.
Julgo não haver estudos completos (intencional?) sobre estas permanências e recolocações de nazis e seus colaboradores que se foram disseminando pelo mundo, dos EUA à URSS, da Argentina ao Japão. Assim, quando aparece uma obra abordando o tema, mesmo que muito parcial, é importante divulgá-la.
No seu novo livro, Nazi Billionaires, The Dark History of Germany’s Wealthiest Dynasties, o holandês David de Jong investiga como as dinastias empresariais mais ricas da Alemanha fizeram fortunas auxiliando e incentivando o Terceiro Reich de Adolf Hitler. Examina também como, oito décadas depois, elas ainda conseguem escapar a um exame minucioso mesmo numa nação que tanto fez para enfrentar esse seu passado.
Focando-se especialmente na Alemanha, De Jong vai debruçar-se em particular sobre as construtoras de automóveis, entre elas a BMW, a Volkswagen e a Porsche, responsáveis pelo milagre económico do pós-guerra e que contribuem com cerca de um décimo do produto interno bruto do país. Alguns exemplos:
O magnata do aço, carvão e armas Friedrich Flick foi condenado em Nuremberga por usar trabalho forçado e escravo, por financiar a SS e por saquear uma fábrica de aço. Libertado em 1960, tornou-se acionista controlador da Daimler-Benz, então a maior fabricante de automóveis da Alemanha. Em 1985, o Deutsche Bank comprou o conglomerado Flick, transformando os seus descendentes em bilionários.
Ferdinand Porsche começa por convencer Hitler a produzir o Volkswagen Beetle (Carocha). O seu filho, Ferry Porsche, ofereceu-se para a SS, tornou-se oficial e até hoje tem mentido sobre isso. Para projetar nos anos 50 e 60 o seu primeiro carro desportivo, rodeou-se de ex-membros da SS.
Talvez ninguém melhor se coadune com a pesquisa de De Jong que Günther Quandt e seu filho Herbert Quandt, ambos membros do partido nazi e patriarcas da família que agora domina o grupo BMW.
Quando Günther Quandt com 37 anos ficou viúvo, conheceu e casou-se com uma jovem de 17 anos, Magda Friedländer, com quem teve um filho. Após o divórcio, Magda casou-se com o ministro da propaganda nazi, Joseph Goebbels, que, como se sabe, por não quererem viver num mundo sem os ideais nazis e no qual tais ideais seriam criminalizados, assassinaram os seus seis filhos antes de ambos se suicidarem em 1945.
Após a guerra, Günther Quandt foi preso por suspeita de colaboração com os nazistas, acabando absolvido após alegar falsamente que tinha sido forçado por Goebbels a filiar-se no partido. Considerava ter sido “vítima de perseguição. Fui perseguido por Joseph Goebbels e pela minha ex-mulher.”
Herbert Herbert Quandt era responsável pelas fábricas de baterias em Berlim, onde trabalhavam milhares de trabalhadores forçados e escravizados, incluindo centenas de mulheres de campos de concentração. Ele adquiriu empresas roubadas de judeus na França e usou prisioneiros de guerra e trabalhadores forçados na sua propriedade privada. Chegou mesmo a construir um subcampo de concentração na Polônia ocupada pelos nazistas.
Quandt herdou a grande riqueza de seu pai e salvou a BMW da falência, tornando-se no maior acionista da empresa. Dois de seus filhos, Stefan Quandt e Susanne Klatten, são agora a família mais rica da Alemanha, com o controle quase majoritário do Grupo BMW, com grandes participações nas indústrias química e de tecnologia, com um património líquido de cerca de US$ 38 biliões.
Eles, juntamente com outras dinastias, com os seus prédios, fundações e prémios com os seus nomes, são celebrados por transformarem a Alemanha numa potência económica. E isto apesar de os esqueletos que têm nos seus armários não serem segredo. O que se passa é que também não são bem conhecidos ou contabilizados. Investigações profundas esbarram sempre em obstáculos.
Alguns, deram pequenos passos nessa direção. Os Quandts encomendaram em 2011 um estudo com a finalidade de analisar o seu passado. Relutantemente e aos poucos, foram feitas mudanças em sites corporativos, omitindo, contudo, detalhes importantes. Stefan Quandt ainda hoje atribui um prêmio anual aos mídia com o nome do seu pai e trabalha na sede com o nome do seu avô.
Numa entrevista que De Jong deu a David Smith a propósito do seu livro, diz:
“Particularmente as famílias que controlam a BMW e a Porsche, conduzem esse branqueamento, celebrando os sucessos comerciais dos seus fundadores ou salvadores, mas deixando de fora o facto de esses homens terem cometido crimes de guerra.
Eu nunca recebi resposta (às entrevistas que pedi), não sei se pelo facto de virem a ser totalmente transparentes sobre a história temerem com isso prejudicar os resultados financeiros ou os valores das ações das empresas, ou se apenas porque assentam todo o seu carisma atual nos sucessos que os pais e avós tiveram e, ao serem transparentes relativamente a eles, estariam a desmentir as suas próprias qualidades. Provavelmente é uma combinação de ambos.”
Ainda segundo De Jong, essas famílias tendem a invocar e a apoiar-se na noção de ‘culpa coletiva da Alemanha’. “Mas é muito perverso ver a Fundação BMW Herbert Quandt, que tem um modelo para inspirar liderança responsável, com o nome de um homem que, sim, salvou a BMW da falência em 1959, mas também projetou, construiu e desmantelou um subcampo de concentração na Polónia ocupada pelos nazis. No mínimo, o que podemos esperar dessas empresas e famílias é transparência histórica”.
O problema do fim dos regimes e o que fazer com os seus mentores, executantes, participantes, apoiantes, simpatizantes, tem de ser visto não só tendo como referência as classes mais ricas que os sustentaram, mas também as classes que o apoiaram e ainda todas as outras classes dos países não apoiantes, particularmente as classes no poder, dada a promíscua interligação existente entre algumas delas.
Por exemplo:
É sabido que em 1939 os nazis contavam com mais de duzentos mil seguidores e simpatizantes nos EUA, que a revista Time escolheu Hitler para figurar na sua capa, como “homem do ano 1938”, entendendo que devia ser o candidato ao Prémio Nobel da Paz, e que entre os seus admiradores se encontravam o magnate automobilístico Henry Ford e o aviador Charles Lindbergh.
E que na Grã-Bretanha, a abdicação em 1936 do rei Eduardo VIII, Duque de Windsor, ficou certamente mais a dever-se às suas simpatias para com Hitler e o regime nazi do que com o facto de pretender casar com uma divorciada americana. Eram notórias as simpatias da classe alta e dos aristocratas britânicos para com o regime nazi, o que talvez tenha levado Hitler a cometer o erro estratégico de acreditar que a implantação do seu regime na Grã-Bretanha seria relativamente fácil, não se preocupando muito em dificultar a retirada do exército britânico de Dunquerque.
E que ainda antes do fim da II Guerra já centenas de milhar de prisioneiros dos exércitos nazis capturados e para os quais não havia campos de internamento em quantidade suficiente, foram colocados nos navios de carga que regressavam vazios aos EUA depois de terem descarregado todo o material na Europa.
No total, 425.000 prisioneiros de guerra alemães foram trazidos para os EUA, e concentrados em 700 campos, espalhados por todo o território. Talvez com uma ou outra exceção, o tratamento que receberam foi bom, ao ponto de os guardas americanos negros terem feito notar que os prisioneiros podiam visitar restaurantes segregados que eles não podiam. A confraternização com a sociedade americana excedeu as espectativas. Alguns alemães encontraram durante esse tempo as suas futuras mulheres.
Em alguns dos campos, permitia-se a promoção da ideologia nazi. Mesmo perto do fim da guerra em 1945, oito dos vinte jornais editados nos campos, advogavam a ideologia nazi.
Na destruição e na confusão que se seguiu após o fim da II Guerra, a necessidade de se manter a funcionar um mínimo de administração pública nos países derrotados, e até na dificuldade de separar nazis de não nazis fez com que, intencionalmente ou não, muitos deles passassem despercebidos.
Na realidade, os aliados que ocuparam a República Federal da Alemanha (Estados Unidos, Reino Unido e França) condenaram apenas 6650 nazis, o que só por si era uma pequena parte do total dos membros do partido. E, as elites alemãs da época fizeram o resto do trabalho de encobrimento.
Um recente estudo denominado “Projeto Rosemburg” apresentado publicamente por Heiko Maas, atual ministro da Justiça alemão, veio confirmar que em 1957, 77% dos funcionários com cargos de responsabilidade no Ministério da Justiça alemão (ou seja, três em cada quatro) eram antigos membros do partido nazi. O que não deixa de ser até curioso, porquanto essa percentagem em 1957 era mais alta do que durante o Terceiro Reich.
Infelizmente, não existem iguais estudos feitos nos outros países europeus. Possivelmente, porque não deve ser importante.
Outros casos em que a ideologia instituída se foi mantendo, é o que aconteceu na Finlândia, Dinamarca e na Noruega, onde mesmo após a derrota das forças nazis, se continuou a praticar a eugenia durante várias décadas. Entre 1935 e 1976, 63.000 suecas, 57.000 finlandesas, 40.000 norueguesas e 6.000 dinamarquesas foram esterilizadas, primeiro em nome da preservação da “pureza nórdica” face aos ciganos tatere, e mais tarde na obediência a critérios económicos do trabalhismo.
E na Noruega, até 1956, para uniformização de raça, classe e religião, os jesuítas estiveram proibidos de entrar.
Os ovos da serpente continuam a eclodir. Não ligámos ao velho provérbio moçambicano: “Os jacarés matam-se quando são pequenos”. Optámos antes pelos dizeres do padre Cruz: “São todos bons rapazes”.
Notas:
# Sobre a caraterização dos vários regimes políticos, rever blog de 14 de março de 2018, “As máscaras das oligarquias”, desde Aristóteles que escreveu que “A democracia e a oligarquia podem fundir-se desde que os muitos pobres não ameacem os poucos ricos através de instituições representativas, e os poucos ricos não concentrem riqueza ao ponto dos muito pobres se tornarem politicamente explosivos”, até ao relatório do Citigroup Global Markets Inc. onde se pode ler que “As sociedades organizadas têm três formas para expropriar a riqueza […]: ou pela revogação dos direitos de propriedade, ou através do sistema de impostos, ou pela alteração das regras que afetam o equilíbrio entre o trabalho e o capital”, e onde também se conclui que a democracia é apenas uma das formas da política que os oligarcas utilizam para a defesa da sua riqueza.
# Sobre a permanência e ressurgimento de partidos nazis-fascistas refiro o blog de 37 de setembro de 2017, “Os ovos da serpente”, que embora desatualizado, mostra um panorama geral sobre o assunto.
# Sobre o que se continuou a fazer após o fim da Segunda Guerra, ver blog de 13 de março de 2019, “Hitler deu muito nas vistas