(389) Vícios privados, públicas virtudes
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Todo o homem tem vícios, ou paixões, ou gostos perversos, mas o seu dever é escondê-los e mostrar-se apenas aos seus semelhantes como um ser regrado e bem equilibrado, Z. Z., sobre o Conde de Abranhos.
Tal é a tradição humana, doce, civilizada, hábil, que faz com que se possa tiranizar um País, com o aplauso do cidadão e em nome da liberdade, Eça de Queiroz.
Servente é esse que serve, no neutro, pois é uma coisa, não uma verdadeira pessoa.
Abranhos vai satisfazer as suas necessidades lúbricas não com uma mulher, mas com uma coisa com a forma de mulher, forma que para ele não pode assumir mais do que uma realidade exterior.
Prosseguindo na análise do caráter do Conde de Abranhos (segundo o ensaio de Américo Pereira intitulado “«Agora que estás no poleiro» Fundamentos praxiológicos da política lusitana, segundo a obra O conde de Abranhos, de Eça de Queirós”), leiamos o que Z. Z., o seu secretário particular e biógrafo, começa por nos dizer quanto aos seus vícios e paixões:
«Todo o homem tem vícios, ou paixões, ou gostos perversos, mas o seu dever é escondê-los e mostrar-se apenas aos seus semelhantes como umser regrado e bem equilibrado.».
E aponta o exemplo com o que se passa com o consumo oculto, logo, «sem escrúpulos, depois de satisfeito o dever» que o Conde tinha por genebra. E isto designa o justo biógrafo como «Tocante exemplo de respeito pessoal e de submissão à decência.».
Nota Américo Pereira que tal se enquadra no modelo de «vícios privados, públicas virtudes», interrogando-se: “Em última análise que pode um modelo destes – que é o que existe de facto não apenas no governo, mas no comum da vida das sociedades – implicar concretamente?
[…] Segundo este modo ética e politicamente hipócrita de pensar e de agir, pode muito bem o magistrado ter passado a noite a abusar de alguém sobre quem tem poder tirânico e que, por tal, nunca se queixará, indo, depois, condenar alguém por ter feito precisamente o mesmo que ele tinha feito nessa mesma noite.
Segundo o modo exemplificado com o caso da indulgência alcoólica de Alípio, está tudo bem, porque se mantém o «respeito pessoal» como aparência, que é o que importa, bem como «a sub-
missão à decência», segundo os mesmos parâmetros. Aparentemente, está tudo bem.
Ora, a vida em cidade não é fundamentalmente uma questão de aparências, mas de realidade concreta e indelével de actos. Emacto, o magistrado do exemplo e o Alípio do Eça são bestas éticas e políticas e a sua acção bestial sobre a cidade tem repercussões reais. A estas repercussões sempre se deu, desde que o mundo é minimamente civilizado, o nome de «justiça» – ou, então, «injustiça».
[…] O lugar textual em que se pode constatar o maior vigor da exemplificação que Eça nos dá, através da perversa pena do tonto ou diabólico biógrafo, é a parte em que se narra a relação de Alípio com a serviçal (uma dessas a quem não se dá pão). Trata-se de falar dos impulsos sexuais do futuro Conde, mas desses que, estando próximos de uma animalidade literalmente obscena, têm de ser escondidos.
Comecemos com a brilhante peça literária de Eça que faz a introdução a tão bela situação. Repare-se que o escrivão da vida do Conde trata os brutos impulsos de Alípio como «sentimentos ternos»:
«A mesma discrição usava no que se refere aos sentimentos ternos: seria incapaz de ir com condiscípulos, “numa troça”, a casa dessas Vénus vulgares que batem o lajedo com sapatos cambados e cujo leito é como uma praça pública. Mas se a natureza, nas suas iniludíveis exigências, que às vezes os eflúvios da Primavera ou a preguiçosa e tépida atmosfera
do Outono tornam mais mordentes, o solicitasse, esperava pela noite, e, com sapatos de borracha para que nem lhe ouvissem os passos, procurava as vielas mais retiradas, onde, depois de ter pactuado com a paciente que lhe seria guardado absoluto segredo, sacrificava com seriedade no altar de Vénus Afrodite.».
Sendo «Vénus Afrodite» uma evidente hipérbole, tendo em conta o contexto lúbrico, podemos imaginar a fogosa «seriedade» com que este sacerdote da decência «sacrificava no altar». Encontramos, aqui, o modelo real de toda a diplomacia que se baseia no exercício da política como uma arte da ilusão, do engano, da decação da aparência.
[…] A sua aparência de «decência», baseada no total desrespeito pela humanidade daqueles com quem se relacionava e de quem não esperava obter útil acréscimo de poder, atinge o seu ponto apical com a acção junto de uma jovem serviçal, de seu nome Júlia, sem apelido. Eis […] a narrativa:
«A servente, uma Júlia, tinha 18 anos, era virgem, e, segundo me confessou o Conde, a sua beleza delicada e tocante fazia lembrar esses tipos de odaliscas que se encontram nos Keepsakes,recostadas em coxins, à sombra de arcadas mouriscas, acariciando com a ponta aguçada dos dedos ideais uma gazela familiar. Tanta beleza, tão nobre, numa condição tão rasteira a natureza compraz-se por vezes nestas irónicas antíteses – comoveram o coração de Alípio, e, uma noite em que a servente dormia na sua água-furtada, o jovem quintanista atreveu-se a subir, em pontas de pés, a admirar a forma delicada, mais bela na sua camisa de estopa do que as Vénus que os artistas florentinos recostavam em coxins de seda, com rouparias de damasco... Mas ao ranger perro da porta aservente acordou: ia gritar, assustada, quando Alípio, tapando-lhe a boca com a mão (sem a magoar, contudo) rogou, na balbuciação suplicante do desejo:
– Mas ouve, filha, ouve primeiro o que te vou dizer...
O que lhe disse? Quem sabe o que ao arvoredo diz o vento, o que dizem as alegres águas correntes às relvas dos prados, o que diz o rouxinol na sombra dos salgueiros, quando sobre a colina, serena e branca se ergue a Lua?
Desde essa noite, Alípio não trocaria aquela água-furtada, onde a caliça caía com a humidade, pelas salas de mármore do Vaticano! Mas, admirável exemplo da seriedade do seu espírito, mesmo ali, não esquecia o seu trabalho: levava os expositores, a sebenta, os apontamentos, e, depois do primeiro transporte amoroso, enquanto, como ave fatigada, a servente se aninhava na cova da enxerga, o nosso Alípio, à luz de uma vela de sebo, ia estudando as mais altas questões do Direito Penal – até que o Desejo, ferrão despótico, o arremessava de novo nos braços brancos que o sono enlanguescia. Delicioso idílio!
E quantas vezes, nos seus anos ilustres, quando ele fazia História, decerto lhe volveriam à memória, como um trecho de mal lembrada melodia, aqueles meses de Verão e de amor romântico, em que a bela Júlia e o jovem Alípio, abafando as suas risadas, faziam no quarto miserável, sob as telhas, a caça aos mosquitos nas paredes e aos percevejos nas frinchas... [...]
Quando Alípio, concluída a formatura, deixou Coimbra, Júlia estava no terceiro mês da sua gravidez. No entanto, conservou-lhe sempre uma estima terna, até que um companheiro, daí a tempos, lhe escreveu, dizendo que Júlia fora expulsa da respeitável casa das Barrosos (como de resto era justo) e que, achando-se sem emprego, formosa e com um filho a sustentar, se lançara na prostituição.
Desde então, o nosso grande Alípio só concebeu por ela desprezo e repulsão – porque naquele espírito nobre sempre houvera o horror das miseráveis, que, esquecendo o que devem ao respeito próprio, à sociedade, à família, ao filho, vão pedir ao indolente abandono do lupanar o pão que deveriam obter das severas fadigas do trabalho. Recusou mesmo, com indignação, a esmola que ela lhe mandara pedir, temendo que os poucos mil réis que lhe poderia remeter, fossem porventura contribuir para enfeitar e arrebicar uma nova sacerdotisa da Vénus das vielas. Tanto a esta alma severa e forte repudiavam as moles condescendências e as vãs piedades!».
Centrando-se apenas na onto-antropologia, eis o que a propósito deste episódio Américo Pereira expressa:
“O neutro pobre, a quem não se dá pão, não tem nome de família. Assim, a moça é referida apenas pelo nome dito próprio, mas talvez – e fica a dúvida, que, neste contexto, é legítima – tal nome isolado não seja diferente do nome que se atribui a uma cadela, que também não se considera que tenha família. Júlia surge como «servente». Ora, servente é esse que serve, no neutro, pois é uma coisa, não uma verdadeira pessoa. E é esta a atitude onto-antropológica que Alípio tem – e Eça denuncia – para com a moça.
A moça, para o futuro Conde, não mais é do que um ente que serve, uma coisa servidora. Pior, ética e politicamente, é uma coisa de que quem pode se serve. E o Abranhos pode. Abranhos vai satisfazer as suas necessidades lúbricas não com uma mulher, mas com uma coisa com a forma de mulher, forma que para ele não pode assumir mais do que uma realidade exterior. Às futuras Senhoras Abranhos, reconhecerá uma forma humana plena, ou não as desposaria, pois um Abranhos não desposa uma coisa serviçal. Mas a Júlia sem pão é vista como um capacho em que o homem roça o seu cio.
Diz o texto que tal coisa «era virgem». Aqui, parece que a humanidade de Júlia é recuperada, pois, de que serve a Alípio a virgindade da moça, se esta não for possuída – é o que está em causa, a posse – como humana?
No entanto, tal virgindade surge apenas como um troféu, como a pele curtida que um caçador de bichos exibe no salão para demonstrar politicamente uma virilidade que talvez não tenha para lá
da curtição da pele. Que pode significar a virgindade da mocinha, para este ignóbil modelo de aspirante a oligarca, senão o prémio do exercício tirânico do poder sobre alguém, neste caso, a mocinha, amanhã um cidadão qualquer? Que finalidade outra que não seja a de impedir que outro seja o primeiro a usufruir – o termo é comercialmente propositado – de um bem irrenovável e que faz parte do tesouro a explorar daquela rapariga?
E não é sempre este o fim último do tirano ou do tirano falhado que é o oligarca, a posse como substituto ilusório de um poder sobre a vida e sobre a morte que nunca terá, mortal que é, mortal
como Júlia e como ela futura poalha humana, salvo o que sobra de espírito, isto é, de amor em acto?
[…] Mas não fala o texto em comoção do coração de Alípio? Não é esta comoção provocada pela beleza e nobreza da moça? Não é este um sinal de humanidade, da humanidade de Alípio?
Sem dúvida que sim. Sem esta comoção, Alípio não se teria acercado da moça como o fez. Mas tal comoção não é semelhante à que Deus manifesta no fim de cada acto de criação genesíaca, que é de contemplação e de amor, antes se reduz a um olhar predador, que procura reduzir o outro e o bem que é a uma função de esse que assim olha.
Deus é um infinito poeta – mesmo que só em integral poema –, Abranhos é um parasita.
Algumas conclusões de Américo Pereira:
Um paradigma de ação de um grupo de seres humanos
“[…]um paradigma de acção, da acção de um grupo de seres humanos pertencentes a um certo país, que usam tal país para seu máximo e exclusivo benefício, sacrificando o que é o direito próprio dos demais
habitantes de tal país, agindo como se de uma relação biológica de
parasitismo se tratasse.
Como é fácil verificar, Alípio Abranhos é o modelo ontológico,
precisamente onto-antropológico, do parasita humano, cuja única
razão de existência consiste em agir com o fito de se engrandecer
individualmente, sacrificando o bem de terceiros, assim destruindo
esse mesmo bem como possibilidade, possibilidade que é sempre e
só própria de esse a quem se refere. Este é o modelo paradigmático
do parasitismo político, de raiz ética.”
A obra de Eça como paradigma universal e precisamente temporal do tirano ou deste falhado como oligarca:
“Eça não estava, com a obra O Conde de Abra-
nhos, a procurar escrever uma sátira política ou algo de identica-
mente superficial. Com a ironia em que era mestre, constrói o mo-
delo teórico do que é o paradigma universal e precisamente tem-
poral do tirano ou deste falhado como oligarca. É isso que Alípio
Abranhos é. E não se trata apenas de o referir a Portugal, em que
é manifesta a sua adequação pormenorizada. O modelo é mesmo
transnacional: é assim que o tirano funciona.
O que Eça mostra da acção do Abranhos quer na sua faceta
mais violenta e não-refinada quer na sua faceta mais refinada, per-
versa como a aproximação feita a Júlia, podemos encontrá-la já
posta em linguagem mais próxima de uma teoria política quando
Eça diz, referindo um momento luso, mas que pode ser transcen-
dentalizado:
«Os políticos da geração moderna compreenderam e aceitaram a grave lição da Maria da Fonte. O sistema da violência foi abandonado como inútil, e começou, com êxito, o dúctil método da habilidade.».
Aos pobres nem o pão da violência se deve dar, pois esta, por
meio da dor aguda que provoca, pode despertar esse que é sua ví-
tima. O segredo do domínio sobre esses que fazem dos Alípios
não-pobres reside em tratar aqueles como inicialmente se tratou
Júlia, com aparente mansidão, para, uma vez dominados e des-
florados, serem atirados para o caixote do lixo não apenas da fria
história, mas da renegada humanidade.
Vamos junto do «operário» como se fossemos rezar. Prometa-
mos-lhe o céu, um céu qualquer, tanto monta. Ele nos dará o seu
pão e o seu ser. Nós lhe ficaremos com tudo, mesmo com o seu
Deus.
Nas palavras proféticas de Eça:
«[...] os governos democráticos conseguem tudo, com mais
segurança própria e toda a admiração da plebe, curvando
a espinha e dizendo com doçura: – Por aqui, se fazem fa-
vor! Acreditem que é o bom caminho! [...] Tal é a tradição
humana, doce, civilizada, hábil, que faz com que se possa
tiranizar um País, com o aplauso do cidadão e em nome da
liberdade.».
A isto, devem esses a quem o pão é negado, dizer como Chur-
chill frente a Hitler: «We shall never surrender!».”
EÇA DE QUEIROZ, O mandarim. Alves & Cª. O Conde de Abranhos, Lisboa, Círculo de Leitores, 1980.